Foram 34 anos de espera até que a Grande Rio conquistasse o primeiro título. Campeã do carnaval de 2022, com o enredo “Fala Majeté! Sete Chaves de Exu”, a agremiação manteve sua equipe vitoriosa sonhando em não parar na primeira conquista e estabelecer uma dinastia da escola de Duque de Caxias. Leonardo Bora e Gabriel Haddad, carnavalescos muito festejados tanto no vice-campeonato de 2020 e no título de 2022, vão homenagear um ícone do samba e da música brasileira em geral, mantendo a pegada de enredos culturais, mas saindo um pouco da religiosidade, na verdade, nem tanto assim como será fácil de perceber nesta matéria.

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Fotos: Lucas Santos/Site CARNAVALESCO

O enredo de grande título “Ô Zeca, o pagode onde é que é? Andei descalço, carroça e trem, procurando por Xerém, para te ver, para te abraçar, para beber e batucar!” vai buscar trazer mais que a vida e a obra de Zeca Pagodinho, mas em formato de crônica encontrar pelo subúrbio carioca e pela Baixada Fluminense lugares que fazem sentido tanto para a vida pessoal do artista quanto para sua obra. Zeca é vizinho da Grande Rio e já havia sido lembrado no carnaval de 2007 quando a escola fez um carnaval sobre o município de Duque de Caxias, hoje lugar de moradia e refúgio deste grande sambista. O carnavalesco Leonardo Bora explica que a dupla de artistas decidiu por essa abordagem do enredo a partir de conversas com Zeca e de um estudo mais detalhado de sua obra musical.

“O caminho narrativo do enredo veio da própria obra do Zeca. A gente encontrou esse fio depois de mergulhar em sua obra e de trocar com o próprio Zeca, entender esse estilo de vida que se confunde com a obra e que é o que torna ele um artista tão popular, tão próximo do povo brasileiro. É um enredo em formato de crônica porque a obra musical do Zeca é muito cronística, no sentido de que ela fala muito de lugares, de passeios por espaços da cidade do Rio de janeiro, principalmente dos subúrbios, no plural destacando a diversidade dos subúrbios do Rio de janeiro, a Baixada Fluminense, o samba, todos os aspectos da vida social e cultural do samba, do pagode, por extensão a cultura carnavalesca das escolas de samba. Tudo isso foi levando a gente por um caminho que não guiava o nosso olhar para uma homenagem monumental, para uma coisa laudatória, muito linear. A obra do Zeca é bastante diversa, imprevisível, ele tem essa característica no dia a dia, muito inquieto. Acho que o enredo precisava ter essas características. Ao longo das conversas, juntamente com o Gabriel, Vinícius Natal, a gente foi encontrando esse caminho”, explica o carnavalesco.

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Leonardo Bora assina o carnaval com Gabriel Haddad

Leonardo Bora afirma que ao estudar a vida e principalmente a obra de Zeca, a dupla percebeu uma similaridade com outros grandes artistas do gênero tanto no estilo de vida quanto nos assuntos abordados pelas músicas.

“Nos arquivos da família Pagodinho a gente percebeu o quanto o Zeca era comparado a Noel Rosa e a João do Rio, ainda na década de 1980, início da carreira dele. Ele era descrito como o Noel Rosa do Irajá, porque havia pontos de contato muito explícitos entre a obra desses dois sambistas que passearam e cantaram o Rio de Janeiro em décadas tão diferentes. Ouvindo as músicas e viajando nas mais de 400 músicas dele, entre gravações, composições, parcerias, uma música em específico nos chamou a atenção “Zeca cadê você”, parceria do artista com o Jorge Aragão, que fala dessa procura muito jocosa e brincalhona, quase um repente, em busca do paradeiro desse artista que transita pelo Rio de Janeiro e que é encontrado em Xerém na Baixada Fluminense. Daí se desenrolou esse enredo, uma proposta nossa para a escola, que tem essa ligação com o chão caxiense, com a comunidade da escola”, revelou Leonardo Bora.

O carnavalesco também define que o desfile vai passear muito pelo subúrbio carioca e pela Baixa Fluminense, porque Zeca não era um artista muito dado a falar do Rio de Janeiro que é vendido lá para fora, para os turistas, a cidade das praias e da Zona Sul.

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“O Zeca transforma Xerém em uma espécie de cenário mítico para o samba, um quintal coletivo e musical. A gente percebeu que estava tudo conectado e nos deixamos levar por esse passeio que não é aquele Rio de Janeiro do cartão postal a beira mar. É o Rio do botequim, da gafieira, da birosca, da cadeira na calçada, do chão de caquinho, do engradado de cerveja, da pipa, do saquinho de Cosme e Damião, da devoção a São Jorge em Quintino, dos quintais, da roda de samba. É esse Rio com toda a sua multiplicidade, com todo o seu colorido explosivo que vai aparecer na Avenida”.

Enredo em formato de crônica e religiosidade de Zeca Pagodinho

Durante o período de pesquisa, Gabriel e Léo mergulharam no universo de Zeca Pagodinho e, como dito acima, perceberam que a história não deveria ser contada de uma forma bibliográfica clássica. Zeca, além de um grande artista, é uma pessoa que oferece muitas histórias e que nestes seus pouco mais de 60 anos transitou por muitos lugares que estão enraizados na cultura e no cotidiano do carioca, talvez por isso o cantor seja tão festejado pelo chamado “povão” e seja tão representado como alguém que busca levar uma vida mais simples. A dupla de artistas da Grande Rio percebeu que esses aspectos da vida do sambista é que poderiam impulsionar uma grande homenagem ao artista e a tudo que ele valoriza.

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“O que mais nos chamou a atenção como narradores é esse aspecto da crônica. É perceber o Zeca como um cronista. Um artista cuja obra expressa essa geografia musical. É uma obra bastante metalinguística como o próprio samba é enquanto gênero. Ou seja, é uma obra que fala muito do próprio samba. Tem muito esse olhar cronista para as pequenas coisas. E é algo que a gente sente falta para o carnaval. A festa já teve muitos enredos em formato de crônica como “Domingo” da Maria Augusta, pode pensar na obra de Luis Fernando Reis que cantou o subúrbio carioca pela Caprichosos de Pilares. A gente acha que foi uma oportunidade de fazer essa brincadeira”, esclarece Leonardo Bora.

Outro aspecto que também encantou a dupla foi a presença da religiosidade na vida de Zeca Pagodinho. Nos últimos dois carnavais a luta contra a intolerância religiosa e busca pelo respeito principalmente às religiões de matriz africana estiveram muito presentes e foram temáticas centrais no trabalho de Leonardo Bora e Gabriel Haddad. Neste desfile, contando a vida de Zeca, a dupla poderá mais uma vez falar sobre a fé.

“Também nos chama muito atenção a presença da religiosidade popular na obra do Zeca. É um volume muito grande. É um aspecto que nos viemos explorando nos últimos desfiles, olhar para obra do Zeca nos levou para um outro olhar para esse grande tema da religiosidade que engloba a umbanda, candomblé, e isso também vai aparecer no desfile. Na abertura do desfile temos a Alvorada de São Jorge, e no segundo setor temos como norte a música ‘minha fé’. A Grande Rio procura Zeca por terreiros,capelas, oratórios, igrejinhas, entendendo a dimensão dessa religiosidade popular sincrética do Zeca Pagodinho”, explica Bora.

Gabriel e Léo seguem na busca por linguagens diferentes e experimentações 

Após dois grandes desfiles na Grande Rio e outros tantos elogiados no Grupo de Acesso, Leonardo Bora e Gabriel Haddad estão conquistando um espaço no carnaval carioca entre os grandes artistas da folia e vão ano a ano apresentando um estilo bem próprio de criação carnavalesca. A dupla não pensa em parar por aí, o enredo sobre Zeca Pagodinho é a oportunidade de mostrarem mais uma vez que tem um repertório amplo e que não se deixam acomodar.

“A busca por linguagens diferentes, essa inquietação criativa, é algo que nos anima demais enquanto artistas, eu e o Gabriel. A gente sempre tenta buscar caminhos pouco usuais, experimentais, brincar, ainda mais nesse ano que a gente está falando de samba de roda, de quintal, de brincadeira, a obra do Zeca também tem um aspecto muito voltado para a infância, não apenas devido a devoção a Cosme e Damião, mas por uma série de músicas que cantam as memórias infantis. Esse experimento, brincar com o fazer carnaval, é muito presente no nosso trabalho”, aponta Leonardo.

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Em 2022, era possível perceber no enredo sobre Exu como cada setor da escola tinha as suas particularidades, até mesmo quase um estilo próprio sem comprometer a unidade narrativa do enredo. Para 2023, Gabriel e Leonardo devem trazer esse efeito de novo até por conta da diversidade temática presente na vida e na obra de Zeca Pagodinho.

“Esse ano a gente foi guiado pela musicalidade do Zeca para uma visualidade muito diferente, eclética. São cores mais saturadas, é uma miscelânea estilística dentro de um mesmo desfile. Algo que a gente já explorou principalmente em ‘Exu’, nosso último carnaval, que tinha sete setores com propostas estéticas bem diferentes. A gente continua nesse caminho da experimentação. E nesse ano também olhando bastante para a linguagem carnavalesca já que a obra do Zeca fala muito do fazer samba e do fazer carnaval. Exploramos mais matérias que mais rapidamente são associados à linguagem do carnaval das escolas de samba”, define Leonardo Bora.

Dupla confia em grande conjunto artístico 

O desfile de 2022 da Grande Rio foi fundamentado em uma grande apresentação estética e de um grande desenvolvimento narrativo do enredo por parte da dupla Gabriel Haddad e Leonardo Bora. Mas além disso, o samba funcionou muito bem, a bateria foi aclamada e o primeiro casal fizeram apresentações irretocáveis, tudo bem fundamentado em um canto homogêneo e intenso da comunidade de Caxias, sem falar na comissão de frente que trouxe talvez a grande imagem do carnaval, não é a toa que um de seus personagens estampa a capa do CD deste ano. Essa eficiência coletiva que a Grande Rio apresentou em 2022 é o que Leonardo Bora espera que se repita em 2023, e esteja acima de qualquer coisa que os carnavalescos possam produzir na parte estética.

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“Eu sempre espero que o grande trunfo de um desfile de escola de samba seja o samba. É aquilo que a Rosa Magalhães sempre fala, é escola de samba. Não é escola de visual. Nós carnavalescos damos um contorno para algo que é muito mais complexo, vivo e potente que é o samba, o chão. Espero que a bateria seja novamente um trunfo, a gente tem uma bateria espetacular comandada pelo Fafá. A gente espera que o samba interpretado pelo Evandro aconteça mais uma vez. Um samba com características bastante diferentes do Exu. A gente espera que a obra embale um desfile muito alegre e solto. A comissão de frente vem desenvolvendo um trabalho bastante regular, que é uma característica da trajetória artística do Hélio e da Beth Bejani. O casal de mestre-sala e porta-bandeira que está voando, Daniel e Taciana. Harmonia, evolução, enfim. O todo, o conjunto da escola, esse quesito que não existe mais, essa ideia de uma escola de samba como corpo coletivo, a gente espera que isso funcione bastante, seja muito potente, alegre, vivo e se a nossa contribuição que é o enredo, as fantasias, alegorias, for importante para embalar isso, que bom. A gente trabalha dia e noite para isso”.

Em relação ao título de 2022, que acabou com o jejum da escola se tornando a tão esperada primeira conquista da Tricolor de Caxias, é fácil imaginar que ela possa levar a dois caminhos neste carnaval imediatamente posterior: uma sensação de leveza por não existir mais a pressão pelo primeiro título, ou uma sensação de pressão para se manter no topo após dois grandes desfiles. Mas Leonardo Bora garante que nem uma coisa, nem outra assombram o cotidiano de trabalho da dupla de artistas da Grande Rio.

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“Responsabilidade sempre existe. Todos nós carnavalescos e carnavalescas temos uma posição muito delicada em qualquer agremiação, é uma disputa, todas querem não apenas ganhar como apresentar um grande espetáculo. Sempre há cobrança. Isso em qualquer grupo e a gente tem experiência nisso, a gente começou no último grupo no carnaval da Intendente Magalhães. Agora, a forma como a gente lida com essa cobrança, é a chave dessa pergunta. No caso do título da Grande Rio, a gente entendeu automaticamente que não deveria cair na armadilha de tentar comparar um desfile com o outro. Porque cada desfile tem as suas características, têm os seus caminhos narrativos, texto escrito, samba, na visualidade. A nossa proposta foi brincar, festejar, celebrar, comemorar. É um desfile que a gente espera que seja muito feliz, muito festivo para a escola como estão sendo os ensaios. Como é o samba. Porque a gente precisa dessa dimensão da brincadeira, da festa. Envolve uma liberdade criativa grande. Felizmente eu e o Gabriel trabalhamos em uma escola que nos dá total liberdade criativa. Estamos exercitando essa liberdade com responsabilidade sempre. É um compromisso que a gente tem com essa comunidade de Caxias”, conclui o carnavalesco Leonardo Bora.

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Conheça o desfile da Grande Rio

A Tricolor de Caxias vai levar para a Sapucaí em 2023, cinco alegorias e dois tripés. Em termos de contingente são 28 alas e 3200 componentes. O carnavalesco Leonardo Bora explicou à reportagem do site CARNAVALESCO como estão divididos os setores do desfile em homenagem à Zeca Pagodinho.

Primeiro Setor
“Na abertura do desfile temos a Alvorada de São Jorge, o início deste enredo que é no formato de uma crônica que narra um dia mágico. A Grande Rio procurando o Zeca Pagodinho por lugares do Rio de Janeiro, lugares geográficos e afetivos. E nesse dia mágico podem se misturar o 23 de abril, 27 de setembro, inclusive o dia do desfile da escola. E a Grande Rio foi campeã no 23 de abril, também é um agradecimento a Ogum. Ele é o segundo orixá na Gira de Exu, então está tudo conectado. A gente começa a procurar Zeca na Alvorada de São Jorge, saudando essa religiosidade do homenageado e seu culto a Ogum”.

Segundo Setor
“Tem como norte a música ‘minha fé’. A Grande Rio procura Zeca por terreiros, capelas, oratórios, igrejinhas, entendendo a dimensão dessa religiosidade popular sincrética do Zeca Pagodinho. Umbanda, candomblé, catolicismo popular, tudo se mistura nesse setor que saúda os santos de cabeça do homenageado: Obaluaê, Oxum, presentes na obra dele e a extrema devoção que ele tem por uma infinidade de santos”.

Terceiro Setor
“Fala da faceta infantil da obra de Zeca. Mergulhando nessas memórias e nesses territórios, a gente vislumbra a devoção de Zeca, ainda pensando nos aspectos religiosos, a Cosme e Damião, e ao Irajá da doce infância. O velho Irajá. Zeca que cresceu entre Irajá e Del Castilho buscando saquinhos de doce, brincando em chão de caquinhos, soltando pipa, brincando com pião. Esse é o universo da ‘Patota de Cosme’, um disco muito importante para ele”.

Quarto Setor
“Se chama ‘raízes musicais’ e é a busca desse solo suburbano onde nasceu Zeca Pagodinho. Este artista que passa pelos Bohemios de Irajá, bloco de onde ele herdou o sobrenome artístico, saía na ala do pagodinho, transitando por serestas, e despontando para valer no Cacique de Ramos, no bairro de Olaria, nos arredores da Igreja da Penha onde ele canta ‘camarão que dorme a onda leva’ e dali sai para o estrelato, amadrinhado por Beth Carvalho, gravando um álbum coletivo. E esse setor foca essa musicalidade que embalou o jovem Pagodinho em direção ao sucesso”.

Quinto Setor
“Depois a Grande Rio pega o ônibus, trem, lotação, carona e vai a procura de Zeca por diferentes territórios simbólicos, cantados na música dele no setor intitulado ‘crônicas suburbanas’. Passamos por lugares que ajudam a gente a entender a cultura sambista e a cultura dos subúrbios cariocas. As esquinas, a feira, o campinho de futebol, o botequim, a gafieira, o trem com o vendedor ambulante”.

Sexto Setor
“Já no cair da tarde, início da noite, a Grande Rio toma o rumo da Baixada guiada pela música ‘Sapopemba e maxambomba’ gravado pelo Zeca, entendendo que a Baixada Fluminense pode ser entendida como grande subúrbio, expandida. A Grande Rio vai contando indiretamente a história dos fluxos migratórios que levaram tantas pessoas a morar nesta territorialidade com destaque para Duque de Caxias e Xerém. Inclusive o próprio Zeca que escolhe Xerém para morar no início da década de 1990. A gente passeia pela faceta menos conhecida e menos abordada, porém fascinante, que é o olhar para o samba rural, samba de roda rural, o diálogo com os repentistas, essas memórias nordestinas, de tantos migrantes que se fixaram no Rio de Janeiro e na Baixada Fluminense”.

Sétimo Setor
“Da Jaqueira ao Jaqueirão. No quintal do Zeca que é chamado de Quintal do Jaqueirão, que já se tornou esse espaço tão importante, para a gente pensar o samba e o pagode na contemporaneidade, a Grande Rio recebe todas as escolas de samba para uma grande confraternização, uma homenagem ao Zeca e ao aniversário da coirmã Portela. A Grande Rio que é a mais jovem das escolas do Especial saúda a memória da centenária Portela, a Águia Altaneira que fez ninho na Jaqueira, cantando, no Jaqueirão Pagodinho, em Xerém, a vitória das escolas de samba. A gente entende que ao celebrar o centenário da Portela estaremos celebrando a vitória da cultura sambista, é uma grande festa misturando Madureira e Xerém, e abordando esse aspecto da obra do Zeca que é o cantar das escolas de samba”.