Ao passar pela Sapucaí para apresentar uma importante história ignorada pelos livros e um manifesto contra a transfobia e o preconceito, o Tuiuti consegui entregar a partir do olhar de Jack Vasconcelos um bom conjunto estético, um enredo com boa leitura e bem desenvolvido. Mas os problemas de evolução que incluíram deslocamento pela pista muito lento no início, correria do meio para o final, carro se chocando com as grades e até mesmo buraco podem comprometer a situação do Paraíso do Tuiuti. A evolução ruim impactou inclusive em um canto ruim da comunidade, apesar de um excelente trabalho do carro de som. Casal passou bem, assim como a comissão, apesar de uma falha pirotécnica em um dos módulos de julgamento. Samba e Pixulé também fizeram desfile muito correto e tranquilo. Com o enredo “Quem Tem Medo de Xica Manicongo?”, o Paraíso do Tuiuti encerrou seu desfile com 80 minutos cravados.
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Comissão de Frente
Comandada por Claudia Motta e Edifranc Alves, a Comissão de Frente do Paraiso do Tuiuti “Transpassado e Transfuturo” trouxe uma mensagem de otimismo, frente à realidade histórica de perseguição. Nela, Xica Manicongo e seus Ngangas (antepassados cultuados na quimbanda) acompanham a evolução de um grupo de travestis que, marginalizadas pela sociedade, trabalham nas ruas para sobreviver e são alvos dos “perseguidores” que desejam suprimir suas existências. Estes representam a intolerância, o preconceito e a violência que a comunidade trans e travesti sofre há gerações.
Em seguida houve uma investida desses personagens contra Xica Manicongo para anular sua feminilidade, controlar seu corpo. Mas as travestis vencem os opressores e eles que na verdade são queimados em um efeito pirotécnico. No momento seguinte, travestis sobem a partir de um elevador e Érica Hilton aparece com a faixa presidencial, momento de maior animação do público que ovaciona a comissão e em seguida elas dançaram vogue, como na cultura ballroom. Único porém foi o efeito de fogo quando as componentes eram açoitados que não funcionou na primeira cabine. Comissão sem um investimento astronômico, mas que sintetizou o enredo e mais uma vez a dupla apostou em chocar o público pela emoção e menos pela pirotecnia.
Mestre-sala e Porta-bandeira
Raphael Rodrigues e Dandara Ventapane vieram de “Kimbandas”, curandeiros, sacerdotes feiticeiros que se comunicavam com o além, detentores de poderes xamânicos com os quais curavam. Fantasia muito bonita em tons de palha, marrom, contrastando com o alaranjado e preto. Na coreografia, a dupla, mais uma vez, apostou em um dança mais tradicional, confortável ao seus estilo, mas muito bonita.
Dandara fez giros com muita graça, com postura muito bonita e sempre em consonância com Raphael. A proximidade do casal nas mesuras e a doçura nestes momentos também chamou atenção. Não se identificou nenhuma falha nas apresentações nos módulos. Passaram muito bem.
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Enredo
“Quem Tem Medo de Xica Manicongo?”, desenvolvido pelo carnavalesco Jack Vasconcelos, homenageou a primeira travesti não indígena do Brasil, Xica, que foi escravizada no Congo e trazida para Salvador na Bahia. Segundo o carnavalesco colocou na justificativa do enredo o desfile veio ser um manifesto político- espiritual da ancestralidade travesti, em sua importância para a consciência de pertencimento e construção de memória para a comunidade trans. E, mais uma vez Jack Vasconcelos conseguiu entregar um enredo com início meio e fim, com uma mensagem importante no final com maior leitura nos carros, e nas fantasias, na maioria, satisfatória.
Dividido em seis setores e uma abertura, o Tuiuti começou o seu desfile introduzindo na comissão de frente o tema e contextualizando o recorte do enredo. No primeiro setor a escola trouxe a busca pela transcestralidade de Xica Manicongo, ainda em terras bantus com o culto aos ancestrais.
Em seguida, o Tuiuti apresentou o cenário no qual Xica seria inserida em sua terra natal antes da escravização e anulação de sua identidade imposta pelos portugueses. No terceiro setor o desfile mostrou a escravização pelo homem branco até a chegada ao Brasil, na capital da colônia portuguesa, Salvador, onde Xica foi vendida como Francisco Manicongo. Logo depois, a narrativa trouxe o contato com a mata brasileira e com os tupinambás, que mostraram a Xica, o acolhimento, dividiram com ela os segredos do catimbó indígena, transformando sua vivência nas terras brasileiras.
No penúltimo setor, o Paraíso do Tuiuti trouxe que a demonização da cultura africana, e dos povos submetidos, no geral, é um reflexo do regime escravocrata e da catequização cristã colonial que abarca heranças de moralidades e temores europeus criados desde a Idade Média. Neste setor, Xica Manicongo foi perseguida por esse juízo preconceituoso.
Jack Vasconcelos encerrou o desfile mostrando a resistência, com o cenário de intolerância, preconceito e perseguição prossegue, mas com a luta continuando. Neste setor foi lembrado as perseguições do mundo moderno à comunidade trans, mas também foi enaltecido as que lutaram, e lutam, por dignidade e justiça. Ótima mensagem no final e um enredo que passou correto e coerente com o que foi prometido.
Alegorias e Adereços
O conjunto alegórico do Paraíso do Tuiuti era formado por cinco carros e dois tripés. Ainda que com alguns problemas de acabamento, a estética serviu muito bem ao enredo, com criatividade e leitura. E, o principal, foram diferentes de tudo que passou pela Sapucaí nestes dias, com personalidade própria. Trabalho muito superior plasticamente ao do ano passado.
Antes do Abre-Alas, o tripé “O Maioral” representando o Exu Maioral”, um ser andrógeno, chamou atenção pelo tamanho e porque a escultura levantava e fica de pé erguendo o tridente. O único detalhe negativo foi o acabamento da escultura que tinha problemas como nas asas e na cintura da escultura.
No Abre-Alas, Jack significou “curandeiro(a)” e a expressão Mwene Kongo, senhor(a) do Congo. As duas, respectivamente, originaram os termos Quimbanda e Manicongo. A alegoria trouxe à sua frente uma escultura do exu de duas cabeças com Xica Manicongo em seu ventre. Crânios e ossos representam o culto aos antepassados, aos desencarnados, unidos à vitalidade oferecida dos animais divinizados. A segunda parte da alegoria ilustrou poeticamente Xica como uma sacerdotisa kimbanda invocando Nkisi Ngo, a força e o poder do leopardo do Reino do Kongo. Alegoria com boa qualidade visual e com estilo visual bem diferente do que passou pela Sapucaí, estilo próprio e legal, isso, apesar de ter apresentado problemas com uma parte da alegoria caindo ainda no Setor 1.
O segundo carro mostrou Xica Manicongo na Bahia. A alegoria apresentou uma visão lúdica de como seria essa mistura cultural que moldou o caráter social da cidade, porém, dominada e influenciada pela Igreja Católica. Na frente o marco de fundação de Salvador. Duas grandes esculturas representando Exu, protetor dos mercados, finalizam a alegoria. O papagaio pousado na escultura de Exu simbolizou o encontro da natureza brasileira com a cultura africana. Alegoria de boa qualidade estética.
A terceira alegoria representou a transcendência da alma feminina de Xica Manicongo proporcionada pelo encontro das suas raízes africanas com a espiritualidade indígena tupinambá através do catimbó. A escultura do rosto de Xica Manicongo veio com pintura facial afro-indígena ostentando um cocar de folhas representando a absorção da espiritualidade indígena brasileira pela ancestralidade africana de Xica. Na alegoria, a presença de cerâmicas ritualísticas reproduzindo corujas, simbolizando sabedoria e o vaso redondo, a mãe terra. Boa utilização de cores e contraste.
Em seguida, o quarto carro do Paraiso do Tuiuti, trouxe Xica Manicongo desencarnada, acolhida pela agregora e pomba-giras. A alegoria fez uma ilustração lúdica com exemplos do uso do pajubá no cotidiano e em objetos, como as garrafas de “Marafo” (aguardente) e os maços de “Xanã” (cigarro).
A última alegoria do Paraiso do Tuiuti encerrou o desfile com a era do Traviarcado buscando um futuro mais inclusivo e acolhedor com todas as existências, corpos e vivências. Na frente da alegoria a representação escultórica de Xica como uma NGanga de estética “queer”, “assentada” na frente do movimento traviarcal. Distribuídas pelo centro da alegoria, vieram vinte e nove personalidades trans e travestis de diversas áreas da sociedade brasileira. Apesar do colorido, a alegoria teve um pequeno problema de iluminação em um das coroas vazadas da lateral. Problemas de acabamento também estiveram presentes na parte de trás.
Fantasias
Jack conseguiu aproveitar bastante aquilo que o enredo lhe permitia em relação a paleta de cores e aquilo que o carnavalesco mais gosta de produzir para carnavais, mais colorido e cores quentes. O carnavalesco soube usar as nuances a partir do que cada setor pedia. No primeiro mais ancestral, a presença maior do marrom, vermelho e palha. No terceiro setor, mais indígena, o verde bem utilizado. O acabamento também foi de boa qualidade e a utilização dos materiais, foi igual. Destaque para as primeiras alas “Exu Marioral”, “Exus primordiais” que usaram de forma bastante interessante a combinação entre o preto, alaranjado e o vermelho. Outros destaques foram as baianas, vieram com a fantasia “pombagirada”, fazendo alusão aos momento em que Xica desencarnou e se viu livre finalmente para rodar a sua saia e gargalhar ativamente. Excelente uso do vermelho.
Harmonia
Pelo segundo ano consecutivo defendendo o samba do Paraíso do Tuiuti em desfile, o intérprete Pixulé mostrou novamente estar bem a vontade a frente dos microfones da Amarela e Azul de São Cristóvão. E , neste desfile, Pixulé, inclusive, mais do que no ano passado, conseguiu ter o termômetro certo para fazer as suas vocalizações e cacos e a parte em que gosta de empossar mais a voz, até pela potência vocal que tem. Foi bem, inclusive, quando a escola já vinha com problemas de evolução na pista, mantendo o clima. No carro de som, excelente trabalho das vozes femininas que ajudaram bastante o canto, dando um contraste legal ao grave do Pixulé. Em relação ao canto da comunidade, já era tímido no início ainda que não tão problemático, mas diminuiu consideravelmente depois que a escola precisou correr.
Samba-Enredo
O refrão principal tem um colocação de palavras que ainda torne a letra um pouco simples, tem musicalidade. A cabeça do samba é valente, para frente e na musicalidade consegue dar o tom da profundidade da letra que toca em temas sensíveis e tem muita força de enfrentamento à transfobia, ao preconceito. “Faz tempo que eu digo não, ao velho discurso cristão“ tem um balanço melódico bem interessante que permitiu a bateria fazer algumas convenções. A grande virada melódica vem “Eu travesti” e é o momento melódico, desse verso até o final da segunda estrofe, que possui maior riqueza melódica. A obra passou de forma tranquila na Sapucaí, em um andamento que nem deixava o samba acelerado e nem corria risco de arrastar. Passou bem pela pista.
Evolução
O quesito foi o ponto mais preocupante do Tuiuti neste desfile. Os problemas aconteceram em todos os módulos, já que após uma evolução extremamente lenta no início do desfile, com a comissão encerrando a sua última apresentação com cerca de 45 minutos, a atuação do meio para o final foi extremamente corrido e problemático. A quarta alegoria ainda se chocou com a grade próximo ao módulo de jurados entre os setores 6 e 7. E, para terminar, a escola ainda abriu buraco no campo de visão da segunda cabine de jurados entre o quarto carro e a alegoria que estava logo a frente. No final, a entrada da bateria também foi complicada com indecisões entre a harmonia da escola e a ala, se iriam entrar ou não, visto que a escola já estava enrolada com o tempo na pista. Situações que devem trazer dificuldade na apuração.
Outros destaques
A rainha Mayara Lima foi ovacionada quando o apresentador Vanderlei Borges citou seu nome na ficha e veio como “Luz da lua” representando o conhecimento que Xica teve sobre a importância dos astro para a cultura tupinambá com um led acima da cabeça. Já a bateria Supersom, de mestre Marcão, veio de “curupira”, elemento protetor das matas e dos animais que Xica conheceu em seu transe alucinógeno. A deputada Erika Hilton, que veio na comissão de frente da escola, em seu discurso antes do desfile lembrou que o número expressivo de mortes em uma sociedade racista e transfóbica e foi ovacionada pelo público quando mandou um salve para os travestis e as mulheres trans. No esquenta, Pixulé cantou o samba de exaltação em honra ao padroeiro da escola junto com a obra que embalou o vice campeonato de 2018.