De volta ao Grupo Especial após 12 anos, a Porto da Pedra vai levar para a Marquês de Sapucaí um desfile de muita brasilidade. Com o enredo “Lunário Perpétuo: A Profética do Saber Popular”, do carnavalesco Mauro Quintaes, a escola de São Gonçalo contará a história do almanaque que prometia decifrar desde a previsão do tempo até o comportamento dos insetos. Durante 200 anos, foi o livro mais lido do Nordeste brasileiro.
E para marcar este retorno, a agremiação promete entrar na Passarela do Samba repleta de riqueza e imponência: ao todo, serão nove alegorias – entre um tripé e a acoplagem do abre-alas. O tigre, tradicional mascote e símbolo da Vermelha e Branca gonçalense, pode chegar a 22 metros de altura e tem o mesmo tamanho em comprimento – o maior já feito pela equipe. Segundo Quintaes, o desfile terá como proposta quebrar barreiras e mostrar que o lugar da Porto da Pedra é na elite do carnaval carioca.
“O desfile da Porto da Pedra vai mostrar que tudo é possível. Acredito que a gente não tem que se conformar com a mecânica que, durante alguns anos, existe no carnaval. Estamos aqui para derrubar as paredes, criar novos parâmetros e mostrar que uma escola que sobe pode sim vir bonita, preparada, bem acabada, com um investimento alto e com a autoconfiança do desfilante em poder representar o seu município. Tudo isso, agregado ao momento da escola, vai, sem dúvidas, criar um grande sucesso no desfile”, afirma o carnavalesco.
Desde o início, o projeto tem como ideia tornar cada carro alegórico uma pequena comissão de frente, como explica o carnavalesco. Para isso, a escola realiza um trabalho focado na plástica, com setores que vão proporcionar momentos únicos e de fácil entendimento, além de alegorias autoexplicativas. Com essa proposta e a chegada em peso do povo de São Gonçalo, a expectativa é de um grande retorno do público.
“Cada alegoria terá um momento diferenciado. Vou citar como exemplo o carro dos profetas da chuva: talvez chova na Avenida. No carro das benzedeiras, talvez elas possam passar uma erva, queimar um incenso. Em cada carro alegórico nós tivemos a preocupação de criar um momento impactante, porque isso faz com que o espectador se divirta, se interesse e assim possa existir uma troca entre Avenida e público. Para que essa troca ocorra, é preciso que eles (público) tenham o entendimento. Serão setores de fácil compreensão e um enredo de fácil leitura – desde o samba que é maravilhoso até o impacto da plástica”, detalha Quintaes.
Do almanaque ao enredo
O Lunário Perpétuo foi escrito por Jerónimo Cortés Valenciano e publicado em 1594, na Espanha. Repleto de ensinamentos e um verdadeiro almanaque, o livro serviu de orientação para a agricultura, astrologia e até para a previsão do tempo: se a abelha agia de tal forma, era sinal de chuva. No Brasil, desembarcou no século XVIII com tradução de Antônio da Silva de Brito e, de acordo com o historiador Câmara Cascudo, foi o livro mais lido do Nordeste por 200 anos. Em 2002, serviu de inspiração para o espetáculo musical “Lunário Perpétuo”, do artista Antônio Nóbrega.
Justamente através da obra de Antônio Nóbrega surgiu a ideia do enredo. Mauro voltava da comemoração do título do Grupo de Acesso, no ano passado, quando ouviu no rádio um documentário sobre o Movimento Armorial – do escritor e filósofo Ariano Suassuna – e lembrou do trabalho de Nóbrega. O estudo e elaboração da proposta contou com o apoio do enredista Diego Araújo.
“Dentro deste documentário citaram o Quinteto Armorial, que tem a figura do Antônio Nóbrega. Daí eu lembrei que ele tem um trabalho de 2002, que é o Lunário Perpétuo, e fui buscar o que era, já que eu conhecia somente pela sonoridade da palavra. Quando me aprofundei, passei para o nosso enredista, Diego Araújo, que se aprofundou ainda mais. A partir daí criamos o ‘Lunário Perpétuo: A Profética do Saber Popular’, que é justamente a história desse almanaque que ultrapassa os séculos educando e informando”, explica.
Para o carnavalesco, o fato do Lunário ser o livro mais lido do Nordeste brasileiro por mais de 200 anos dá ao enredo uma cara de brasilidade. Após o campeonato da Imperatriz Leopoldinense, que falou sobre Lampião, o enredo escolhido pela Porto da Pedra foi uma maneira de reavivar, com outro foco, o olhar para a região, como afirma Quintaes.
“Foi uma maneira da gente reavivar esse olhar nordestino, mas com um foco totalmente diferente. Quando descobrimos que por 200 anos o livro foi o almanaque mais lido do Nordeste – que alfabetizou, educou, orientou a agricultura e mostrou caminhos – entendemos que isso deu ao enredo uma cara muito forte de brasilidade. A partir daí, nos convencemos que o Lunário Perpétuo, além de ser um almanaque medieval escrito por um grande alquimista, se torna brasileiro e tem o cunho de importância que é colocado dentro do desfile”, comenta.
Desfile
Entregar algo impactante é fundamental para abrir a noite de apresentações da elite do carnaval. Hoje a única escola de samba representante de São Gonçalo, a agremiação aposta na plástica, na força do canto da comunidade e no orgulho de levar o nome da cidade ao Sambódromo.
Mauro acredita que os avanços no cenário carnavalesco elevaram o patamar dos desfiles. Com a responsabilidade lá em cima, o grande trunfo da escola na Avenida será mostrar a força de seus quesitos e da comunidade gonçalense, além da constatação que a Porto da Pedra acompanha a evolução do mundo do samba e veio para ficar.
“O carnaval naturalmente já está muito disputado. O sarrafo está muito alto, por conta dos novos valores, das novas estéticas que são impostas e pelo novo olhar político que a Marquês de Sapucaí transformou-se – ela se tornou um grande palco de manifestações, interesses e anseios políticos. A Porto da Pedra consegue visualizar tudo isso, porque é uma escola moderna e de gente nova. Estamos muito bem inseridos neste contexto. O nosso desfile será bem pertinente e que também terá o olhar político”, destaca o carnavalesco.
Uma das inovações anunciadas pela Liesa, o novo sistema de iluminação da Marquês de Sapucaí também será utilizado pela Porto da Pedra. Ao site CARNAVALESCO, Mauro Quintaes revelou que o efeito será usado tanto na comissão de frente quanto no abre-alas e também, em algumas outras alas. Segundo ele, o recurso terá um impacto principalmente na comissão de frente, com momentos pontuais que serão muito valorizados pela iluminação.
Questionado sobre o que considera características de seus desfiles e que não podem ficar de fora neste ano, o artista destacou a cenografia e a preocupação em que cada alegoria não se pareça com a outra.
“Não sou um carnavalesco de grandes adereços, fitinhas e babadinhos. Meus carros são grandes cenografias, daí me apego justamente nos pequenos detalhes. Eu gosto de criar cenografias dentro de uma grande cenografia que é o carro alegórico. Outra coisa muito importante é que um carro não pode se parecer com outro em nada – não só na técnica, mas no uso de materiais e formas. Ou elejo alguma leitura artística, ou crio uma estética própria com essa preocupação de não me repetir muito. O espectador é a extensão do julgador. Se ele se encanta, certamente consigo chegar no coração do julgador – se não tiver erros técnicos. A minha história se resume a isso: momentos que agradam ao olhar”, afirmou.
Já sobre o tigre – que será o maior levado para a Passarela do Samba pela escola – o carnavalesco conta que foi um pedido feito pelo presidente da agremiação, Fabio Montibelo. De acordo com Quintaes, o mascote faz parte de um conjunto de abertura e estará dentro do contexto da alegoria e do enredo.
“Ele (Fabio Montibelo) ficou 12 anos sob o comando da escola e esperando por este momento. A primeira coisa que me pediu quando assinamos o contrato é que eu fizesse o maior tigre que a Sapucaí já viu. Fizemos um tigre de 22 metros e que também chega nesta altura, porque ele dá um grande bote na Avenida. Ele é o nosso grande mascote e símbolo da Porto da Pedra. A ideia é fincar essa garra no Grupo Especial e não sair mais”, revela.
Conheça o desfile da Porto da Pedra
O Tigre de São Gonçalo vai abrir a primeira noite de desfiles do Grupo Especial, no dia 11 de fevereiro. A escola vai para a Apoteose do Samba com 22 alas, seis alegorias e um tripé. Ao todo, serão 2800 componentes.
Setor 1: “Ele conta sobre Jerónimo Cortés Valenciano. A figura dele surge no abre-alas, daí já vamos ter essa mística dos alquimistas, magos, laboratórios. A gente tem água, fogo, terra e ar. É o grande momento onde teremos a ala das baianas, comissão de frente. A comissão está muito integrada ao primeiro setor e ao abre-alas. Não é uma coisa à parte, porque, às vezes, vemos algumas comissões que não tem muito a ver com o que vem atrás. Eu gosto de fazer com que essa onda estética leve o observador para dentro da história. Cada setor será uma página do Lunário. A gente abrirá com essa criação e escrita medieval do Jerónimo”.
Setor 2: “O Lunário decodifica o comportamento dos insetos. Isso porque ele ensina que se a abelha age de tal forma, a florada será de um jeito; se o cupim segue um caminho, irá chover. Isso é fantástico, estamos falando de 1500”.
Setor 3: “A gente dá uma ‘virada’ mais contemporânea depois dos insetos. Teremos Manoel Caboclo, que foi o nordestino que também utilizou os ensinamentos do Lunário Perpétuo. Ele traz o Lunário em seus conselhos e editou cordéis ligados ao almanaque”.
Setor 4: “Partimos para as benzedeiras. As raízes, ervas e os ensinamentos do Lunário de como curar, como se prevenir. Teremos uma grande benzedeira, que é o ‘xodó’ do barracão. Todos quando passam por ela fazem o sinal da cruz e benzem-se, porque ela está aqui para proteger a Porto da Pedra. É um carro, entre aspas, muito cinematográfico e teatral. Nele vamos homenagear os fundadores da escola. Estarão ali, de alguma maneira representados – as pessoas vão ter que descobrir onde eles estão”.
Setor 5: “Falo do Armorial, do Ariano Suassuna – que também está na trajetória do Lunário. Vamos misturar um pouco essa coisa do medieval com o medieval brasileiro, com as armas, ferros de marcar gado e com as estampas do (Gilvan) Samico, que foi a estética que escolhemos para representar o Armorial. Neste setor teremos o Ariano Suassuna e o Auto da Compadecida”.
Setor 6: “O Armorial de Suassuna (setor 5) abre para o Quinteto Armorial. Surge a figura do Antônio Nóbrega, que foi o inspirador do enredo e virá fechando o desfile. Um grande brincante nordestino, nome fortíssimo da cultura brasileira. Reforçamos a história do Antônio, que é o grande representante contemporâneo do Lunário Perpétuo”.