A Portela conseguiu realizar já na madrugada da quarta-feira de cinzas o grande ato de proporcionar a Milton Nascimento a glória de ser aclamado na Sapucaí. Para um artista com tamanha história e importância para a cultura brasileira, estar na Sapucaí é certamente uma bênção para quem aplaude e para quem é aclamado. Mas a sensação que ficou é que poderia ter sido muito melhor. Ainda que a parte musical da Portela tenha se destacado, conseguindo tirar o máximo do samba, com canto forte da comunidade portelense, a escola errou muito em evolução devido à dificuldade de manobras com o abre-alas, abriu buracos e foi irregular, tanto na forma como apresentou a homenagem a Milton na Sapucaí, quanto no acabamento e apuro estético de algumas fantasias. O casal passou bem, mas a comissão de frente teve problemas na execução por questões com um drone. Já as fantasias tiveram bom acabamento e qualidade visual. Com o enredo “Cantar será buscar o caminho que vai dar no Sol – Uma homenagem a Milton Nascimento”, a Portela encerrou o seu desfile com 76 minutos.
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Comissão de Frente
Comandada por Leo Senna e Kelly Siqueira, a Comissão de Frente “Vou partir em procissão” se apresentou dividida em três cenas baseadas em música, amizade, liberdade e responsabilidade. A música foi o fio condutor de uma cena para outra. Os bailarinos “filhos do sol” representaram pessoas iluminadas e transformadas pelas canções de Milton Nascimento. A primeira cena é um encontro em uma procissão festiva, com o grupo celebrando a amizade. Na segunda cena, tem-se outros grupos chegando para a celebração e os tambores de Minas trazendo a regionalidade.
A escolha coreográfica foi reverberar cada toque do tambor de Minas nos corpos dos bailarinos, com as trombetas chegando para avisar o nascer de um novo tempo. A última cena da apresentação tem duas crianças nascendo nas flores das Torres do Tripé, que representavam um relicário, no sentido de guardar as preciosidades encontradas pelo caminho.
A comissão dançou no chão e fez interação com o tripé. Bem montada, mas sem um grande ápice. E teve um problema com o drone, que só subiu no primeiro módulo. Na última cabine, a falta desse elemento comprometeu o sentido da parte final da apresentação. O figurino tinha na cabeça asas da imaginação e, nas costas, pinturas com o estandarte.
Mestre-sala e Porta-bandeira
Marlon Lamar e Squel Jorgea apresentaram a fantasia “É feito uma reza, um ritual”, trazendo o guerreiro santificado e a sagrada rainha, mostrando o amor do portelense pelo seu símbolo maior e pela luz do Sol, como fiéis da festa do divino. Fantasia na tonalidade do branco e da prata, que terminava muito bem com uma coroa na cabeça de cada um. Na dança, buscaram um bailado mais tradicional, com boa intensidade de movimentos e duração de giros da Squel, sempre com a dupla fechando de maneira limpa e em sincronia.
Enredo
“Cantar será buscar o caminho que vai dar no Sol – Uma homenagem a Milton Nascimento” passou na Sapucaí dividido em cinco setores, tratando cada parte como uma metáfora de um período do dia. A ideia foi muito criativa, mas acabou embaralhando a própria homenagem a Milton, não destacando muito de sua vida e tirando o foco da obra do cantor, que passou a ser pano de fundo para uma narrativa que focava mais na amizade e na vida de um homem do interior de Minas.
A primeira parte do desfile, denominada “Aquela manhã”, foi justamente a Majestade do Samba saindo em procissão. Trouxe alguns aspectos do subúrbio, a Portela se enfeitando para sair nessa grande procissão, grande travessia para encontrar o homenageado.
No segundo setor, “Sol a pino”, entre a manhã e a tarde, foi uma parte que tratou sobre emoções à flor da pele, sobre esses momentos, sobre a emoção de ouvir e de relacionar as canções de Milton Nascimento com as próprias vidas, com as baianas fazendo referência a “Maria Maria”, os encontros, por exemplo, em “Duas Sanfonas”, “Vendedores de Sonhos”.
Depois, em “Entardecer”, a Portela falou da relação com a Terra de maneira geral – nos diversos sentidos: tanto como matéria física, território, pertencimento, identidades, povos originários, ribeirinhos, quilombolas –, terminando o setor com a alegoria que faz referência à relação de Milton com Oxalá e com a própria Terra.
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O quarto setor, “Noite”, representou os períodos mais difíceis, de repressão, explicando como a música de Milton Nascimento ajudou as pessoas a passarem por esses momentos, trazendo canções que foram trilhas dessa resistência. A noite foi usada como metáfora para os momentos difíceis, e o setor terminou com a alegoria sobre o milagre dos peixes e a esperança de encontrar o sol após essa noite.
No ato “Amanhecer”, a Portela fechou o desfile com a procissão chegando a Minas Gerais, sendo recebida pelos festejos locais: de Três Pontas, da Folia de Reis, tambores, as memórias do próprio Milton e ele sendo encontrado em um grande altar dourado, o sol.
Alegorias e Adereços
Em seu conjunto alegórico, a Portela trouxe cinco carros e dois tripés. Pode-se dizer que este conjunto foi bastante irregular em termos de qualidade, com algumas alegorias de ótimo nível, como a que trazia o homenageado (“O altar do sol”), e outras nem tanto, como o segundo carro, que trazia o setor da noite. Algumas alegorias também demonstraram problemas de acabamento, como o carro “Ser farol e continuar”. Trabalho irregular e inferior às fantasias.
Em um tripé no início do desfile, a águia veio no azul da Portela com tons de dourado e, no contexto do enredo, colocou-se à frente da procissão. O abre-alas “A procissão do samba” representou o cortejo da Portela saindo em procissão para encontrar Milton. Majesticamente, a alegoria trouxe um grande andor, com o chão de caquinhos e azulejos, ostentando estandartes que se destacavam entre fitas e iluminações de “gambiarra”, destacando personagens importantes da Majestade do Samba. Com quatro cavalos (dois na frente e dois atrás), além do chassi, a alegoria teve dificuldades no deslocamento pela Marquês de Sapucaí.
No segundo carro, apareceu a crença das pessoas na força dos sentimentos que cada uma trazia, de um povo feliz e brincante que exibia, orgulhoso, os discos de Milton e as marcas que letras e melodias deixaram em cada um daqueles peregrinos. No carro, a imagem de um andor carregado por diferentes tipos de pessoas, representadas por figuras como reis, ciganas, trabalhadores, crianças etc. Todos estavam liricamente carregando seus sentimentos até Milton. Carro colorido e com muita altura, ainda que boa parte de baixo fosse o pano azul com girassóis. Na parte de cima, era bem detalhado, mas com excesso de informação visual.
A terceira alegoria fez referência à relação de Milton com Oxalá e com a própria Terra, trazendo em sua base os igbin (caramujos) de Oxalá. Já o quarto carro falava da noite, das dores que vinham nos versos de Milton como acalento de esperança. Nesta alegoria, o andor era erguido pelo povo e conduzido por sete anjos, que traziam as sete chaves citadas em “Canção da América”.
O último carro, “O altar dourado sol”, encerrou o desfile da Portela trazendo o homenageado sentado em um grande trono como santo preto e solar, encantado, magistral. O milagre da música brasileira, o radioso herói. Na alegoria, as referências se misturavam entre o barroco mineiro, as fitas e as bandeiras dos folguedos do interior. No altar, também foi revelada a figura do sol, ícone da narrativa do desfile. Como merecia o homenageado, foi o melhor carro do desfile: de muita qualidade e apuro estético.
Fantasias
O trabalho de André Rodrigues e Antônio Gonzaga buscou um formato parecido com o do ano passado, gerando colorido e leveza com signos que pudessem despertar a emoção a partir do olhar dos figurinos. E, no geral, a dupla conseguiu, com os primeiros setores trazendo muito colorido, tentando mostrar na paleta de cores a proposta do enredo, da parte do sol da manhã. Porém, como único ponto a ser citado, alguns figurinos deste setor tiveram pouca consonância e dialogavam quase nada com aquilo que vinha depois, criando alguns conflitos visuais.
Mas, a partir do terceiro setor, há uma melhora considerável, com boas fantasias como “Cavaleiro negro que viveu mistérios”. E, a partir deste setor, há uma utilização das cores de forma bem interessante, principalmente no setor “A Noite”, com tons de roxo contrastando. No final, “Amanhecer”, os tons pastel contrastaram com outras cores, e o dourado se fez presente. Foi um trabalho de fantasias elogiável, com boa leitura e acabamento.
Harmonia
Impulsionada pelo intérprete Gilsinho, a Portela, que já vinha cantando muito nos ensaios, voltou a dar um banho na pista, muito graças ao excelente trabalho do carro de som. O intérprete é capaz de levar sozinho, pelo vozeirão que tem, a energia e o controle do trabalho harmônico. Mas, apoiado por vozes de apoio também de qualidade, conseguiram espremer tudo que o samba poderia render, aliás, até mais. O quesito, talvez, tenha sido o que melhor a Portela apresentou na avenida, ajudando a manter um clima positivo para a homenagem até o final do desfile.
Samba-Enredo
A obra de Samir Trindade, Fabrício Sena, Brian Ramos, Paulo Lopita 77, Deiny Leite, Felipe Sena e JP Figueira tem uma característica mais melodiosa, uma vibe de nostalgia, também presente nas músicas de “Bituca”, bastante ilustrativa, fazendo algumas referências ao repertório do artista. A obra também se adequou à proposta dos carnavalescos de usar os momentos do dia como metáfora para marcar a parte temporal do enredo e a vida e obra do homenageado. Isso é visto em trechos como “Manhã, alvorada das nossas lembranças”, “noite apaga o rebolado” e “dorme a maldade”.
Com um andamento um pouco para trás, o samba permitiu um ritmo muito “gostoso” para a “Tabajara do Samba”. Como pontos altos, podemos destacar as fortes palavras do refrão principal “Iyá chamou Oxalá, preto rei pra sambar…”, ainda que um pouco repetitivas, mas dentro da homenagem. Outro ponto forte está no “Quem acredita na vida”, bis presente na segunda parte do samba, que é cantado com grande vigor pelos componentes. Passou bem, ainda que não deva gabaritar, e se apresentou melhor do que o esperado, muito graças ao carro de som e à comunidade.
Evolução
O quesito também foi problemático. A Portela teve uma evolução irregular pela pista: no início, com muita dificuldade para colocar o enorme abre-alas na pista, que, além de extenso, tinha composições como os cavalos, visivelmente pesados e difíceis de manobrar. Com isso, já no primeiro módulo de julgamento, a ala logo à frente andou, e o carro não acompanhou, gerando um buraco. O fato se repetiu na segunda cabine de julgamento. Depois que a primeira alegoria saiu da pista, a escola tentou imprimir maior ritmo, mas voltou a ter problemas de buraco, desta vez no quarto setor, entre a ala 21 e a quarta alegoria “Ser Farol e Continuar”, na primeira cabine. Fora esses momentos mais complicados, diversas vezes o que se viu foram espaçamentos um pouco maiores entre as alas, não demonstrando uma escola compacta. Já próximo à terceira cabine de julgamento, as duas últimas alas do desfile quase se embolaram, com alguns integrantes da última ala entrando no grupo da frente. Evolução bem fraca da Majestade do Samba, que pode custar alguns décimos.
Outros Destaques
A bateria “Tabajara do Samba”, comandada por Mestre Nilo Sérgio, veio com figurinos que faziam referência àqueles que batucavam e incorporavam o Cristo Negro. A rainha Bianca Monteiro veio como a “Santa Preta de Palmares”. As baianas trouxeram um figurino que homenageava a força feminina presente na música “Maria, Maria”, com véu, ostensório e estandartes, colares e babados das mães do samba. No esquenta, o intérprete Gilsinho cantou “Portela na Avenida”, mexendo com o público, além do excelente samba de 2024. No alusivo, o canto de “Maria, Maria” de Milton trouxe alegria para a plateia.