O culto de Ifá estará presente no carnaval de 2024 através do desfile dos Acadêmicos do Tucuruvi. A amizade entre Exu e Orunmilá será o fio-condutor da história que passará pela criação do mundo na crença iorubá, os lugares onde Ifá se estabeleceu e o clamor pelo respeito e tolerância entre os povos. A série “Barracões” do site CARNAVALESCO esteve na Fábrica do Samba para conhecer mais a respeito do processo de construção do enredo assinado pelos carnavalescos Dione Leite Yago Duarte.
Inspiração para o enredo: a ideia por trás de falar de Ifá
A Tucuruvi já havia abordado a África em um contexto geográfico no passado, mas será a primeira vez em sua história que a escola levará para a Avenida um enredo de cunho religioso africano. Dione Leite falou a respeito dessa experiência que é inédita não apenas para a comunidade da Cantareira, como também para o próprio carnavalesco e o impacto que o contato com Ifá teve em sua vida.
“A Tucuruvi, pela primeira vez, traz um enredo de cunho religioso africano, sobre a ancestralidade africana. Ela nunca tinha tratado de nenhum tema específico de matriz africana, e esse é o primeiro carnaval da escola. Interessante, além da escola, que é o meu primeiro e o primeiro do Yago também, então nós estamos todos debutando no mesmo ano em fazer uma temática que tanto queria fazer. Quando surgiu o Ifá, há alguns anos, o Rodrigo, nosso vice-presidente e diretor de carnaval, se iniciou em Ifá e na época ele nos falou o que poderia ser falado, mas era bem próximo ao carnaval, não se tinha muito tempo. Quando foi janeiro do ano passado, antes de levar Bezerra da Silva para a Avenida, aqui nessa sala a gente estava conversando e já se falava do próximo desfile. O Rodrigo falou: ‘bom, ano que vem nós podemos trazer um enredo africano para a Avenida, só que a África que a gente queria tanto’, e aí vem a proposta. Quando passa o carnaval o Rodrigo falou: ‘óh, já tem um caminho. Vamos falar de Ifá’, e para a gente foi, de verdade, falo por mim, um dos maiores presentes nas nossas vidas, e eu acho que para a escola também. Não menosprezando nada que passou, que faz parte hoje já do rol de grandes enredos do Tucuruvi, mas com certeza nada maior, nada mais intenso, nada mais profundo, cultural e filosófico do que Ifá. É muito abrangente, e por incrível que pareça é sobre pessoas, é sobre seus comportamentos, é sobre suas vidas pessoais, e Ifá nos traz isso. A gente ganha de presente esse enredo maravilhoso que tem mudado a vida da gente muito”, declarou.
Aas pesquisas de desenvolvimento do enredo proporcionaram um efeito transformador na vida dos carnavalescos. Yago Duarte falou a respeito do que sentiu ao longo do processo.
“A maior transformação que eu passei esse ano, ao desenvolver esse projeto junto com o Dione é interna. É sentir uma fé que eu não sentia há muito tempo, é sentir uma energia que eu não sentia há muito tempo. Tem uns lapsos de criatividade e de pensamentos que eu não tinha há muito tempo, então esse projeto tem sido inacreditável do nosso ponto de vista pessoal e profissional também. É um enredo que nos trouxe muita energia diferente. Está tudo muito diferente com a gente desde o primeiro rascunho de desenho, desde a arte do enredo, desde a primeira pesquisa, desde a primeira palavra dos livros que a gente leu. Tudo tem tido um valor emocional muito grande para a gente, e temos sentido muito a fé também até pelo privilégio que nós tivemos de conhecer de perto Ifá. Isso tem sido muito transformador na criação e desenvolvimento desse carnaval”, afirmou.
Processo de desenvolvimento: a permissão de Ifá para contar sua história
O culto de Ifá envolve ritos sagrados aos quais os não-iniciados não costumam ter acesso, e para abordá-los os carnavalescos precisaram de uma permissão especial vinda diretamente de Ifá através de Pai Maurício, babalaô e principal mentor por trás do desenvolvimento do enredo. O contato com a autoridade religiosa se revelou mais que especial para Dione Leite.
“No início do enredo nós tivemos não só participação, mas o trabalho junto e que trabalha até hoje com a gente do Vinícius Natal, que veio do Rio de Janeiro. O Rodrigo traz o Vinícius para a escola como uma ferramenta muito importante de pesquisa. Mas quando nós vamos, Rodrigo nos apresenta ao Babalaô Pai Maurício, que é chefe na Nigéria e Pai de Rodrigo. Quando Rodrigo nos apresenta a ele e nos leva até a casa do Pai Maurício, a gente tem uma noção real do que era Ifá. Sabíamos que teríamos uma mentoria, mas não esperávamos que essa mentoria seria algo tão intenso. Nós tivemos permissão para conhecer Ifá de perto porque Ifá, o rito, é fechado, ele é muito sagrado. Nós tivemos acesso, com permissão de Ifá, a conhecer alguns lugares onde pessoas que não são iniciadas não entram para que a gente pudesse saber como mostrar isso na Avenida. A figura do Pai Maurício, desse mentor incrível, maravilhoso, é que o Pai ele nos assessora e nos guia, dentro desse caminho junto do Rodrigo, a levar o enredo a um lugar seguro. Yago está falando uma verdade, que quando nós começamos a pesquisa e a ler Ifá ele criava tantas ramificações, se expandia tanto na nossa mente que ficava difícil de você conseguir localizar, de conseguir se concentrar. Para entrar num lugar, para criar um desfile plástico de uma escola de samba, para que tenha um samba de enredo, um filme todo, tudo que se precisa ter da sinopse, se você não tiver com a mão certa você pode levar para outro lado o que não desejar. Mas desde o início Rodrigo tinha enfatizado muito o que ele esperava do enredo, que era deixar uma semente plantada em cada pessoa e mostrar essa filosofia ao mundo para ajudar a propagar Ifá, que era algo que ele tinha prometido pessoalmente na iniciação dele, que um dia ele iria mostrar o quanto Ifá era bom porque tinha sido bom para ele”, relatou.
Falar diretamente de Ifá é uma novidade no carnaval como um todo. Para que essa história pudesse ser contada na Avenida não foi apenas necessário pedir a permissão para tal na cidade mais antiga do mundo de acordo com a crença iorubá, como também a linha narrativa do enredo gira em torno de um pedido feito por Ifá.
“Nosso enredo foi consultado lá em Ile-Ifé, na Nigéria, onde está Ifá hoje. Foi consultado lá, pelo pai Maurício, junto ao babá nigeriano, que hoje é o grande Akodá, o terceiro homem do Arabá, a terceira pessoa mais importante dentro do processo de Ifá na Nigéria e no mundo, um dos conselheiros pessoais da eminência. Quando eles fazem a consulta, Ifá nos dá permissão de poder trabalhar esse enredo. Até então, nunca tinha sido tratado só sobre Ifá no carnaval. É a primeira vez no carnaval que alguém vai falar sobre Ifá. Ifá apareceu em vários enredos como passagens, mas não um enredo específico somente dele. Ainda tem um pedido que nós mostrássemos Exu e Orunmilá e essa amizade deles, e por isso que quem conta a história do nosso enredo é Exu afinal nada melhor do que um amigo falar do outro. Mostra também muito a questão de que esse Exu, diferente do Exu brasileiro, do Exu catiço, que é tão demonizado pela sociedade, que não é nada de demônio porque isso é só no Brasil. Na Europa e em outros lugares o Exu é uma energia vital, uma energia que movimenta, é a energia da abundância, é a energia da prosperidade, dos caminhos abertos. Todos nós carregamos Exu dentro de nós porque essa vitalidade que nós temos, a nossa força é Exu, para entender essa energia de Exu. Não tem como nós carregarmos um demônio, por isso que durante muito tempo se tentou mudar essa imagem. Hoje um dos papéis importantes do Tucuruvi é tirar essa imagem, mostrar que o Exu iorubano é um ser divino, sagrado, uma divindade extremamente potente capaz de mover tudo e capaz de mudar tudo à sua volta. Então esse é o grande papel que Ifá está trazendo para nós. Ifá, que é o dono do destino, que é aquele que traça o nosso destino. Mas só para ver, sem Exu em Ifá nós não teríamos o caminho para chegar. Exu é tão importante no processo todo, principalmente dentro de Ifá, porque sempre quando se vai realizar um ebó em Ifá, quando eu tenho que fazer algo no jogo, primeiro eu preciso sempre alimentar Exu, que é a boca que tudo come, para depois poder alimentar qualquer outra situação na minha vida. E é assim que é o Tucuruvi, ele abre com o Exu e ele fecha esse desfile com o Exu”, contou.
Setor a setor: a representação de Ifá no desfile da Tucuruvi
A Tucuruvi levará ao Sambódromo do Anhembi um desfile dividido em cinco setores, explicados em detalhes por Yago Duarte. O primeiro segmento, representado na comissão de frente da escola, abordará a criação do mundo através da cosmogonia urbana.
“A gente iniciou o desfile com a criação do mundo, quando nada existia, porém já havia a presença de Exu e Olodumarê, então de toda essa inquietação surgiu a luz e surgiu a humanidade. Surgiu o universo, os planetas, surgiu tudo que a gente conhece hoje em dia. Então a nossa abertura de desfile é a criação do universo, a participação de Exu, Olodumarê e Orunmilá”, explicou.
O segundo setor do desfile apresentará os elementos de Ifá passando por Ile-Ifé, na Nigéria, considerada pela crença iorubá a cidade mais antiga do mundo. De acordo com o dialeto africano, “Ylè” significa casa, portanto Ile-Ifé seria o primeiro lugar que a humanidade chamou de lar.
“A gente vem conhecer os elementos de Ifá, os elementos sagrados de Ifá, que fazem parte dessa filosofia, dessa religião. As insígnias que são os Odus, a gente conhece ali os grafismos, conhece as texturas, as cores. A gente passa por Ile-Ifé, de onde vem todos os fundamentos, de onde nasceu uma das vertentes de Ifá, de onde surgiram os seres humanos. Ile-Ifé é considerada a primeira cidade segundo os iorubás, a primeira cidade da humanidade. Então a gente passa pelos fundamentos de Ifá saindo de Ile-Ifé.”
O terceiro setor mostra o momento em que Ifá sai da Nigéria e se espalha pelo mundo através de uma das fases mais cruéis da história: a diáspora africana. Quando os povos africanos foram escravizados e enviados à força para diferentes lugares do mundo. A crença em Ifá resistiu aos navios negreiros e se espalhou principalmente pelas Américas, onde formaram-se diferentes “Iles”.
“Passamos ali pela diáspora africana, de onde todos os saberes, toda a fé e energia resistiram a esse processo tão doloroso que foi a saída de lá, a vinda dos escravos para as Américas, e foi a forma que Ifá chegou até aqui. Ifá resistiu a esse processo doloroso, e depois que chegou nas Américas foi parar em Cuba, foi parar no Haiti, veio parar no Brasil.”
O quarto setor é o Ile-Brasil, a morada estabelecida por Ifá no país em Salvador e o encontro de Ifá com os elementos naturais brasileiros.
“Quando chegou no Brasil, Ifá encontrou uma terra que era muito parecida com aquela de onde ele tinha saído, então imediatamente ele se identificou e a gente fala dessa identificação com os quatro elementos. Ifá encontrou os quatro elementos vitais para que ele pudesse estabelecer a sua nova morada. Ifá saiu de Ile-Ifé e veio para o Ile-Brasil”.
O desfile do Tucuruvi se encerra no quinto setor, onde a escola convida a todos a repensar sobre a questão da intolerância e falar de tolerância com amor. Essa é a grande mensagem que Exu e Orunmilá deixarão para o público que assistir ao desfile da escola
“Finalizamos o desfile com a mensagem de paz, de esperança, de união de todos os povos, de respeito, de tolerância, de que Exu pode nos levar a todos os lugares, de que Exu é um ser benevolente e que a amizade dele com Orunmilá foi primordial para que Ifá pudesse se estabelecer nos quatro pontos do mundo, e que cuidar da nossa vida espiritual é primordial para que a gente possa ser uma pessoa boa. É isso que Exu prega para as nossas vidas, e a gente termina o desfile com essa mensagem de tolerância e de que se todos nós nos unirmos, a gente consegue ser feliz, a gente pode ser feliz, a gente pode conquistar tudo aquilo que está no nosso destino”, concluiu Yago.
Dione detalhou a respeito de como a abordagem pedida por Ifá dos diferentes elementos do culto e as orientações recebidas ao longo do processo influenciaram o desenvolvimento do enredo.
“Quando é consultado Ifá para saber se poderia fazer o desfile, se poderia falar dele, Ifá se manifesta através do Aponga e diz que nós deveríamos mostrar ao mundo a amizade de Exu e Orunmilá. A gente tem a presença de Exu muito latente em um desfile junto a Orunmilá para a construção tanto da narrativa quanto da construção visual. Eles abrem e fecham o desfile de maneira muito simbólica para que as pessoas possam ter esse entendimento. Sobre os fundamentos eles são muito fechados, são lugares que pessoas que não são iniciadas não têm acesso, então a gente até preferiu não expor porque não era cabível, mas nós tivemos a mentoria e orientação de como mostrar isso dentro da Avenida de outras formas. Por exemplo, a gente traz para o desfile uma pedra de yangui, que representa Exu, é a pedra de Exu. A gente tem elementos diferentes dentro da construção narrativa. Muita gente sabe o que é a pedra de yangui, mas a gente tenta trazer ela para o desfile de uma forma diferente, além de outras ações que vão acontecer durante o desfile, que são ações muito importantes que começam a mostrar para as pessoas. Por exemplo, como que um babalaô educa os seus filhos, os seus iniciados, e outras tantas situações que têm. Esse segredo é bom para deixar curioso”, disse.
Lições que a Tucuruvi anseia em transmitir
“Que Exu é bom. Que Exu nos dá caminho. Que Exu é bom e que ninguém pode ter dúvida disso. Ele não faz maldade. Ele é bom.”
Com essa simples afirmação, Yago Duarte define a mensagem que espera que o público absorva após o fechar dos portões do desfile da Tucuruvi. Dione Leite aproveitou para falar sobre como a escola está vivendo a experiência de falar de Ifá no carnaval de 2024.
“É uma semente. Ganhar o carnaval é uma consequência de um trabalho ser bem-feito. Ponto. É óbvio, mais do que nunca, a energia que hoje rodeia o Tucuruvi, a energia que rodeia a nossa quadra, os nossos componentes, o poder do samba de enredo. O samba é extremamente poderoso, ele é avassalador dentro da quadra. Um samba que vem crescendo a cada ensaio absurdamente. Mas sabe aquele negócio de você passar e você saber que a pessoa vai ter a curiosidade de saber o que é isso? Quando você se inicia em Ifá, você desperta para uma nova vida. É como se você matasse um velho homem para renascer um novo homem. Um novo homem disposto à harmonia porque Ifá ele é harmônico, Ifá só está sob a harmonia. Se uma das peças da tua vida, uma engrenagem, não estiver em harmonia com as outras, Ifá tem esse poder de ir lá e organizar para que você tenha uma vida abundante, tenha uma vida próspera em todas as áreas. Quando a gente fala em abundância e prosperidade, parece que é só dinheiro, mas não, é muito além. Tem outras coisas que envolvem o ser humano”, afirmou.
“Eu quero até complementar a fala do Dione de que as pessoas confundem prosperidade com poder aquisitivo, e não é isso. O que a gente prega é que prosperidade é ter uma vida espiritual boa, é ser feliz. A prosperidade não depende do quanto de dinheiro você tem, ser próspero não é isso”, completou Yago.
Por fim, Dione e Yago manifestaram a satisfação de levarem o culto de Ifá para a Avenida no desfile dos Acadêmicos do Tucuruvi em 2024.
“Eu tive um relato do Pai Maurício essa semana, nosso babalaô maravilhoso, que falou bem assim. Quem se inicia em Ifá, quando acorda de manhã, ele dá bom dia, mas não da boca para fora. É porque ele vai ter um bom dia. Quem se inicia em Ifá, quando olha uma cadeira fora do lugar, ele não vai chutar a cadeira. Ele vai olhar, pensar, pegar aquela cadeira e colocar no lugar. Ifá é essa harmonização. Que a gente possa, na manhã do domingo de carnaval, despertar para uma nova vida, despertar para uma nova consciência de vida e que a gente possa olhar o céu e dar um bom dia diferente de todos os outros que a gente viveu. Acho que aí a Tucuruvi cumpriu o seu papel com Exu e Ifá, essas duas divindades tão espetaculares que a gente está tendo a oportunidade de conhecer, de se familiarizar e de respeitar mais ainda. E já de antemão quero agradecer por todo o caminho até aqui. Parece clichê isso e acho que todos os anos a gente meio que fala a mesma coisa, mas de verdade, eu não tenho uma mensagem que eu não troque com o Rodrigo quando está falando de carnaval, de alguma coisa que deu certo, que eu digo pra ele. Gratidão por me permitir viver isso, Rodrigo. Porque, de verdade, eu não esperava. Eu achei que iria me aposentar sem isso. Hoje, eu estou muito feliz. Muito, muito, muito, muito. A gente está em janeiro, está cansado, mas não é um cansaço mental. As pessoas falam para mim: ‘pô, eu não vejo a hora disso acabar’. Não, eu não vejo a hora disso ir lá. Eu nunca quis entrar tanto na Avenida. A Tucuruvi nunca quis tanto realizar esse desfile. A gente nunca esteve tão empolgado. É essa energia que nos rodeia, é essa energia que hoje toma conta da Tucuruvi, é essa energia que o Rodrigo nos proporcionou lá atrás em nos apresentar Ifá, em trazer o Pai Maurício, em nos apresentar o Akodá na Nigéria, em nos colocar dentro de uma filosofia, um universo totalmente diferente de tudo que a gente tinha conhecido até hoje. A gente é muito grato”, concluiu Dione.
“Esse carnaval foi um privilégio gigantesco e a gente não tem nem como medir o tamanho do privilégio e dos acessos que nós tivemos para conhecer. Primeiro que não tem como a gente medir e não tem como a gente pagar essa gratidão. É um projeto que mudou a minha vida e do Dione. É um projeto que tirou de nós aquilo que a gente não achava que conseguia, então a gente não tem como pagar isso, essa oportunidade e esse privilégio que a gente tem de falar de Ifá”, finalizou Yago.
Ficha técnica
Enredo: “Ifá”
Diretor de barracão: Roberto Guedes
Coordenador de ateliê: Carlos Westerley
2000 componentes
20 alas
4 alegorias
Ordem de desfile: Sétima escola a desfilar no dia 10 de fevereiro pelo Grupo Especial