Brasiléia Desvairada:
A busca de Mário de Andrade por um país
Um enredo de Jorge Silveira e Leonardo Antan

morada24

Justificativa do enredo

Qual o Brasil que vivemos e queremos hoje?

Nosso país está em construção e disputa desde de seu surgimento. Se hoje estamos mergulhados numa crise de identidade, que permeia nossos símbolos e o que nos forma enquanto povo, essas dúvidas motivaram a obra e o pensamento de grandes intelectuais e estão presentes em cada cidadão brasileiro.

Afinal, isto aqui o que é? O que nos faz Brasil?

Um dos principais nomes da cultura brasileira, Mário de Andrade foi um dos pensadores a se debruçar sobre essas perguntas. Um dos autores mais celebrados e pesquisados, foi também um dos responsáveis pelo nosso modernismo e profundo curioso da cultura brasileira.

Há exatos cem anos, em 1924, ele escreveu em certa carta: “É no Brasil que me acontece viver e agora só no Brasil eu penso e por ele tudo sacrifiquei”.

Em um dos seus livros mais famosos, “Paulicéia Desvairada”, o poeta já começava a pensar tais questões. Mas antes de cruzar o nosso território, olhou para sua própria cidade. Descreveu em seus poemas as transformações e contradições de São Paulo nos anos de 1920.

Em 2024, a cidade celebra 470 anos da sua fundação, o que parece um momento oportuno para repensar a sua formação e um dos seus grandes pensadores. A metrópole é, afinal, síntese nossa.

Nas palavras e pensamentos do escritor estão a urgência de pesquisar o Brasil, entender e construir essa nação, saber sobre suas nuances e o que lhe define, para assim ser possível articular o passado que fomos, o presente que somos e o futuro que ainda podemos ser.

Essa busca incessante de Mário atravessou a sua obra em poemas, contos, romances, músicas, estudos, palestras e fotografias.

Se permanecesse apenas em seu escritório estudando e pensando, jamais conseguiria responder tais dúvidas. Por isso, precisou sentir e desbravar pessoalmente todos os quatro cantos que constituíam esse país. Dar nome, rosto e sentimento a quem era esse tal de “povo brasileiro”.

Quando uma escola de samba pisa na Avenida, ela também reconstrói o seu país e está em busca de quem somos. Afinal, uma agremiação é feita dessas pessoas, de múltiplas origens e sotaques.

Cada desfile é feito com encontros, da força coletiva que nos faz um só e do resgate das nossas múltiplas ancestralidades.

Construir mais uma vez um novo Brasil, rever a identidade brasileira e, ainda assim, festejar quem somos é o desejo e a missão da Mocidade Alegre para 2024. Uma escola que tem o povo e o compromisso de celebrar em seu próprio nome.

Carta de Mário de Andrade ao povo brasileiro

I
Fui paulistano por demais.
A terra que eu nasci foi a que me formou de maneira mais forte.
Não à toa, nunca deixei São Paulo. Uma cidade que enamorei, vi se transformar completamente, numa relação de profundo zelo e asco simultaneamente.
Ainda que rusgas tenham surgido, sempre foi uma comoção na minha vida, uma cidade Arlequinal. Afinal, ela é feita de múltiplos recortes, sobreposições, camadas e sobretudo, gente.
Quanta gente há nessa Paulicéia! Burgueses, operários, imigrantes, vadios. É uma cidade das multidões, que tomava as fábricas e suas chaminés, que enchiam os bondes e automóveis.
Quanta gente tomando as ruas! O cinza do concreto duro, a garoa que caia insistente.
Essa cidade sempre teve esse ritmo acelerado, insano e desvairado.
Minha Paulicéia Desvairada, assim a batizei.
Ainda que fosse fascinante em diversos aspectos, São Paulo ainda era um pedaço muito pequeno de Brasil. Afinal, o quanto de país havia para além daqui. Tanto a conhecer, tantos sabores a degustar, lugares a visitar, ritmos a ouvir, pessoas a conhecer.
Dar uma alma ao povo brasileiro, que eu não conhecia do meu gabinete de intelectual.
Obviamente, não foi uma missão só minha. Outros intelectuais, artistas, escritores, músicos também estavam imbuídos desse sentimento durante o modernismo.

II
Foi assim que decidimos, em 1924, desbravar essa imensidão com os nossos próprios olhos. Eu, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e outros amigos éramos um grupo de paulistas, curiosos de conhecer outros brasis. Após brincarmos o Carnaval no Rio de Janeiro, seguimos de trem para Minas Gerais. Chegamos em plena Semana Santa. Procissões por todos os lados, aquela gente simples com seus terços e orações se espalhando pelo chão de pedras.
As casas eram brancas e simples, se ouvia uma anedota a cada esquina.
A cada velha e preciosa igrejinha um assombro.
Naves douradas, fantasmas nos altares, peças escultóricas de tamanhos deslumbrantes.
Palácios, oratórios, casebres e mansões. Mariana, Ouro preto, São João Del Rei e Tiradentes.
Por mais que existam coisas monumentais, tudo é singelo em Minas.
Tarsila soube traduzir como ninguém as curvas das montanhas e as retas da arquitetura.
São lugares dum sublime pequenino, dum equilíbrio, duma pureza tão bem arranjadinha e sossegada, que são feitas pra querer bem ou pra acarinhar.
Dentre as riquezas dessa terra, estão ainda as obras de Aleijadinho, o arquiteto escultor.
Um gênio maior do nosso país com seus traços sinuosos e formas gloriosas.
Nas Gerais, reside o nosso passado esplendoroso e primordial, na ingenuidade de sua gente e nos traços de seus mestres barrocos.

III
Oswald de Andrade definiu essa viagem de 1924 como a de “descoberta do Brasil”.
Tudo havia sido tão proveitoso que planejamos repetir a experiência anos depois, mas agora indo mais ao norte. Por um infortúnio, Tarsila e Oswald não nos acompanharam, mas resolvi descer por todo o rio Amazonas ao lado de outros companheiros.
Foi aí que me tornei definitivamente um turista aprendiz.
Durante mais de três meses, fui sendo levado pela correnteza do rio-mar até dizer chega.
Tomei navios, embarquei em canoas, percorri trilhos de trem, subi em carroças.
A foz do Amazonas é uma dessas grandezas tão grandiosas que ultrapassam as percepções fisiológicas do homem. Tudo é tão vasto e encantador que nos coloca frente a nossa mortalidade.
Uma natureza pulsante, selvagem e voluptuosa. As belas vitórias-régias, o verde fortíssimo das folhagens, peixes saltando e o banzeiro dos rios.
A cada nova parada, refazia minha alegria, tomava nota, fotografava, experimentava novos sabores e recolhia histórias. Quantas histórias! Lendas e sabedorias daquele povo.
Pescadores, vendedores, artesãos, caciques e pajés, gente de todos os tipos.
Experimentei o açaí do mercado Ver-O-Peso, me deliciei com castanhas e peixes.
Uma enorme comoção senti em Marajó, verdadeiro paraíso com seus búfalos.
Mas de toda a gente que conheci, foi dos indígenas brasileiros que recolhi as melhores narrativas. Tanto que inventei minhas próprias tribos, com linguagens próprias e seus códigos.
Foi uma bonitíssima duma viagem. Por esse mundo das águas, vi as coisas bonitas que já enxergue.

IV
Obviamente, meu desejo de devorar o Brasil não parou por aí. Depois de tantos bons sabores, precisava saborear mais.
A bordo do Vapor Manaus explorei do litoral cearense ao sertão pernambucano.
Em Recife, me hospedei na fazenda do grande pintor e amigo Cícero Dias.
Depois do nosso passado e da nossa gente, descobri a capacidade do nosso povo de festejar.
Recolhi cocos, cantigas, repentes e temas de cheganças. Fui a ensaios de Maracatus.
Anotei, registrei, mas também me esbaldei. Nunca me esqueço de um Carnaval que passei em Recife. Cai no frevo por demais. Tomei um porre daqueles.
Além da festa, também rezei terços. Fechei um corpo num catimbó.
Quantos tambores formam nosso país? Seja nas umbigadas, pungas, frevos, macumbas e sambas.
Depois de cruzar o país, eu não queria mais parar de colecionar histórias, foi então que me embrenhei no interior de São Paulo. Lá encontrei as raízes do samba paulistano, no toque do bumbo na festa de Bom Jesus de Pirapora, que definiu as matrizes rítmicas deste gênero.

Nos Carnavais e nas batidas desses tambores, reencontrei uma mocidade alegre. Aquela mesma do Norte e do Nordeste, que são as múltiplas caras do nosso Brasil.
Não sei se até hoje encontrei o país que tanto procurei. Mas sei que nos batuques e nas festas, muitos países são formados, verdadeiras nações.
Em horas sentado numa rede, descrevi e imaginei com saudade de tudo aquilo que me tinha transformado. Pois agora, carregava comigo na bagagem novas crenças, afetos, macumbas, feitiçarias, crendices e tantas outras ciências.
A minha “Paulicéia” parecia pequena e provinciana, em um desvario meu seria mesmo uma verdadeira “Brasiléia”. Um mosaico arlequinal de tanta gente, tantas vozes, tantos saberes, que se somam e misturam.
Que nós, brasileiros, possamos sempre lutar e construir um novo país. Temos que dar uma alma a ele, isso é um sacrifício grandioso e sublime.

Criação e desenvolvimento do enredo: Jorge Silveira e Leonardo Antan
Texto: Leonardo Antan
Alguns trechos são adaptações dos escritos de Mário de Andrade em Turista Aprendiz.

Referências bibliográficas
ANDRADE, Mário de. Danças dramáticas do Brasil I. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1982
ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz / edição por Telê Ancona Lopez, Tatiana Longo Figueiredo. Brasília, DF: Iphan, 2015.
ANDRADE, Mário de. O samba rural paulista. In: Aspectos da Música Brasileira. São Paulo: Martins, 1965.
ANDRADE, Mário de. Pauliceia desvairada. Barueri: Editora Novo Século, 2017.
ANDRADE, Mário de. Seleta erótica /org. Eliane Robert Moraes. São Paulo: Ubu Editora, 2022.
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