Quando a Imperatriz da Paulicéia entrou na Avenida em 2023 para abrir os desfiles do Grupo de Acesso 2, em São Paulo, diferentes marcas para a agremiação foram alcançadas até aquele momento. Era o retorno da escola ao Sambódromo do Anhembi depois de 18 anos, a estreia como uma entidade filiada à Liga-SP após 43 anos de sua fundação e sendo campeã consecutivamente dos três grupos inferiores, em uma arrancada avassaladora da comunidade administrada pela presidente Mara.
A coroação de um trabalho exemplar ganha ainda mais brilho levando em consideração que todas essas conquistas ocorreram no ritmo da bateria liderada por Rafaela Rocha Azevedo, de 34 anos, conhecida como Mestra Rafa. A autoridade maior da “Swing da Paulicéia” se tornou a primeira mulher a comandar ritmistas em um desfile oficial no Sambódromo do Anhembi, e mesmo tão jovem carrega consigo a experiência de cinco carnavais, sendo quatro consecutivos, mas todos pela mesma entidade. São 15 anos dedicados ao carnaval contados em entrevista concedida à reportagem do site CARNAVALESCO por uma profissional que já é exemplo para tantas pessoas mesmo com um futuro longo e promissor pela frente.
Como foi o início da sua trajetória no mundo do samba?
“Eu comecei na X-9 Paulistana já em bateria de escola de samba, já na escolinha de bateria tradicional. Fiz a escolinha uma vez, não passei. Sofri um acidente na mão, cortei a mão, rompi o ligamento. Fiquei seis meses de gesso. Fiz novamente para conseguir estar desfilando. Então minha primeira experiência foi na X-9. Fiquei 12, 13 anos direto na escola. Fundei o Departamento Jovem, fundei o departamento cultural. Nunca foi só bateria, mas comecei pela bateria. E aí na própria X-9 o cantor, que era da Imperatriz da Paulicéia na época, me convidou. Falou: ‘Pô, acho que tem aí uma semente de algo que vai rolar legal, uma administração’. Eu cuidava dos shows da X-9, ele viu essa administração rolar muito bem e me convidou. Era uma outra administração da Paulicéia também. Aí eu vim, era na UESP, o penúltimo grupo da UESP. Rolou, tiramos a nota, entregamos a parte da bateria, a escola não foi muito bem. Mas eu entreguei o cargo naquele ano até pelo projeto da escola, que não me atendia tão… Não era igual aos meus ideais. Eu gosto de escola de samba. Escola de samba, que forma pessoas, dá continuidade em trabalho, acompanha a vida das pessoas. Lá eu só tinha que chegar e desfilar, e isso para mim não faz sentido, não orna com o meu trabalho. Então eu fechei uma passagem rápida de um ano e aí depois vim a receber esse convite novamente com a nova administração da escola em 2019, e até hoje estamos aí na Paulicéia”.
Como foi esse processo que te levou a assumir o cargo de mestre de bateria da Imperatriz?
“Eu não era nem diretora de bateria, só era ritmista. Só que na época era o mestre Adamastor, e eu ajudava ele na escolinha, ajudava ele nas apresentações da escola. Eu gerenciava os ritmistas. Vai ter uma apresentação, eu ligava para todo mundo, falava roupa, horário. De acordo com esse trabalho, viram essa sementinha rolar e me convidaram. Então eu fui mestre de bateria antes de ser diretora de bateria. Fui diretora na X-9, mas só em 2017. Mestre eu fui em 2015”.
Ser mestre era algo que você pretendia na ocasião?
“Quando eu entrei na bateria da X-9 era muito, muito devota à bateria. Eu tinha esse sonho mais escondido para mim. Porque como não tinha nenhuma outra mulher, não adiantava falar isso para fora porque as pessoas iam, no mínimo, rir. Era um sonho meu, guardado para mim, que eu achava que um dia eu ia conseguir, mas não tão rápido. Eu acho que foi mais rápido do que eu imaginava”.
Como a escola na época recebeu o anúncio do seu nome para o cargo de mestre de bateria? E os ritmistas? Como foi para eles?
“Como era outra administração, o projeto era muito para a pista, não era projeto de formação. Não teve uma aceitação como eu esperava que tivesse. São coisas que a gente, como mulher, tem que saber que vai rolar, e eu levei uma bateria pronta, não usei todos os ritmistas só de lá. Tinha alguns ritmistas da casa, não tirei, mas o respeito com os meus não era o mesmo que eles estavam tendo. E justamente por isso, como não tinha o apoio da presidência da escola, de me apoiar e falar ‘não, vamos aceitar’, achei que era melhor não continuar com a escola, aí voltei para a X-9. Já estava na X-9, continuei. Virei diretora de bateria até chegar o segundo convite, mas eu fui diretora da X-9 durante alguns anos”.
E como foi essa volta para a Imperatriz anos depois? O que teve de diferente?
“A Mara, que é a presidente da escola, não me conhecia. Ela ouviu falar, e no meu primeiro ensaio eu cheguei com 90 ritmistas. Daí ela ficou tipo: ‘De onde saiu essa menina?’. Ela é uma pessoa que me recebeu muito bem, e hoje eu tenho ela como uma segunda mãe. De verdade, é um carinho de família. É uma pessoa que, independentemente de eu não continuar na escola, é uma pessoa que eu levo para a vida, uma pessoa extremamente justa. Então, foi uma ótima aceitação da diretora da escola. Se provar como mulher a gente tem que se provar diariamente, não adianta, mas é uma pauta que eu até nem fico batendo tanto para não confundir a luta como mimimi, sabe? Eu sei que eu tenho essa luta, eu sei que tem várias outras indo atrás, mas o caminho é puxar e não ficar só falando sobre isso, sabe? Eu sei que tem que falar, toda vez eu falo, mas não só a lamentação. Acho que tem que falar bastante do que foi conquistado, de quantas vão vir atrás. As portas vão se manter abertas. Como? Não interessa. A gente vai resolver e vai manter aberto”.
A representatividade feminina dentre os ritmistas da ‘Swing da Paulicéia’ se faz presente como atualmente?
“A Imperatriz da Paulicéia hoje tem o mesmo número de ritmistas mulheres que uma bateria do Grupo Especial. A única diferença é que as baterias do Especial têm cerca de 70 pessoas a mais. Então a gente tem uma representatividade feminina bem grande, graças a Deus. É um lugar que, obviamente, elas se sentem acolhidas e serão sempre, é óbvio. Mas a gente tem um número muito mais próximo da igualdade do que de uma bateria do Grupo Especial. São estudos que a gente mesmo fez”.
Dentre os diferentes instrumentos que compõem a bateria, qual naipe você considera o seu favorito?
“O meu instrumento é o surdo de terceira. É o instrumento que eu sou criada, o meu instrumento de origem. É onde eu fui diretora também, há alguns anos, em várias escolas. É o meu naipe, é o meu instrumento. O preferido eu não sei, mas que é meu instrumento ele é. Então, é difícil quando você gerencia todos, é difícil. Cada um tem o seu espacinho, mas o surdo de terceira tem um lugar especial”.
Quais são as pessoas do carnaval que você tem como inspiração para a sua carreira de mestre de bateria?
“Eu tenho muitas inspirações, graças a Deus, e elas caminham junto comigo. Tive a honra de ter quase todos eles desfilando comigo esse ano. Tenho um apoio muito forte dos mestres de São Paulo, como o Zóinho, Vitor da Candelária, Dennis, Klemen, Marcel, Vitor Velloso, inúmeros nomes aí que estão junto comigo. E na música, né? Eu coloquei o timbal na bateria por conta do Cara de Cobra, que é o percussionista da Ivete Sangalo. Tive o prazer de conhecer ele e falei para ele: ‘Óh, tem timbal na bateria por causa de você’. As inspirações na música são essas, todos esses nomes aí. Até vou ser injusta se eu falar todos. Mas tenho os mestres aí comigo, como o mestre Serginho também do Tucuruvi. É um cara que caminha lado a lado comigo. Então, são essas pessoas que eu tenho de inspiração. O ruim é que eu não tenho muitas inspirações mulheres. Na época que eu virei mestre, não tinha outra. Mas como diretora, eu tenho a Jussara Félix do Vila Maria e a Tamara Santana, que era da Mancha Verde, que eram as duas mulheres que tinham quando entrei. Eu tinha elas como pisão de comando, mesmo que não o comando da bateria, o comando da ala. Essas são as minhas referências”.
Pode falar um pouco mais a respeito da sua relação com esses outros mestres de bateria? Você também está presente na bateria deles de alguma forma?
“Sou meio maluca. Eu saio em oito escolas, então em todas as noites do carnaval de São Paulo eu estou desfilando, mais de uma vez normalmente. Eu acho que para você ser mestre de bateria você não pode nunca deixar de ser ritmista, porque você vai conseguir entender a cabeça do seu ritmista, as necessidades dele, o que ele precisa, o que ele passa. Então eu sou ritmista em várias escolas, e aquilo que a gente faz a gente pega o que é melhor e não faz o que a gente acha errado nos outros lugares. Então as influências dos meus mestres em outros lugares são essas. Eles me apoiam como amigos e me dão exemplo à frente da bateria de algumas coisas como a gente resolver conflitos. Não adianta, como qualquer trabalho ter de lidar com pessoas, gestão de pessoas, é difícil. Então todo esse respeito aí, essa troca, eles me ajudam muito nisso”.
Seu nome está marcado na história do carnaval de São Paulo como a primeira mulher a comandar uma bateria de escola de samba no Sambódromo do Anhembi. Qual foi seu sentimento naquele momento?
“Toda vez que alguém me pergunta isso eu fico com a mesma cara de ‘ué, não sei o quê, responder’, porque foi um misto de sensação. Eu não sentia nem o chão. Foi tudo muito rápido. Como a escola foi a primeira, foi tudo muito cedo. Então foi, assim, uma sensação tanto de alívio, como se você estivesse soltando correntes. O quanto também de peso que você estava carregando de toda uma história que vem atrás. Mas a sensação que me explica tudo é de arrombamento de portas. Eu arrombei a porta que estava trancada e ela não tranca mais porque eu quebrei o trinco”.
Uma vez que você quebrou esse trinco, tem algum sonho que você ainda almeja alcançar na sua carreira daqui para frente?
“É até egoísmo da minha parte ter mais algum sonho depois do que eu já fiz, mas a minha vontade hoje, o meu objetivo, é ser mestre no Grupo Especial. Não sei se será com a Paulicéia, se a gente vai chegando lá, vai fazendo a mesma coisa que a gente fez na UESP, ou se vai surgir outras coisas na nossa vida profissional do carnaval. Eu hoje não me imagino em outro lugar, eu sou muito Imperatriz da Paulicéia, mas eu tenho esse sonho de chegar a ser mestre no Especial do carnaval de São Paulo”.
A sua relação atual com a Imperatriz da Paulicéia pode ser definida como? O que a escola representa para você?
“A Imperatriz da Paulicéia foi tipo um amor, que eu não esperava. Sabe quando você está lá assim, ‘não gosto de ninguém, vou viver a solteira para sempre’, e aí a Paulicéia passou e eu fiquei envenenada, sabe? Falei: ‘Nossa!’. É muito legal porque ela é uma escola de samba de verdade. Escola de projeto social, escola de formação de pessoas e de um sonho que era pequenininho. A gente não tinha quadra, era lugar emprestado, na UESP, com quatro, cinco horas de atraso. Hoje a gente está no Anhembi, com a Globo filmando a gente o ano passado, fazendo matéria na quadra, na nossa quadra, quadra própria, construída por nós. Então assim, é um amor mesmo, de verdade. É um amor que, independentemente do que venha a acontecer, vai continuar existindo esse amor para sempre”.
Apesar da ausência de mulheres em lideranças específicas das escolas de samba, existem duas que se destacam como presidentes de agremiações do Grupo Especial, que são a Angelina Basílio do Rosas de Ouro e a Solange Cruz do Mocidade Alegre. Você tem alguma história com elas para contar?
“A Angelina eu tive uma troca muito rápida. Uma vez no ensaio técnico do Rosas, eu estava assistindo no camarote, e ela passou e falou: ‘Muita fé, menina. Você precisa ter muita fé’, e passou. Eu levo isso para a minha vida porque é uma pessoa que inspira super. Eu tive uma outra troca, mas essa foi muito importante, com a Solange. No ano passado, foi convidada para vir aqui a Mocidade Alegre, ela me mandou uma mensagem dizendo que ela não poderia vir por ter o chá de bebê do neto dela. Não dá nem para não entender, mas sempre que vou lá ela me recebe super bem. A gente teve algumas conversas. Eu fui convidá-la pessoalmente no ano passado dizendo: ‘Eu quero que a Mocidade vá por causa de você. Pelo amor de Deus, você é minha inspiração’. Eu já falei isso para ela, ela sabe disso, agradeceu. É uma mulher supersimpática, nasceu para ser do povo. Não adianta, tenho muita referência em relação a ela, muito carinho por ela. É uma mulher que fez história e vai continuar fazendo história, com certeza”.
E para todas as mulheres que almejam, assim como você, alcançar uma posição de liderança em uma escola de samba. Qual conselho, qual recado você gostaria de deixar para elas?
“Muita força, muita luta, muita insistência. A palavra certa é insistência. Contar com as pessoas que tem em volta, mesmo que não sejam do mesmo cargo. Sou uma pessoa que me inspiro muito com a Solange do Mocidade Alegre. Ela é na administração de pessoas, lugares diferentes, obviamente, já tem muito mais pessoas para administrar, mas é dali que eu tiro algumas coisas. A presença dela, a imponência da presença dela. Existem várias mulheres que servem de exemplo em seus lugares. A gente consegue ser mestre de bateria se inspirando numa chefe de departamento pessoal de uma empresa. Acho que é tudo a gestão de pessoas sempre. E dizer que estou aqui, minha ‘inbox’ está aberta para essas mulheres que sonham, que querem dividir, que querem compartilhar, perguntar. É isso, minha ‘inbox’ está aberta. É o mínimo que posso fazer depois de abrir essas portas. É o mínimo que tenho que fazer. Até morrer eu tenho que estar fazendo isso”.