Doze anos depois, o Camisa Verde e Branco, nove vezes do carnaval paulistano, desfilará no Grupo Especial de São Paulo. E a história do enredo é bastante curiosa. Ainda no Grupo de Acesso I, a agremiação fez uma promessa para o orixá que guia os caminhos da instituição: quando o Trevo voltasse, Oxossi seria a temática da exibição. O projeto original foi mudado e recebeu o nome de “Adenla – O Imperador nas Terras do Rei”, que contará como três figuras (Faraó Piye, Mansa Musa e Adriano) honram o legado da entidade de religiões de matizes africanas. Em entrevista ao CARNAVALESCO, Renan Ribeiro, idealizador do enredo, deu detalhes sobre a exibição – que abrirá os desfiles do Grupo Especial de São Paulo, na sexta-feira, 09 de fevereiro.

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Sintetizando

Como dito, a promessa de homenagear única e exclusivamente Oxossi foi mudada. Mas, nas palavras do carnavalesco, apenas isso mudou no fio condutor da temática: “O enredo não teve alteração nenhuma. Às vezes é até comum no processo por questões técnicas. Aí, a gente faz alguma alteraçãozinha aqui, outra ali – o samba, às vezes, também faz com que a gente mexa no texto. Mas isso não aconteceu, a gente não teve nenhuma alteração no projeto. Fizemos só uma amarração mesmo, de correção. O que ganhou força dentro do decorrer desses meses de trabalho foi a ideia de monumentar a construção que a negritude fez baseada nessa memória genética, que os reis homenageados plantaram na história da negritude. Esse era um dos links que faríamos e a questão das dinastias africanas que culminaram em reposicionamento social ficou mais presente. Isso tudo foi condensado e se tornou um amálgama para poder fazer com que a negritude tivesse no Adriano um exemplo disso: um enredo que busca mostrar o impulso de reposicionamento social, econômico, financeiro e político dentro da sociedade”, comentou.

Muito além da religião

Muitas vezes apresentado como uma entidade unicamente ligada à fé, o orixá, nos dias de hoje, também ganhou outra conotação importantíssima, na visão de Renan: “A história de Oxossi como uma figura política me chamou muita atenção. É comum a vertente religiosa e espiritual dele como orixá. O lado divino dele já foi muito explorado, já desfilou algumas vezes no Carnaval do Brasil, mas a figura política dele me chamou muita atenção. E, apesar de ter feito um enredo político só e ser taxado como um carnavalesco político, o enredo tem algumas questões que tocam em questões políticas – mas não partidária, na parte de luta de classes. O que me chamou atenção é que todas as figuras homenageadas tocam, de alguma forma, nessa parte política”, pontuou.

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Para exemplificar, o carnavalesco destacou como cada um dos homenageados impactará no desfile – aproveitando para destacar o que, para ele, será o ponto forte da exibição: “Oxossi, faraó Piye – talvez o mais veemente de todos por conta do reposicionamento dele dentro da política egípcia, de sair de um povo escravizado para se tornar líder do povo egípcio. Esse setor me encanta, talvez seja o meu setor favorito. Gosto muito da estética do Egito, mas também gosto muito do setor textual do Mansa Musa. Acho que ele merece um enredo só dele porque ele desmistifica e desconstrói o que a gente entende por África hoje, de gente faminta e ligada à miséria. Acho que esses serão os principais trunfos do desfile”, apostou.

Estética em pauta

Pouco depois, entretanto, Renan deu outra ótica para o ponto alto da exibição: “Eu não tenho como falar o que eu acho que chama mais atenção porque em cada setor da escola nós temos um recomeço de desfile. A gente muda a estética completamente: abrimos com uma África mais geométrica, com uma estética quilombola; depois, vamos para uma África egípcia, com uma estética completamente diferente; e vamos para uma África islâmica, árabe. Quando entramos nesse setor, a gente já tem essa memória genética reverberando na atualidade. Depois, falamos sobre movimentos políticos e do black power até a gente desencadear em um carro que é meio favela, meio Roma, coliseu. A estética é completamente maluca, no último setor eu tenho até algo meio Joãosinho Trinta. O último carro também tem muito a mão do Leonardo Catta Preta [carnavalesco que chegou ao Camisa em dezembro]. Foi uma mudança que a gente teve no projeto por sugestão dele, mais baixo. Encerraremos o desfile com algo mais teatral, mais elementos humanos em cima do carro, com vibração. Não com esculturas, espelhos e bandôs, não com uma grandiosidade material, mas com um elemento humano bastante presente. Eu destaco pontos porque eu tenho praticamente quatro desfiles dentro do mesmo desfile falando em questões estéticas”, refletiu.

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Citando outras coirmãs que também desfile na sexta-feira, Renan pontuou que optou por seguir um caminho diferente: “Esteticamente, a gente tem um desfile africano que quase não é afro. Na mesma noite do Camisa, desfilam Independente e Dragões da Real, duas escolas muito fortes também com enredos africanos – mas com temas mais tradicionais, com um arco mais ligado à savana. A gente não tem essa estética aqui, faremos algo mais tribal. Falando de reinados africanos, teremos outro ponto de vista estético, saindo das pelas animais (como zebras e gnus) para mostrar a diversidade que a África tem. Essa foi uma escolha minha”, bancou.

Setorização

Sobre a divisão da agremiação, o carnavalesco se preocupou em trazer tudo que será apresentado para o Continente Espelho: “Cada setor ele vai desmistificando um estereótipo plantado no consciente coletivo sobre o que que é África. Eu começo falando que existe um continente que foi empobrecido, roubado e saqueado. Essas histórias vão desconstruindo a ideia que a África é isso: a África foi tornada assim. E, aí, eles se ligam a Adenla. A coroa do rei para mostrar que todos eles foram ligados à nobreza, dinastias, reinados e uma riqueza absurda. Eu falo de Oxossi como uma figura política porque ele desconstrói uma ideia de africano com um conformismo de subalternidade, de subserviência, de inferioridade. Ele deixa de ser um aldeão para se tornar um rei, ele recoloca dentro da sociedade dele. Ele já desconstrói esse estereótipo de que africano é escravo e não escravizado. O faraó Piye descontrói a ideia da África entregue, de que não é um continente onde se plantou muita luta. Líder dos núbios e dos cuxitas, ele se torna faraó do Egito. Mansa Musa descontrói a ideia da pobreza e da miséria africana, sendo o homem mais rico da Idade Média – quando, no consciente coletivo, os grandes impérios eram os europeus. No último setor, tudo isso vai se condensando e se afunilando para se tornar essa história sendo reverberada – ele sintetiza tudo aquilo que o sangue traz. Se a gente for dividir em setores, penso que cada personagem, dentro do enredo, descontrói um ícone dos estereótipos construído na África”, comentou.

Cotidiano apreensivo

Ao ser perguntado sobre como era o dia a dia em tudo que envolve a instituição, Renan fez uma confissão: “Foi, de longe, o carnaval mais difícil dos três que eu fiz pelo Camisa. Mais difícil que os do Grupo de Acesso porque subimos pro Especial ainda nos reestruturando. Não tem como dar um cavalo de pau em onze anos de Grupo de Acesso, subir e ter a mesma estrutura de outras escolas que nunca caíram. Tem sido muito difícil a minha rotina aqui, eu boto a mão na massa, vou para a mesa de corte e para a máquina de costura, vou para ateliês, trago fantasias. Tenho participação constante fora a participação que tenho com a própria escola de conversar com todo mundo, receber destaque por destaque no barracão, acompanho chefes de ala… o trabalho tem sido muito puxado porque o Camisa, em comparação a outras escolas, ainda tem uma equipe reduzida por questões orçamentárias. Queremos fazer um carnaval competitivo para manter o Camisa no Especial. Está todo mundo trabalhando dobrado para fazer um carnaval de excelente nível, acredito que vamos abrir o carnaval de São Paulo do jeito que o Camisa merece, a gente vai surpreender muito. São os setenta anos da escola, os cento e dez anos do cordão… vamos abrir o Especial em alto nível”, prometeu.

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Ainda falando da escola, Renan aproveitou para relembrar uma situação vivida bem recentemente: “Eu era frequentador de ensaio, olho, avalio, canto e ensaio junto. O enredo afro era o desejo da escola já que é ligado à própria identidade da agremiação, todos se sentem à vontade com uma temática como essa. Quando revelamos o enredo, ninguém entendia muito bem o que era um enredo africano com a participação do Adriano. Conforme foram saindo as primeiras matérias, eu fui conversando com os próprios componentes e eles foram entendendo o que era, quais eram os caminhos, do que se tratava… o samba sintetiza e amarra bem o enredo, se tornou muito mais deglutível para a comunidade – e eles entenderam o recado. Até as eliminatórias eu tinha um pouco de desconfiança, e olha que ela foi de altíssimo nível. O samba ganhou algumas enquetes de melhor do Grupo Especial e isso vai ajudando na autoestima da escola: é o Camisa Verde e Branco, uma escola absurdamente tradicional, fazendo a lição de casa – que é ter uma boa bateria, um bom enredo, um bom samba, uma boa Evolução e uma boa Harmonia. O samba pegou, dentro e fora da instituição. A autoestima retornou e a escola está embalada, feliz, empolgada, animada… é um conjunto de fatores que faz com que a escola esteja cantando assim. No último domingo, teve ensaio na quadra, saí da Fábrica do Samba atrasado, o evento já tinha começado na quadra e, dois quarteirões antes, eu estava escutando os componentes no nosso terreiro – e fazendo eco. Apesar disso, o João [Victor Ferro, diretor de carnaval da escola] marcou ensaio de canto porque a gente sempre acha que pode melhorar ainda mais”, surpreendeu-se.

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Para Renan, a principal preocupação do staff do Trevo são quesitos que envolvam algo além do canto e do samba-enredo: “Apesar do chão do Camisa e da empolgação da escola, a gente também busca uma linha mais técnica pensando muito em entregar a questão de critério de julgamento de regulamento. Esse ano a gente também vem na mesma forma para poder buscar os mesmos resultados. O desempenho da comissão de frente, por exemplo, é na entrega dos balizamentos; o Alex Malbec e Jessika Barbosa (casal de mestre-sala e porta-bandeira), a mesma coisa, dando aquele tempero. Em todos os setores a gente tem buscado isso. Fantasias, alegorias… a gente vai ‘fazendo os checks’, ‘ticando’. Pensamos nisso porque o Camisa é a emoção, o momento, a catarse. Isso o Camisa faz sem precisar de ensaio. O componente já é emocionado por si só. Precisamos ensaiar a parte técnica. Com essa questão redonda, a gente vai ter um desfile um equilíbrio entre técnica e pegada – como foi no desfile do ano passado”, lembrou-se.

Privilégio do Grupo Especial

A Fábrica do Samba é um espaço que reúne todos os barracões das escolas do Grupo Especial – quem está no Grupo de Acesso I e II fica na Fábrica do Samba II, conhecida popularmente como Fupe. Para o carnavalesco, o novo espaço é muito mais adequado para todos os envolvidos: “Você sai de uma construção mambembe para algo meio Big Brother. É muito diferente, principalmente para alegoria – que é o maior abismo que existe. Hoje, o Grupo de Acesso é absurdamente disputado, a gente tem grandes escolas lá – eu sempre ouvi que é o terceiro dia do Grupo Especial, que fazem carnavais gigantescos à mão. Um carnaval gigante com uma estrutura ínfima é complexo: você tira um carro alegórico da Fábrica do Samba II com o máximo de quatro metros e meio de altura para chegar a quinze metros, tem que montar mil peças para ter o direito de sonhar chegar no Grupo Especial. Aqui na Fábrica do Samba, já saímos com sete metros, a metade do caminho para a alegoria. A gente consegue ver o carro alegórico inteiro, de cima, quase em 360°. No outro local, vemos ele de baixo – já que não tem como subir em um carro. Aqui, a gente também consegue fazer um ateliê de costura e de corte, fazer a produção das fantasias parcialmente. A diferença de estrutura é gritante, principalmente nas alegorias – que ficam infinitamente melhores”, comemorou.

Peso do pavilhão

Ao ser perguntado sobre o que o público poderia esperar da agremiação, Renan Ribeiro deu uma dimensão do quão confiante está o Trevo no retorno ao Grupo Especial: “Para o pessoal que vai estar sexta-feira no Anhembi: o Camisa volta em um momento muito propício, marcando os setenta anos da escola e os cento e dez anos do cordão da Barra Funda – que é a origem não só da agremiação, mas de todo o carnaval de São Paulo. Para quem sente saudade do Camisa no Grupo Especial, quem vai estar na arquibancada, assistindo na televisão ou na internet, vai ver uma escola potente, grande e volumoso – do jeito que todo mundo esperava. A gente vai matar essa saudade em grande estilo: vai ser emocionante e comovente. Teremos já no abre-alas grandes figuras, nossa Velha Guarda, Casal Soberano [Gabi e Vivi, históricos mestre-sala e porta-bandeira da agremiação], matriarcas, baianas na frente para abrir os caminhos… esses setenta anos vem aos pés de Oxossi: o padroeiro da escola traz a dinastia e sua corte toda aos seus pés. A linha real do Camisa vem de cara: os setenta anos de uma escola tradicionalíssima, que é absurdamente preta e de comunidade”, finalizou.

Ficha técnica
Alas: 16
Alegorias: 04