A primeira noite da Bienal Internacional do Livro do Rio de Janeiro terminou com uma mesa de bate-papo entre os escritores Ana Maria Gonçalves, Paulo Lins e Cidinha da Silva e os carnavalescos da Portela André Rodrigues e Antônio Gonzaga e mediada pelo pesquisador Alexandre dos Santos. A conversa intitulada “As muitas cores de Um defeito de cor”ocorreu na arena Palavra Chave, no Pavilhão Azul, e teve como mote compreender as influências do livro “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, na arte, na literatura e na cultura brasileira. Em 2024, esta obra da autora será enredo da Portela.
“O Um defeito de cor era um enredo que eu já tinha vontade de fazer e o André [Rodrigues] também. Eu não acredito muito em coincidência. Eu acho que tinha que ser agora, na Portela, nesse encontro. Tínhamos que fazer isso juntos. Eu vim com a ideia que foi a sugestão da minha mãe. É bonita essa simbologia de ter sido da minha mãe e é um enredo que fala dessa questão maternal. Quando eu sugeri ao André, ele falou que esse enredo guardado, que já tinha pesquisa, e tinha essa vontade. Foi um acordo nosso. E a Portela falou na hora que era isso que a escola precisava para fazer um grande carnaval”, relatou o carnavalesco Antônio Gonzaga.
André Rodrigues celebrou o encontro da literatura com o carnaval e completou a fala de sua dupla. “Não foi difícil desvendar o livro. Nós encontramos no livro, na Kehinde [a protagonista de Um defeito de cor] e na história dela algo que já existia dentro da nossa família, que é a trajetória dessas mães, dessas mulheres pretas. É contar a história do Brasil através da luta dessas mulheres. Não estamos inventando a roda da luta racial. Não é assim que funciona. Estamos na manutenção dessa luta, na manutenção dessas trajetórias e na manutenção dessas maneiras de contar história. Assim como Ana [Maria Gonçalves] vai estar no desfile da Portela, Paulo [Lins] e Cidinha [da Silva] também vão estar, porque nós estamos falando de pessoas falando sobre o seu lugar de observação da História. Quando escolhemos Um defeito de cor e traçamos o fio narrativo, escolhemos aquilo que mais toca na gente: o lugar de crianças pretas que observam a trajetória dessas mães. Não foi difícil porque nós conseguimos absorver o amor dessa mulher pelo seu filho e interpretamos o amor desse filho pela sua mãe de volta”, explicou André.
O livro ‘Um defeito de cor’, já em sua 34ª edição, apresenta a protagonista Kehinde, mulher africana que veio para o Brasil escravizada e que, ao longo da sua jornada, conquista a sua alforria. Nesse percurso de 900 páginas, a personagem inspirada em Luísa Mahin passa pelos muitos eventos históricos no Brasil do século XIX e reflete o protagonismo feminino negro no país.
“Falando especificamente do caso das mulheres negras, eu acho que a gente nunca entendeu a centralidade que elas ocuparam e ocupam da História desse país. No último Censo que saiu, deu que nós mulheres negras somos 28,7% da população, ou seja, somos o maior grupo étnico da população. Sempre tivemos uma história de pioneirismo que nunca foi contada. O primeiro romance publicado no Brasil foi de uma mulher negra, Maria Firmina de Reis, em 1859, com Úrsula. Maria Firmina foi a primeira e eu, em 2006, fui a oitava. Nesse período, só outras seis mulheres negras publicaram romances no Brasil e a gente tem história para contar. Em 1870, o primeiro habeas corpus brasileiro foi escrito por uma mulher negra, Esperança Garcia, de Aracaju. Nós carregamos esse país nas costas e puxamos qualquer processo de evolução de sociedade que esse país já teve até hoje. E esse crédito nunca foi dado. Se eu conseguir com Um defeito de cor que a gente preste atenção nesse pioneirismo, nesse empreendedorismo, nessa frente de batalha que sempre estivemos ensinando, trocando e sem nunca ter recebido um crédito a isso, eu já fico feliz”, destacou Ana Maria Gonçalves, a autora homenageada pela Bienal do Rio de 2023.
A escritora Cidinha da Silva, autora de “Um Exu em Nova York”, reverenciou a importância de Um defeito de cor na sua trajetória literária e na compreensão do Brasil.
“Para mim, como leitora, tem três grandes romances na literatura brasileira de 1970 para cá. São os três maiores romances da literatura brasileira. Viva o povo brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, Cidade de Deus, do querido Paulo Lins, e Um defeito de cor, da querida Ana Maria Gonçalves. Para mim essa é a trilogia do romance brasileiro, nesse noss período contemporâneo. Estar com a Ana e o Paulo juntos celebrando Um defeito de cor é muito especial porque eles são os maiores escritores que eu tenho no meu horizonte possível. São aquelas pessoas que se fala: ‘Quando eu crescer eu quero fazer algo próximo disso’. Para mim, Cidade de Deus e Um defeito de cor são livros de fundamento”, elogiou Cidinha.
Também na mesa de debate, Paulo Lins, o autor de Cidade de Deus, livro que foi adaptado para o filme homônimo de 2002, também refletiu sobre o potencial de Um defeito de cor. Principalmente, exaltou sua força enquanto arte.
“Você sente o que aquela personagem viveu, a dor daquela mulher, que pode ter sido ou não real. É ficção. Não é um livro de História. É um romance. É arte! Essa sensação de amor, de dor, de revolta, de perda. A Revolta dos Malês é contada [no livro] com uma visão toda feminina de uma mulher escrevendo uma personagem mulher. A estética do livro, como ela termina cada parágrafo. Você não para de ler. Como ela formatou esse livro, como ela escreveu esse livro, é uma coisa impressionante! Eu fico impressionado, eu sou fã mesmo”, exclamou o escritor.
Antes de terminar o debate na arena Palavra Chave, o carnavalesco André Rodrigues explicita mais a importância do enredo escolhido para 2024 para o portelense.
“O nosso trabalho como carnavalesco dentro da Portela tem sido esse. A gente pensa carnaval como estrutura de desfile e tudo mais, mas um diferencial nosso é que nós [André Rodrigues e Antônio Gonzaga] nos tratamos com irmão, como família. Como carnavalescos e ocupando esse espaço, a gente consegue levar para uma comunidade de Madureira, para uma comunidade que vem tentando se reencontrar há muito tempo, uma comunidade que precisa ser exaltada e que precisa entender os seus principalmente. O portelense precisa entender a sua história como importância. Vai além do resultado do desfile, vai como interpretação do poderio da Portela no território do Rio de Janeiro, na História do Brasil, do que são esses agentes carnavalescos, sambistas, do que são eles homens e mulheres que enfrentaram polícia, que tomaram paulada, e fizeram de tudo para que esses espaços pudessem resistir. Nós, enquanto carnavalescos, jogamos essas sementes para que eles sozinhos consigam se reinterpretar, se enxergar de outra maneira e fazer com que a escola de samba como instituição sejam a maior força de todas elas”, declarou o carnavalesco portelense.
Ao finalizar a mesa, Ana Maria Gonçalves fala sobre a importância do samba enquanto identidade cultural brasileira e faz sua projeção para o Carnaval 2024.
“Eu acredito que o samba é a inscrição do Brasil no mundo. Nós sabemos disso há muito tempo, por exemplo quando a gente ouviu ‘Oh coisinha tão bonitinha do pai’ acordar um robô que foi para Marte. As escolas do samba tem um papel muito importante de guardiã desse nosso patrimônio que é a coisa mais bonita que a gente tem. Estar na Portela ver esse enredo é muito gratificante. Eu queria terminar com um verbo que eu aprendi há pouco tempo: itanga, que quer dizer, ao mesmo tempo, escrever e dançar. É isso que a gente vai ver. Se o livro de algum nós lemos, nós vamos dançar palavras. É uma palavra que não existe na nossa cultura porque a gente não tinha feito. Eu acho que a partir desse momento nós podemos adotar esse verbo e escrever dançando com os nossos corpos na Avenida em 2024.”, discursou a homenageada.