Por Lucas Santos e fotos de Nelson Malfacini
Acostumada nos últimos anos a fazer grandes desfile, após um sexto lugar ano passado, a Grande Rio veio mordida, e, com perdão do trocadilho com o enredo, mostrou suas garras para se colocar de forma séria na briga pelo título. Com um começo arrasador através da comissão de frente que levantou o público, a escola utilizou muito bem a iluminação cênica da Sapucaí na própria comissão e no “trovejou, escureceu” que evidenciava também as alegorias todas bem preparadas para que as cores dialogassem com a iluminação.
Fora isso, a Grande Rio manteve o primor, o bom gosto, o volume e muita criatividade nas fantasias, apostou mais uma vez em um estilo muito próprio da dupla Leonardo Bora e Gabriel Haddad no carros, que tem dado certo e tem muito conceito, mais uma vez casando bastante com o enredo. Nos outros quesitos, a excelência de sempre: casal, bateria, Evandro conduzindo o povo e a comunidade respondendo. Com o enredo “Nosso destino é ser onça”, a Grande Rio foi a quarta escola a se apresentar na primeira noite do Grupo Especial, levando 1h07 para percorrer a Marquês de Sapucaí.
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Comissão de Frente
Comandada por Hélio e Beth Bejani, a comissão de frente “Trovejou, escureceu!” viajou para tempos míticos, quando, segundo o imaginário Tupinambá, “o universo era provavelmente muito escuro”. A comissão se baseia no livro de Alberto Mussa, “Meu destino é ser Onça”, que, no início de tudo, reinava o mistério em meio ao caos. A apresentação durou mais do que uma passada do samba e tem seu início ainda fora do elemento cenográfico, com os morcegos, tratados como guardiões das artes no enredo, por habitarem as cavernas cobertas de pintura, faziam um efeito muito interessante em suas asas e se utilizava da iluminação com verde fluorescente na malha.
As ocas, todas na cor preta, também abriam asas de morcego. Também eram locais para a transformação destes animais em guerreiros tupinambás. No meio, um guerreiro se sobressai de laranja fluorescente também, ali, a principal transformação, pois o guerreiro se tornava onça. No elemento cenográfico, o grande ponto alto da apresentação, e talvez até do desfile, uma enorme onça totalmente vazada se levanta em direção ao público e jurados, rugindo e mexendo as patas. O tupinambá de laranja aparecia dentro do corpo do bicho, dançando e apresentando um espetacular efeito luminoso. Um banho de criatividade do casal Bejani, com bom gosto e bom uso dos recursos disponíveis em prol da história.
Mestre-sala e Porta-bandeira
O primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira Daniel Werneck e Taciana Couto, expressou em sua fantasia o bailar do “mundo inaugural”, quando a escuridão dominava o universo e o poder do Velho, o criador da humanidade, explodia em poeira cósmica. Toda trabalhada em tons escuros, a indumentária era lindíssima, na cabeça de Daniel os olhos da onça, o duo entre o preto e o prateado produzia um efeito maravilhoso. Assim como as plumas escuras na saia de Taciana embaixo do corpete todo brilhante em pedras preciosas prateadas.
Na dança, o casal mostrou mais uma vez um amadurecimento muito grande de um carnaval para outro, o que gerou mais qualidade ainda na apresentação. Sem se fixar na velocidade, mas na qualidade, a dupla acertou e combinou todos os movimentos. Mais soltos nesse ano, ainda houve espaço para um grande momento de coreografia, no segundo “Kio Kio…” do samba em que a dupla prestava respeito ao indigenismo tão presente no enredo, realizando passos imitando uma dança indígena, cravando mais uma vez todos os movimentos. Taciana apresentou muita firmeza em toda a condução do pavilhão, mantendo ele sempre bem desfraldado, um pouco menos na dança indígena, mas ainda dentro das recomendações do quesito.
Harmonia
A comunidade de Caxias reproduziu na Avenida aquilo que já vinha fazendo nos ensaios de rua e no ensaio técnico. Mostrando que é possível sim cantar ” Yawalapiti, pankarau, apinajé, o ritual araweté, a flecha de kamaiura”, os componentes mais uma vez demonstraram estar bastante fechados com o samba-enredo, mantendo o canto de forma bastante contínua e intensa durante grande parte do desfile. O único ponto a se colocar é no último módulo, que em algumas alas mais volumosas, era perceptível o desgaste e houve uma queda no rendimento, somente nestas alas mais específicas.
No mais a escola cantou muito. No carro de som, Evandro Malandro mais uma vez se colocou como o intérprete maduro e de qualidade que é, comandando um bom time de vozes de apoio e de cordas. O entrosamento entre ele e Fafá, não fica só na Avenida, mas na coordenação do departamento musical da escola, e mais uma vez a musicalidade da Grande Rio permitiu que se pudesse ouvir muito bem todas as vozes, com destaque para Evandro, obviamente, e até os instrumentos de corda que vinha junto nas bossas, inclusive. Muita qualidade sonora.
Enredo
O enredo “nosso destino é ser onça” é dividido em oito setores. Na abertura ” o primeiro rugido do mundo” a escola apresentou o mito Tupinambá, que versa sobre a criação do mundo: o Velho, divindade máxima que criou a si mesmo e tudo devora. Depois em ” vingança e recriação”, desiludido com a própria criação, o Velho experimenta o sentimento de vingança e decide destruir a primeira humanidade. Em “Terceira humanidade: antropofagia”, a escola falou dos heróis míticos Maíra e Sumé, ambos descendentes do Pajé do Mel, que duelavam e expunham os seus superpoderes.
O quarto setor “Xamanismo: as visões dos homens-onças” trouxe os rituais antropofágicos se reconfigurando através de povos indígenas do Brasil e de demais localidades das Américas que cultuavam as onças. Depois em “murmúrios das matas”, os cruzos culturais vivenciados no Brasil mostrando que os cultos indígenas às onças viraram lenda e canção. No setor 6 “devo(ra)ções nos sertões, onde a onça mora” observou-se espaços míticos sendo transformados em verso e prosa, onças são poetizadas e alimentam impérios. Por fim, em ” Brincar de ser onça”, a agremiação mostrou uma forma lúdica de se transformar em fera e ocupar a rua. São os foliões vestindo fantasias de onças sem cavalhadas, folias de reis, blocos, festas de bois. E o desfile encerrou em “reantropofagia” apresentando a onça como um poderoso símbolo de lutas. Neste último setor, veio os direitos das populações lgbtqiapn+, a demarcação de terras indígenas, o adiamento do fim do mundo, como propõe o filósofo Ailton Krenak.
No geral, não é um tema de conhecimento tão presente na vida do cidadão comum. E, obviamente, com o carnaval sendo um grande divulgador de cultura brasileira, é necessário apresentar estes temas e da forma fiel no visual às lendas e ao indigenismo. Por isso, é importante felicitar a Grande Rio pela iniciativa. Havia alguns pontos mais difíceis de entendimento, principalmente, na parte do meio da apresentação nos setores três e quatro do desfile, onde havia pontos mais específicos do trabalho. Mas, no geral, há um entendimento bom da ideia e o final traz uma grande mensagem ao colocar a onça como símbolo de importantes movimentos de luta.
Evolução
A escola apresentou uma evolução com fluência, com muito volume de fantasias, o que ajudava também as alas a estarem bem enfileiradas, e mesmo assim, sem embolar, o que é um ponto muito positivo para a equipe da escola. Não se observou correria, mas no final do desfile, na dança e na espontaneidade, era possível notar já um pouco de cansaço por parte dos componentes, principalmente nas alas com fantasias mais pesadas. A escola não optou tanto por alas coreografadas o que evidenciou uma comunidade espontânea. O único ponto que se deva ter atenção, foi no primeiro módulo, durante a apresentação da bateria em que o segundo casal Andrey Ricardo e Thauany Xavier precisou avançou para tentar evitar um buraco onde os guardiões da dupla já se movimentavam pela pista de uma forma diferente. A incógnita está em como os julgadores, de um módulo duplo, vão entender esses movimentos.
Samba-enredo
A obra foi composta por Derê, Marcelinho Júnior, Robson Moratelli, Rafael Ribeiro, Tony Vietinã e Eduardo Queiroz é pode-se dizer que é uma das composições mais peculiares desta safra. Tem partes bastante orginais em termos de melodia e de constituição métrica. Na segunda estrofe, no “ Kiô, kiô, kiô, kiô, kiera/ É cabocla, é mão-torta /Pé-de-boi que o chão recorta, travestida de pantera/ Kiô, kiô, kiô, kiô, kiera /A folia em reverência /Onde a arte é resistência, sou Caxias, bicho-fera” há uma quebra proposital da sequência harmônica e de andamento da composição, que apresenta o tom místico do enredo e confere ao samba-enredo da Grande Rio uma peculiaridade e beleza que o torna diferente dos demais. Há muita musicalidade neste ponto. O ponto alto, mais cantado, além dessa parte, que é “xodó” da comunidade, o refrão principal “Werám werá auê, naurú werá auê” que era cantado aos berros e que encontrou ressonância no público de fora da pista.
Fantasias
O conjunto de fantasias da Grande Rio mostrou o estilo e a originalidade que vem fazendo os carnavalescos, Leonardo Bora e Gabriel Haddad na Grande Rio desde 2020, serem sucesso e darem resultados a escola. As fantasias possuíam volumetria, beleza, criatividade e bom gosto, além da utilização de matérias alternativos. Destaques para a primeira ala “ornamentos para o céu” trazendo a proposta do começo da escola de um mundo inaugural, constituída de preto em usa maioria, volumosa, mas com uma quebra nos detalhes com elementos coloridos, acompanhando inclusive o abre-alas, que vinha logo em seguida, no espectro de cor.
Durante o desfile, os carnavalesco ainda passaram por tons terrosos e pastéis, nos cítricos e quentes como na ala “fogo devastador” que representava a desilusão do Velho Onça se vingando dos homens, mandando descer do céu um fogaréu. Outro destaque foi ala dos passistas, todos em dourado representando os povos Incas, moldados em ouro, onde o jaguar é um animal sagrado. Trabalho muito bom no conjunto de fantasias.
Alegorias e adereços
O conjunto alegórico da Grande Rio era composto por cinco carros e mais três tripés. Formado por dois chassis, o abre-alas “Mundo inaugural, misterioso e obscuro” apresentou a onça, segundo a cosmovisão Tupinambá, expressando força, poder, plenitude e perfeição. Nos dois chassis, o preto como tom principal, mas o colorido dos elementos fazia com que a alegoria tivesse um efeito muito positivo, principalmente, na luz cênica.
O segundo carro já era famoso no pré-carnaval, quando saíram alguns spoilers, agora em sua totalidade, o efeito foi melhor ainda. “Jau Ware Sche” tinha um grande crânio de onça, com grandes mandíbulas na frente da alegoria, imponente representando os rituais de devoção e “devoração”. Tripés muito grandes, muito bem elaborados também fizeram parte de um conjunto alegórico volumoso, com as soluções criativas já conhecidas da dupla de carnavalescos, além de muito movimento, roldanas, etc. No final, a diversidade e a luta por movimentos importantes como os que defendem as populações de lgbtqiapn+, a demarcação de terras indígenas se fizeram presentes no carro “enquanto a onça não comer a lua”.
Outros destaques
A bateria da Grande Rio “O som do rugido das onças” teve as fantasias concebidas a partir da mescla da iconografia do povo Ticuna (os elementos que dão formas e cores às túnicas vestidas pelos ritmistas, com base em tecido de cor e textura cruas e aplicações em tons que evocam peças de cerâmica) com máscaras que simulam peças de argila dos conjuntos ceramistas Karajá e Waurá.
A rainha da bateria Paolla Oliveira veio com a fantasia “transformação: nosso destino é ser onça”, representando justamente o ponto central do enredo que é a possibilidade de se transformar em onça. A vestimenta da beldade possuía o aspecto de pele de onça, mas com um dourado de pedras preciosas. A atriz e apresentadora Regina Casé veio no tripé “onças foliônicas”. Antes do desfile, a escola entregou pulseiras luminosas para o público que eram acionadas pela escola e iluminaram o público durante os “apagões” da Sapucaí.