Dando prosseguimento a série “Barracões”, o site CARNAVALESCO foi conhecer o trabalho que está sendo desenvolvido pela Tom Maior para o Carnaval 2023. Mais do que um desfile, a Vermelho e Amarelo irá ao Sambódromo do Anhembi realizar “Um Culto às Mães Pretas Ancestrais”, que é o nome do enredo assinado pelo carnavalesco Flávio Campello. Após repetir o melhor resultado da história da comunidade do Sumaré em 2022, um quarto lugar empatado em pontos com as três primeiras colocadas, o artista deu detalhes de como a escola virá para enfim conquistar o sonhado título inédito no ano do seu cinquentenário.
“É muito curioso que esse enredo surgiu em 2013, quando eu ainda fazia parte de outra agremiação. Eu sou muito amigo de uma coreógrafa de comissão de frente chamada Yaskara Manzini. Ela estava defendendo uma tese de mestrado que falava sobre os cultos às Iyamis. Ela me presenteou com a leitura dessa dissertação, e eu acabei ficando encantado porque era algo que até então eu não conhecia. Iyami na tradução iorubá significa “minha mãe”, e há uma infinidade de cultos ligados e associados à essa figura materna, principalmente a essa ancestralidade materna. Como nosso samba mesmo diz, nós somos filhos de mãe preta. Isso significa que o princípio ativo da vida surgiu no continente africano. A nossa ideia é justamente mostrar essa ancestralidade. Que todos nós somos filhos dessa mãe preta, e essa mãe preta nada mais é do que o continente africano.”
As mães pretas do candomblé e do catolicismo
Não será a primeira vez que um enredo dedicado às orixás femininas passará pela Avenida. Em 2007, o Salgueiro apresentou “Candaces”, considerado por muitos um desfile maravilhoso e muito injustiçado, e que coincidentemente também foi a última vez em que a Academia do Samba não voltou no sábado das campeãs, ficando em sétimo lugar naquele ano. Além disso, em 2020 a Mocidade Alegre foi terceira colocada com o enredo “Do canto das Iabás renasce uma nova Morada”. A proposta da Tom Maior, porém, é voltada às orixás que representam a maternidade, além de fazer referência a entidades de fora do mito iorubá que se encaixam no conceito de “mãe preta” proposto pela escola.
“Uma das coisas mais curiosas de quando a gente começa a se aprofundar nesses cultos às Iyamis é que nos deparamos com o culto do candomblé através das Obirinsá, que muita gente conhece como “Iabás”, que são seis orixás que também tem uma relação forte com essa simbologia materna. O mito iorubá diz que, além de Exu, Ogum e Oxalá, ainda tinha a presença de Oduduá, que ficou com a missão de moldar o ser humano através do barro. A figura materna está presente em todos os mitos religiosos, tanto afro-brasileiros quanto cultos africanos raiz, e também no nosso catolicismo, o nosso afro-catolicismo. Por exemplo, somos um país onde a padroeira do Brasil era considera até a década de 70 era considerada uma mulher preta, e depois a Igreja acabou adotando um embranquecimento dessa Nossa Senhora Aparecida. Talvez por uma questão não sei dizer se racial, não sei especificar, mas como de repente, na cabeça de muita gente, o Brasil poderia ter uma padroeira de pele preta. A gente pegou todos esses ganchos e transformou no enredo que ganhou o título de Um Culto Às Mães Pretas Ancestrais”, explicou.
Carnavalesco pé quente
Flávio Campello já demonstrou grande capacidade de trabalhar enredos afro. Em 2017, assinou o desfile que rendeu o primeiro título da história da Acadêmicos do Tatuapé. Como se não bastasse, até o momento tudo parece conspirar para mais um grande desfile sob sua batuta. Durante a conversa, o carnavalesco citou que 2023 é um ano regido por Oxum na crença do candomblé, e a entidade é inserida nos cultos à mãe africana Yalodê. A celebração dos 50 anos da Tom Maior é outro motivo que fortalece a crença do artista em um grande resultado neste carnaval.
“Para mim foi um presente, porque meu último trabalho com um enredo afro deu super certo, que foi na Tatuapé, e eu gostei muito do resultado. Quem não gostaria de ser campeão com um enredo afro? E quando as pessoas vêm falar comigo sobre a questão do afro, o “afro do Flávio Campello”, elas dizem que a primeira coisa que acontece talvez seja o samba, que tenho sorte de, com enredo afro, para ter um samba-enredo maravilhoso, porque em 2017 o samba da Tatuapé era incrível e em 2023 o samba da Tom Maior, por mim, está maravilhoso. Acho que é um ano que a gente está colocando todas as nossas fichas nesse projeto, nesse enredo”, celebrou.
Curiosidades da pesquisa do enredo
O trabalho de pesquisa para a preparação desse culto proposto pela Tom Maior revelou elementos do candomblé até então desconhecidos por Flávio Campello, gerando uma oportunidade de realizar um desfile de temática tradicional no carnaval sem abrir mão de inovações.
“No nosso segundo setor do nosso desfile, quando fazemos uma menção às Iyami. As Iyami é um culto dentro do candomblé que muita gente não conhece, e tem uma história muito bacana. Elas habitaram os sete pilares da Terra, que são as sete árvores sagradas. Nosso segundo carro representa isso, temos sete árvores sagradas, sendo que a principal ela mantém o equilíbrio entre o bem e o mal, e vem no centro do carro. É uma alegoria que eu gosto demais, porque ela tem dois lados. É uma alegoria que a mesma reprodução estética que tem na frente do carro, teremos atrás. Se o carro viesse de ré, ele poderia entrar na Avenida do mesmo jeito. Eu gosto muito desse carro, porque ele é dividido no meio. Quem olhar irá identificar o bem e o mal. É um carro que gosto muito dele. É todo em árvores. Teremos 44 pássaros pendurados nessas árvores, um grupo coreografado pela Flávia Rodrigues. A gente está apostando muito nessa cênica de desfile. Uma das coisas que eu pedi quando desenvolvemos o projeto foi a gente dar vida à nossas alegorias, teatralizar um pouco, tanto que as composições só teremos no Abre-alas, em nenhum outro carro teremos composição. A gente apostou muito esse ano. Os carros ficaram tomados de tanta gente coreografada que até destaques esse ano a gente só tem um, no Abre-alas, que é o Beto Sobrinho”, revelou.
Um carnaval inovador desde sua concepção
Flávio Campello demonstrou grande entusiasmo com o trabalho desenvolvido pela Tom Maior para o carnaval de 2023 ao longo de toda entrevista, e fez questão de contar as ideias inovadoras que foram aplicadas principalmente nos carros alegóricos. Além disso, mais uma vez, a escola oferecerá uma maneira das pessoas que assistirem ao desfile de terem um roteiro de toda apresentação em mãos.
“Alegoria eu acho que será nosso ponto-forte esse ano. Nós temos a nossa terceira alegoria em que a gente desconstruiu a ideia de fazer uma alegoria em cima de um caixote. A alegoria tem seis esculturas, e são elas que mantém o carro em pé. É algo supernovo, super inovador. No centro tem uma das orixás, que é Oxum, e essa saia teremos 44 mulheres, todas de seis de fora. É um carro em que estou apostando muito minhas fichas também. Um carnaval inovador nas alegorias de modo geral, e vou dizer o porquê. Uma das minhas ideias de quando fechamos o projeto do carnaval é o que falei para a escola. Não quero vir com acoplados. O acoplado faz com que os nossos riscos sejam dobrados. Se no regulamento diz que é para virmos com quatro alegorias, viremos com quatro alegorias, e eu pedi para que a escola me desse a oportunidade para que zerássemos todas as nossas bases. Tenho quatro carros alegóricos, e cada um com uma identidade própria. Vocês verão que o conceito das alegorias esse ano é um conceito muito mais artístico. Isso, para a gente que trabalha com arte, que acho que o Carnaval é uma forma de arte plástica, acho que as pessoas vão se encantar. Esse encantamento é que estou apostando nas nossas alegorias. A volumetria das nossas fantasias, a gente sempre tenta levar para o público o significado dessas fantasias para que eles possam entender. No ano passado, nós viemos com uma faixa na frente da escola com o site da escola que, naquele momento do desfile, estava com um minilivro que o jurado recebe, com o que significa cada fantasia e cada alegoria. Da arquibancada, o pessoal, com smartphone, conseguia ver o mesmo material que o jurado via, e esse ano repetiremos isso. Acho que o nosso público merece isso, acompanhar o nosso desfile com aquela colinha na palma da mão. O nosso site é todo desconstruído para esse dia. Quem acessar o nosso site no dia do desfile só irá se deparar com o nosso livro, a nossa pasta do jurado. Isso ajuda bastante”, revelou.
O papel fundamental do novo presidente
A Tom Maior teve uma baixa inesperada durante o pré-carnaval. A presidente Luciana Silva se desligou da escola alegando motivos pessoais. Quem assumiu a liderança da Vermelho e Amarelo foi o então vice-presidente e também comandante da bateria “Tom 30”, Mestre Carlão. Flávio Campello exaltou muito o papel de liderança exercido pelo novo presidente.
“Eu estava conversando com o presidente Carlão, e nós estávamos discutindo sobre a finalização desse projeto. Está de uma forma tão tranquila que até mesmo nos assusta. Nós só temos uma ala para realizar a reprodução e finalizar nosso projeto, e nós já estamos na nossa última alegoria (a qual a escola já anunciou sua finalização), tendo só o carro da comissão de frente para trabalharmos até o tempo que a gente precisa, na semana do Carnaval para deixarmos do jeito que a gente quer. Isso fez com que a gente investisse um pouco mais na alegoria da Comissão, teremos água nesse carro, teremos toda uma produção que eu acho que acaba nos favorecendo por nós termos tempo para finalizar esse projeto dessa forma como nós estamos, confortável. Nosso cronograma é um cronograma que o presidente sempre gostou de nos proporcionar. O Carlão é um administrador que acho que todo carnavalesco gostaria de ter, porque ele é um gestor. Acho que por ele ter sido empresário na maior parte da vida dele, favorece muito essa gestão. Todo carnavalesco gosta de ter um projeto em que a gente consiga, como no ano passado, quando o Carnaval foi em abril, se nosso desfile fosse em fevereiro, no dia normal, estávamos com o Carnaval pronto. Isso é a gestão do Carlão, e para todo carnavalesco isso é maravilhoso”, declarou.
Conheça o desfile da Tom Maior
Setor 1: O mito da criação: “A gente começa com a primeira mãe, a primeira Iyá, que é Oduduá. Pegamos o mito iorubá da criação do mundo, dos humanos, do homem e da mulher. Teremos os orixás nessa alegoria, Oduduá grávida. Temos simbologias muito fortes no culto iorubá-nagô”.
Setor 2: “A gente chega, através do segundo setor, às Iyamis. Representa essa coisa da mãe educando seus filhos através das Iyamis. A gente fala da Eleiés, porque essas Iyamis vieram habitar os sete pilares da Terra em forma de aves, que eram aves sagradas. Nesse segundo setor, a gente fala da representatividade dessas árvores na vida da gente. A gente tem, por exemplo, Orubô, que representa a árvore da justiça e foi uma das moradas das Iyamis. Temos o baobá, que representa a serenidade e a paz. Temos a figueira que representa a árvore do perdão. Temos a cajazeira, que é a árvore do equilíbrio. Temos sete árvores muito fortes e marcantes, tanto que elas são, em alguns momentos do candomblé, respeitadas como algo simbólico através da representatividade que essas árvores tem para o culto do candomblé. Nós temos o Iroco. Nós temos muitas árvores que o candomblé exalta e respeita, e essas árvores estão presentes no culto às Iyamis”.
Setor 3: “No terceiro setor, a gente fala das Obirinsá, que são as orixás que tem essa coisa relacionada ao seio materno. Fala dessa questão da mãe que abraça seu filho, a mãe que cuida desse filho. Representamos através das Ibirinsás, das orixás femininas. Acho que o meu terceiro setor é um setor que eu gosto muito. Teremos uma grande ala composta por 324 componentes, que são as alas das orixás. São seis fantasias com 54 de cada uma na Avenida, formando uma fila de um carro ao outro, uma ao lado da outra”.
Setor 4: “A gente fecha o nosso enredo falando das santas mães pretas, que são santas que foram canonizadas, que possuem a sua peregrinação, a sua devoção, inclusive, a Nossa Senhora Aparecida, que temos nessa última alegoria nossa uma desconstrução da imagem da Nossa Senhora Aparecida. Colocamos ela toda com trajes e traços africanos, o manto azul também vai ganhar uma nova roupagem. Faremos uma releitura da imagem da Nossa Senhora Aparecida, automaticamente com todo respeito que a imagem oferece, afinal é a padroeira do nosso país, fora todas as outras santas que traremos. Esse último setor nosso é um congraçamento de todas essas santas que muitas vezes foram escondidas pela Igreja Católica. Santa Efigênia, a escrava Anastácia, que no Rio de Janeiro tem uma Igreja maravilhosa. A própria Sara Kali, que é uma santa preta que muita gente não conhece. A gente tem Bakhita. Temos uma infinidade de santas de pele preta que levaremos para a Avenida em forma de mães, como se fossem as nossas mães pretas em um grand finale. Acho que o culto afro-cristão é uma coisa que irá tocar muito, irá emocionar, porque teremos nessa alegoria o passado e o futuro da nossa escola integrados, que são a Velha Guarda e as crianças. Esse nosso enredo é um enredo que fala nada mais, nada menos da importância que as mães têm nas nossas vidas. Eu digo isso, não só a nossa mãe que nos gerou, mas as mães de forma geral. Eu acho que todas as mães deveriam ser canonizadas. A nossa mensagem do último setor é essa, mostrar que todas essas mães que nós temos estão ali, presentes e representadas em toda as imagens das nossas santas, na presença da Velha Guarda e das nossas crianças, tanto que as nossas crianças viram com algumas mães pretas que a gente vai colocar junto. É um final que irá emocionar”.
Ficha técnica
Enredo: “Um Culto às Mães Pretas Ancestrais”
Alegorias: 4
Alas: 16
Componentes: 1900