Com base no que foi visto em ensaios técnicos, a Harmonia da Rosas de Ouro trazia muitas dúvidas para o desfile da agremiação, quinta a desfilar na sexta-feira de carnaval no Sambódromo do Anhembi. A escola, entretanto, teve justamente em tal quesito um dos grandes trunfos para um grande desfile realizado para apresentar o tema “Kindala! Que o amanhã não seja só um ontem com um novo nome”. Com um enredo forte e um samba com uma história bastante peculiar, a escola, que desfilou em 62 minutos (três a menos que o limite do tempo regulamentar) teve um pequeno deslize na comissão de frente. * VEJA AQUI FOTOS DO DESFILE

Harmonia

A temporada de ensaios técnicos da Roseira, acompanhada pelo CARNAVALESCO em na totalidade, foi bastante irregular. No primeiro, um “sacode”, como definiu Royce do Cavaco; nos dois seguintes, entretanto, o canto foi bem mais fraco. O trabalho da direção de Harmonia da Roseira, capitaneado por Júlio Cesar Teixeira, Fernando e Bruno Raimundo Amaral, porém, mostrou-se primoroso na avenida.

Cantando desde a primeira ala a entrar no Anhembi, a Rosas de Ouro fez com que as barulhentas caixas de som da passarela se tornassem algo secundário. Era possível verificar o quão alto a agremiação, em todas as alas, veio disposta a cantar alto o samba escolhido – e tão querido pela comunidade.

Os harmonias não tiveram muita preocupação, também, com o alinhamento de componentes em cada ala. Sem grandes percalços, os staff mostravam semblante satisfeito com o desempenho da agremiação na avenida.

Enredo

Referendado por citações de grandes eminências afrodescendentes, como Silvio Almeida e Djamila Ribeiro, o enredo “Kindala! Que o amanhã não seja só um ontem com um novo nome”, remete à uma única palavra – que, no dialeto banto, significa “agora”, provando a urgência de discutir a questão afro e a inclusão de cada um deles na sociedade. Sempre convocando cada um dos desfilantes e espectadores a lutar contra o racismo, a Roseira veio dividida em cinco setores – intitulados com versos do samba-enredo e que deixam clara a interdependência entre cada um deles.

No primeiro deles, “O Negro É o Pai da Humanidade”, são dissecados aspectos relativos ao continente africano, remetendo à ancestralidade e diversos tópicos existentes no tema. No segundo, “Mas Veio A Escravidão”, os motivos e momentos em que os afrodescendentes eram aprisionados. O terceiro, “Lá Em Palmares Um Grito De Liberdade”, uma imensa exaltação ao local onde milhares de escravos fugidos se juntaram para buscar uma vida em sociedade liberta. O quarto, “Lutou, Construiu A Nossa Riqueza”, relembra diversas personalidades que venceram o preconceito – como Machado de Assis e Pixinguinha. Por fim, no último, “E A Gente Tem Que Repensar”, uma imensa reflexão sobre a condição dos afrodescendentes na sociedade (e todas as mazelas nas quais eles estão inseridos, com direito a preconceitos) é abordada.

Na prática, cabe destacar que, sobretudo nos dois últimos setores, a associação era ainda mais imediata por conta das diversas personalidades afrodescendentes que estavam, de alguma forma, representadas. Glória Maria, Martin Luther King, Nelson Mandela e outras tantas celebridades marcaram presença na azul-e-rosa com os rostos estampados em algum momento da exibição.

Samba-Enredo

A história da canção levada para a avenida pela Roseira em 2023 é raríssima. O samba-enredo foi escrito originalmente para o desfile em 2006, quando a escola trouxe o enredo “A Diáspora Africana. Um Crime Contra Raça Humana” – também de temática afro. Segundo colocado na disputa, ele seguiu tendo muito carinho por parte da comunidade. Eis que, ao voltar a olhar para temáticas afro, a azul-e-rosa adaptou a canção para, enfim, leva-la ao Anhembi.

O resultado não poderia ser melhor. A obra, de grande qualidade melódica, caiu como uma luva na voz do histórico (e em mais uma grande noite para a carreira) Royce do Cavaco. Tudo ficou ainda melhor com outra grande apresentação da “Bateria com Identidade”, de mestre Rafa.

Evolução

A Harmonia foi o grande destaque positivo e a Evolução… também correspondeu bem. Com alegorias que tinham componentes coreografados, algo que surgiu na década de 2000 e, pouco a pouco, passou a perder um pouco de espaço, os integrantes que estavam em tal posição se movimentaram bem e trouxeram dinamismo para a agremiação.

A Roseira, por sinal, mostrou bom equilíbrio entre alas coreografadas e mais leves. As sem coreografia, porém, se destacaram. Não era raro observar integrantes se movimentando com bastante agilidade, pulando, batendo no peito e fazendo outros movimentos de satisfação com o que está sendo apresentado na passarela.

O quesito foi tão bem desenvolvido pela escola que até mesmo o recuo de bateria, calcanhar de Aquiles de muitas escolas paulistanas, foi realizado com bastante eficiência. Os ritmistas entraram no local com uma fresta pequena, foram até a parede da região e retornaram para a passarela. O movimento, além de garantir muitos aplausos da Arquibancada Monumental, permitiu que a ala seguinte se aproximasse com mais tranquilidade – mesmo assim, cabia mais velocidade para tais componentes. Ao todo, a escola ficou cerca de 100 segundos paralisada para que todo o movimento fosse concluído – tempo menor que o de muitas coirmãs.

Alegorias

O carro abre-alas, concebido como “As Várias Áfricas Que Habitavam a África”, destacou a pluralidade do local, inspirada no antigo império ganês. Búfalos e um baobá eram as esculturas mais destacadas. O segundo carro, “Palmares”, é autoexplicativo: maior símbolo de resistência dos escravos brasileiros, o quilombo foi encenado com esculturas de afrodescendentes e uma escultura de Zumbi defendendo o território que o tinha como principal símbolo. No terceiro, “Lutou, Construiu A Nossa Riqueza”, trouxe os africanos que chegaram ao Brasil fantasiados focando nos conceitos de folclore e religiosidade. Oxalá, tambores e o Maracatu Elefante ganharam destaque com grandes esculturas. Por fim, a alegoria “Resistir Para Existir” representa uma imensa comunidade, local que serve de espelho para todos – nas palavras do enredo. O carro inteiro foi inspirado na Favela da Brasilândia, onde surgiu a agremiação. Celebridades afrodescendentes e o Punho de Mandela tinham bastante espaço na composição.

Na avenida, um detalhe chamou atenção. O último carro, representando a Brasilândia, teve uma execução pouco mais futurista que o visto na localidade. Ademais, tudo que estava previsto veio à avenida.

Fantasias

Nos primeiros setores, além de cores, materiais e acabamentos impecáveis, também foi observado extremo bom gosto na concepção das fantasias. E assim foi, na realidade, durante boa parte da exibição. A partir da Ala 15, intitulada “A Música Como Resistência”, os adornos por sobre o tecido mantiveram a qualidade, mas a parte mais próxima da pele de cada componente teve uma queda no luxo – algo que já estava previsto nos protótipos apresentados pela escola, entretanto.

Mestre-Sala e Porta-Bandeira

Com uma fantasia representando a realeza africana, Everson Sena e Isabel Casagrande exaltaram diversos poderosos comandantes de nações africanas, como Osei Tutu, Taharga, Cleópatra e Makeda.

A fantasia, majoritariamente em tom pastel, com a saia de Isabel com detalhes rosas, chamou atenção por unir bom gosto sem chamar atenção por cores berrantes e/ou brilho. Cabe mencionar, também, a dança de Everson e Isabel. Mais cadenciada que o de outras duplas, ambos optaram pela segurança, mas cada sequência de giros era extensa. Por fim, cabe ressaltar que Everson, em determinados momentos, preferia ter mais segurança na mão a desfraldar o pavilhão em um primeiro instante.

Comissão de Frente

Embalada por uma célebre frase de Emanoel Araújo, artista plástico e intelectual morto em 2022 (“O navio negreiro sempre foi o grande vilão da história”), os componentes, coreografados por Helena Figueira de Moura Ramos, vieram com figurino com riqueza de detalhes na pintura corporal representando o “povo feito de ferro”, em alusão à resistência dos que eram forçados a embarcar em navios negreiros – representado pelo tripé do segmento. A coreografia, dividida em dois atos (no navio negreiro e fora dele), apostou na expressão, representando a dor e a luta.

A coreografia, bastante expressiva e já conhecida pela evolução em cada ensaio técnico, superou-se no Anhembi. Com um figurino todo especial e combinando com o tema do tripé, em corem bem escuras e fortes, todos executaram a contento o que foi treinado. Chamou atenção o fato de todos estarem pisando na avenida ao fazer uma apresentação especial para a cabine de julgadores e, quase sempre, apenas nesse momento, executando diversos movimentos no próprio navio negreiro.

No tripé, entretanto, um raro deslize na no desfile da Roseira: os olhos dos esqueletos que decoravam o elemento alegórico se escureceram – quando, obviamente, deveriam estar ligados.

Outros destaques

Das mais premiadas baterias do carnaval de São Paulo, a Bateria com Identidade, capitaneada por Mestre Rafa, deu seu costumeiro show. Com diversas bossas, marcando quase todas as passagens do samba, a agremiação fez um movimento bastante ousado no recuo da bateria (leia mais no quesito “Evolução”).

As fantasias também trouxeram novidades. A ala 02, intitulada “Reinos, Impérios e Etnias”, tinha, nas laterais, componentes com letras que formavam a palavra “Kindala” – que deu origem ao enredo como um todo.