Vimos a História ser escrita na segunda noite de desfiles do grupo especial carioca. De propostas visuais inovadoras e arrojadas até o ótimo desempenho histórico de sambas e baterias, algumas agremiações presentearam o público com momentos que ficarão na memória da festa para sempre. Em um ano especial pela volta da folia após tanto tempo, vimos comunidades emocionadas e pulsando pela pista. Foi histórico!
Abrindo os caminhos, o Paraíso do Tuiuti reencontrou a Pista sob a batuta criativa do carnavalesco Paulo Barros. O enredo marcou o primeiro enredo “afro” da carreira do artista, que desejou a desejar no desenvolvimento bastante “temático” da narrativa, passaram em alas e alegorias grandes personalidades negras sem maiores fios narrativos que justificassem uma sensação de eterna “lista de chamada”. Outro equívoco da proposta artística foi o uso excessivo de “legendas”: a cada ala havia um estandarte apresentado a foto do homenageado, entre as fantasias que já representavam algo havia ainda os componentes um destaque “fantasiado” como os homenageados. Outro problema do enredo foi privilegiar elementos norte-americanos, falando pouco da cultura negra brasileira. Nas alegorias, os já conhecidos truques de Paulo Barros não se justificaram na busca por ajudar no desenvolvimento do enredo e ainda prejudicaram uma evolução já bastante complicada da azul e amarelo. Faltou comunicação com o público, tão importante no trabalho do artista. Com muita correria, houve estouro no tempo em dois minutos. O destaque positivo do cortejo ficou para a bateria Supersom, comandada por Mestre Marcão, que apresentou um trabalho incrível ao lado de carro de som e ótimo samba da agremiação.
Casa pra se respeitar, a Portela também falou da presença negra na nossa sociedade, mas a partir da diáspora afro-atlântica simbolizada a partir do Baobá, árvore sagrada e síntese da resistência. O enredo, infelizmente, apresentou um desenvolvimento genérico e pouco inspirado, passeando por lugares comuns e sem grandes nuances. Em meio a busca por novas formas de contar a história do povo negro na Sapucaí durante os dias dias, a proposta da azul e branco deixou a desejar. Ainda sim, a qualidade visual do conjunto se destacou na condução brilhante de Renato Lage e Márcia Lage e precisa ser destacada. O conjunto alegórico se sobressaiu pelo estilo requintado e o trabalho artesanal, como no terceiro carro realizado em palha e outros materiais rústicos, que apesar da beleza apresentou problemas de acabamento por problemas na curva da Avenida. Entre o visual em tons terrosos, se destacou o uso bem pontuado de azul, num excelente trabalho
cromático entre a proposta “afro” e as cores da agremiação. Realização que mostrou a competência da Márcia Lage e domínio absoluto da artista na questão cromática. Além de bonito de ver, a Portela também teve um excelente desempenho musical, unindo a bateria primorosa de Mestre Nilo com uma grande atuação de Gilsinho, que garantiram um ótimo rendimento a um samba menos inspirado da safra.
O tributo à Oxóssi da Mocidade Independente foi o terceiro tema “afro” seguido da noite, mas apresentando uma visão completamente diferente das propostas anteriores. A mitologia nagô-iorubá e seus mitos foram contados na Avenida, mostrando ainda a relação entre a bateria da verde e branco com o orixá. Homenageados pelo cortejo, portanto, os ritmistas de Mestre Dudu se destacaram na condução do excelente samba-enredo, que animou a Sapucaí. A potência do desfile da alviverde foi apresentar ao Brasil figuras como Tia Chica, mãe de santo que realizou o “batismo” do ritmo da agremiação ao orixá da caça e seu “aguerê”. O que foi representado na penúltima alegoria do cortejo, uma das poucas que não apresentou problemas de acabamento e belo visual, que lembrou os trabalhos de Arlindo Rodrigues e Renato Lage no início dos anos 1980. No geral, as alegorias apresentavam concepções bem interessantes, mas possuíam várias avarias e problemas de finalização. O conjunto de fantasias se destacou positivamente. Foi uma pena o espetáculo musical não ter sido acompanhado pelo visual, o que deve prejudicar a agremiação na busca por melhores posições na apuração.
Exaltando a cultura indígena, a Unidos da Tijuca mostrou porque desfile se faz na pista. Após uma série de boatos e críticas no período de pré-carnaval, a agremiação fez uma das grandes apresentações do ano. O carnavalesco Jack Vasconcelos se provou mais uma vez um dos maiores enredistas da festa, desenvolvendo com brilhantismo a história mitológica em torno do Guaraná, a partir de um olhar de fábula infantil. Um espírito leve e lúdico tomou conta do cortejo, guiado pela belíssima obra musical e a voz potente de Wantuir e sua filha Wictória, que se alinhou ao trabalho estético. Na pista, as fantasias foram um belo conjunto e um tapete cromático bem desenvolvido, desde o início que explorou as cores do Borel até o setor todo vermelho que trouxe a etnia Sateré-Mawé. A inspiração de Jack no estilo do grande carnavalesco Oswaldo Jardim foi vista na paleta e representações lisérgicas, sobretudo na ala de baianas, coroando um desenvolvimento visual bastante gráfico e que remetia as animações e quadrinhos infantis. Um grande trabalho artístico que trouxe assinatura e identidade artística, aliado a uma importante retomada do orgulho e dos bons desfiles da comunidade do Borel.
Por falar em personalidade artística, foi o que não faltou no cortejo da Grande Rio. Caminhos abertos pela talentosa dupla Leonardo Bora e Gabriel Haddad, que seguiram uma linha visual revolucionária, deixando brilhos e paetês de lado para apostar em tecidos e sobreposições de formas rústicas. Do tripé da Comissão de Frente à ultima alegoria, vimos um conjunto visual bastante ousado e grandioso, apostando em formas volumosas e no acúmulo de elementos. A reciclagem de materiais também foi uma constante no cortejo, mostrando a potência e transformação de Exu, orixá homenageado pelo desfile. A narrativa se mostrou múltipla e abrangente como deveria, abrindo sete chaves de interpretação do mundo a partir da energia do protetor das ruas. Um conjunto visual de alto nível poucas vezes visto na história da festa, brilhante e inspirado de ponta a ponta. O trabalho visual se somou a uma equipe brilhante, da grande atuação do casal Taciana Couto e Daniel Wenerck até a bateria de mestre Fafá. Foi uma apresentação histórica, tanto do ponto de vista artístico, como em termos simbólicos já que falar de Exu foi um grito contra a intolerância religiosa e vilanização das culturas afro-brasileiras. Mensagem potente que chegou nas arquibancadas, que se encantaram e fizeram uma divertida coreografia com as
bandeirinhas distribuídas pela tricolor no início do desfile. Caminhos abertos para o esperado primeiro título da comunidade de Caxias.
Sem descanso pro público, a Vila Isabel seguiu escrevendo história e mantendo a energia lá em cima, ao celebrar Martinho da Vila, um dos maiores baluartes da arte brasileira. A esperada homenagem promoveu uma catarse do público, embalada por um excelente desempenho da bateria do povo de Noel e o rendimento do samba-enredo da escola. A comunidade engalanada da azul e branco vibrou e se emocionou na Avenida. Infelizmente, assim como na Mocidade, ouve um descompasso entre o visual e o samba. Se no chão, a agremiação emocionou, o enredo desenvolvido a partir da atuação de Martinho deixou bastante a desejar, num desenvolvimento confuso e que utilizou diversos clichês bastante problemáticos, como na terceira alegoria, que representou um “Navio negreiro”, num enredo que deveria celebrar o orgulho do povo preto. Após duas propostas ousadas e arrojadas nas agremiações anteriores, vimos um visual mais tradicional em cores e formas. O estilo opulento de Edson Pereira foi visto desde o abre-alas grandioso e no conjunto de fantasias, que deve ser bem avaliado pelos jurados. Com quesitos fortes, a Vila deve brigar pelas
boas posições.
Após grandes apresentações, resta saber como o júri avaliou os cortejos e como será eternizada a folia. Foi, sem dúvidas, um ano bastante disputado e que promete surpresas na apuração. Várias agremiações cometeram pequenos erros, mas se credenciaram para a briga. De doze agremiações, quase todas se gabaritam a retornar nas campeãs e oito delas possuem reais chances de briga. É tudo tão incerto que tem escola que poderia ficar em terceiro ou oitavo lugar que não seria surpresa. A magia da pista é realmente fascinante.