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‘Vem se perder no imaginar dos brasis: visões românticas de paraísos e infernos’

Milton Cunha: “O Carnaval é a utopia dos dias de felicidade, comemoração e prazer de viver em festa. E o desfile de escola de samba muitas vezes traz para a apresentação, versões diferenciadas desta maravilha: o paraíso da loucura, segundo o fabuloso Joaozinho Trinta. Este é o tema sobre o qual se debruça o professor doutor Reginaldo Leite, num texto sobre a idealização das terras brasilis. Sempre inspiramos os brancos europeus. Nossa gente bronzeada sempre mostrou seu valor e a Europa que lidasse com tanta exuberância. Boa leitura!

VEM SE PERDER NO IMAGINAR DOS BRASIS: VISÕES ROMÂNTICAS DE PARAÍSOS E INFERNOS

Por Reginaldo Leite

Vem se perder…

Existe pecado abaixo do Equador?

Durante os dias da folia momesca, inúmeros temas ganham espaço sob os holofotes da rua Marquês de Sapucaí. Reis e Rainhas de diferentes cores e culturas, guerreiros e guerreiras, personagens insólitos e conceitos abstratos invadem a “avenida dos fatos e boatos”, são personificados, incorporados por componentes de distintas comunidades. Atores e atrizes do mundo real, que fazem da festa da inversão palco da representação. Representação esta, de narrativas delirantes, românticas, carnavalescas. Fazem da Avenida dos Sonhos espaço Sagrado para vestirem-se de alegria, serem “Dantes”, “Virgílios” e “Beatrizes”, por quatro noites no universo caleidoscópico do improvável.

Mas entre Paraísos e Infernos, a índia prova do fruto proibido – o maracujá. O prazer se faz presente e nossa história tem início.

“Abram Alas para Aída passar!”. Do assento mais distante do palco do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, olhos contemplativos observavam cada detalhe da cenografia do espetáculo, as minúcias dos múltiplos figurinos dos cantores e o conjunto cromático diluído por diferentes cenas dramáticas. O dono desses olhos poderia ser o jovem e talentoso funcionário do Theatro – o maranhense João Trinta – orgulhoso ao ver seus adereços abrilhantarem cada ato. Mas falo de outro artista, um espanhol.

Com o libreto de Antônio Ghislanzoni (1824-1893) em mãos, Antônio Infante Zayas tentava reproduzir em papéis o esplendor da ópera de Giuseppe Verdi (1813-1901) – Aída – uma história de cunho romântico composta durante o século XIX. Passado o espetáculo e ainda revestido pelo deslumbramento daquela noite, o estivador “Antoniquinho” mergulhou em pesquisas e, sem hesitar por medo ou relutância, desenvolveu no Rancho Carnavalesco Recreio das Flores, em 1920, o enredo Ópera Ambulante, sobre a trajetória de Aída, a Princesa etíope escravizada no Egito. Ao materializar seu projeto em rebuscadas fantasias para o préstito, o técnico Antônio Infante – como era conhecido o carnavalesco da época – conquistou o campeonato por aclamação dos julgadores.

“O Infante no Paraíso e Inferno de Dante”. Imbuído do ímpeto de conquistar outro título para o Rancho Carnavalesco do bairro da Saúde, Antônio Infante vasculhou as estantes do edifício de arquitetura eclética da Biblioteca Nacional, recém inaugurado após a reforma urbana de Pereira Passos (1910), encontrando um clássico que lhe despertara o interesse já pelo título – A Divina Comédia, livro de Dante Alighieri (1265-1321). A dificuldade textual não intimidou o técnico e ele mergulhou na história de Dante, o homem que desceu ao Inferno da razão humana para vencê-lo e encontrar os braços da musa inspiradora Beatriz. Conduzido pelo poeta Virgílio, Dante ultrapassou os Portões do Inferno – que serviu de alicerce para obras de Auguste Rodin (1840-1917) e William Blake (1757-1827) – passou pelos níveis de pecado e pecadores, se deparou com figuras alegóricas e monstros assustadores, dialogou com o desespero e não perdeu a esperança de alcançar o Paraíso.

O herói deixou o Inferno para trás, escalou a montanha do Purgatório e, no ápice da trajetória desmedida, foi recebido pela amada Beatriz no Paraíso. Por ser uma longa história, contada em livros independentes, Antônio Infante decidiu dividi-la em dois enredos diferentes: Paraíso de Dante (1921) e Inferno de Dante (1922). Ambos renderam títulos ao Rancho Recreio das Flores, que passou a ser tricampeão do carnaval carioca. Mas e a índia adormecida?

Alegoria do G.R.E.S. Imperatriz Leopoldinense, 1992. Enredo Não existe pecado abaixo do Equador, da carnavalesca Rosa Magalhães. Foto: Oséas Jarmouch.

“Singrando os mares para invadir o Paraíso”. Pelas mãos criativas da Professora Rosa Magalhães, tivemos a oportunidade de conhecer visualmente, a Tese de Doutorado – Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil – defendida pelo Professor Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982) e publicada em 1959, no desfile idealizado para o carnaval de 1992 da Imperatriz Leopoldinense.

Em Não existe pecado abaixo do Equador, a carnavalesca relacionou a ganância dos espanhóis por riquezas, no além mar, com o encontro do Paraíso terrestre pré-colombiano. Segundo o enredo, os europeus se depararam com um território habitado por homens e mulheres – herdeiros legítimos de Adão e Eva – guardado por monstros, guerreiras amazonas e personagens míticos da floresta. Um Paraíso que passou a ser chamado de América pelos invasores. “Aqui é o Paraíso terrestre, onde ninguém pode chegar, salvo por vontade divina”. As palavras de Colombo, registradas em carta aos Reis da Espanha, explicitavam o significado do lugar.

“Vem se perder, o Paraíso é aqui”.

Na Europa, acreditava-se que o Paraíso terrestre existia e que as fontes bíblicas davam as coordenadas para encontrá-lo. Aos olhos dos europeus que aqui chegaram, os incríveis animais e a exuberância da floresta eram provas da viabilidade da crença. E a presença dos anjos? Após a queda de Lúcifer, anjos o seguiram e foram convertidos em pássaros, de penas coloridas e formosas, que sabiam imitar a voz humana – os papagaios – fazendo parte das aves paradisíacas. E os habitantes nus? Descendentes de Adão e Eva, bastante curiosos e dotados de extrema cooperação entre os semelhantes, sem malícia, detentores de diferentes linguagens visuais e conhecedores do fruto do prazer.

Comissão de Frente do G.R.E.S. Imperatriz Leopoldinense, carnaval 1992, Não existe pecado abaixo do Equador, enredo da carnavalesca Rosa Magalhães. Foto: Wigder Frota. (disponível em: www.imperatrizleopoldinense.com.br)

Existem relatos de espanhóis, como o de Francisco Orellana em 1504, das visões de seres com um único olho e outros com os pés voltados para trás, sereias e amazonas. No entanto, contatos com o fantástico, delírios febris, incertezas racionais, idealizações e visões românticas de um Paraíso tropical avançaram os séculos, desembocando no período oitocentista.

O século XIX foi um período de grandes transformações científicas, políticas e artísticas no Brasil. Foi um momento de novas buscas e descobertas, em que estrangeiros surgiam ávidos por conhecer um universo, que aos olhos do visitante e do cientista, descortinava um significativo esplendor exótico e impensáveis sensações visuais. Foi um século de estudos e de observações dos costumes nativos, da diversidade biológica e de registros alicerçados pela literatura e artes plásticas. Expedições científicas grassavam o território nacional em busca do conhecer e depositavam no pintor-viajante o dever de consignar, por imagens, as belezas naturais do ainda não visto e o deslumbramento com os “habitantes do Paraíso”.

José dos Reis Carvalho, Flor com borboleta. Aquarela, 1859, 53,2 x 36,1 cm. Museu D. João VI/EBA/UFRJ. Foto: Reginaldo Leite.

Ei! Ei! Ei! O jegue é nosso rei! Em 30/05/1856 o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ao avaliar o papel das expedições internacionais em solo brasileiro, deliberou uma “expedição científica de exploração” ao Ceará. Os objetivos da viagem eram: organizar uma coleção de espécimes vegetais, minerais e animais; observar os costumes e características das povoações; e, principalmente, registrar por desenhos e aquarelas tudo aquilo que fosse encontrado. Assim, um ex-aluno de Jean-Baptiste Debret (1768-1848) foi escalado para o cargo de pintor-desenhista da expedição – José dos Reis Carvalho (1798-1892).

Liderados por Gonçalves Dias (1823-1864), partiram todos em 1859 transportando seus equipamentos, do Rio de Janeiro em direção a seis Províncias do Nordeste, com destino ao Ceará. A viagem foi apelidada por seus críticos de “Comissão das borboletas”, de forma pejorativa devido inúmeras pranchas pintadas por Reis Carvalho, entre 1859 e 1861, que registraram uma rica variedade de espécies de borboletas, delicadamente coloridas, e jamais encontradas em outras partes do mundo. Seres que habitavam nosso Paraíso? E por que não acreditar?

No desfile da Imperatriz Leopoldinense de 1995, a Professora Rosa Magalhães trouxe essa história insólita aos olhos de muitos e inusitada para os apreciadores dos arroubos históricos que marcam a trajetória da carnavalesca. Combinando o fato contado acima com a importação de dromedários e camelos, da Argélia para o Ceará, a pesquisadora discutiu em Mais vale um jegue que me carregue que um camelo que me derrube… Lá no Ceará, a necessidade de valorizar o que é nosso. Os animais estranhos ao solo pedregoso do nordeste não se adaptaram e foi o jegue, protagonista e condutor do grupo expedicionário, o herói nacional. Mas o que tem a ver esse episódio com a ideia de que o Paraíso é aqui? Lembram-se das borboletas pintadas por Reis Carvalho?

“Borboletas invadem minha mente”. Da neve austríaca à visão romântica do Paraíso, a arquiduquesa se perdia no imaginar de Brasis, ao observar pinturas e gravuras expostas nos museus de seu país. Objetos artísticos, artimanhas que a mente humana por meio do imaginário podia materializar, ao criar um Paraíso alimentado de ilusão e impregnado de infinitas possibilidades do fantástico. Uma terra habitada por borboletas gigantes, coloridas, mágicas. No ano seguinte ao bicampeonato, Rosa Magalhães contou honrosamente a história da Imperatriz Leopoldina (1797-1826). Era 1996, o ano em que a Marquês de Sapucaí conheceu a neve pela primeira vez e, que um casamento por procuração anunciava a vinda de uma jovem mergulhada em sonhos.

“E de lá pra cá, só céu e mar… Esperança. No El dourado encontrar, o Paraíso… E bonança”. A visão romântica de Leopoldina, logo fez a moça de olhos reflexivos se encantar por nossa natureza, pelo azul do céu, pela arte dos indígenas – aqueles que habitavam o Paraíso estudado por Sérgio Buarque de Holanda – por majestosas aves (anjos tropicais) e borboletas, que voavam colorindo um cenário deslumbrante. Contudo, assim como o Paraíso, também havia o Inferno. Peculiares visões que refletem diferentes Brasis.

Ala – Borboletas invadem a mente de Leopoldina. G.R.E.S. Imperatriz Leopoldinense, 1996. Enredo A Imperatriz Leopoldinense honrosamente apresenta: Leopoldina, Imperatriz do Brasil, de Rosa Magalhães. Foto: Oséas Jarmouch.

“Transformaram o Jardim das Delícias no Inferno da escravidão”. No carnaval de 2000, o Mestre João Trinta trouxe para o desfile da Unidos do Viradouro o enredo Brasil: visão de Paraísos e Infernos, no qual contava a história dos invasores que aqui chegaram, se deslumbraram com o possível Jardim das Delícias e implantaram abusos aos índios. Não satisfeitos, ainda transportaram africanos para cá em regime de total escravidão. Sob lamentos, mulheres e homens negros – habitantes das terras mágicas de Reis, Rainhas, Príncipes e Princesas – adotaram sincretismos para que seus costumes e tradições não se apagassem e a memória afetiva de uma África esplendorosa fosse preservada. Com o passar dos anos, culturas e cores se misturaram. Sons, ritmos, manifestações, rituais e danças tomaram vulto em um Brasil de diferentes identidades, de Paraísos e Infernos, mas de exuberância sem igual. Entretanto, essa não foi a primeira relação de João Trinta com o
imaginário do Paraíso e Inferno.

“Orfeu caiu… No abismo da saudade”. Em 1998 na Unidos do Viradouro, o carnavalesco visitou o universo de Dante Alighieri – alicerce para a idealização da clássica obra de Vinícius de Moraes, escrita em 1954, Orfeu da Conceição. Com o enredo Orfeu, o negro do carnaval, João Trinta contou a história de Orfeu e Eurídice ambientada numa comunidade do Rio de Janeiro. Ele, um jovem compositor e Rei das cabrochas, tinha em seus atos a sedução de poeta. Ela, uma jovem do interior do Brasil, exalava um misto de sensações – assombro e deslumbramento pela nova cidade, encanto e hesitação pelo amado carioca. Entre Paraísos e Infernos da realidade de jovens pobres, negros e sonhadores, os protagonistas se depararam com a violência, a traição, as injustiças desmedidas, o desespero, mas assim como Dante, Orfeu jamais perdeu a esperança em encontrar a amada Eurídice. E foi no carnaval, no desfile da agremiação do coração, que o Paraíso se completou.

Perca-se…

“Pecado é não se entregar”. O casal Renato Lage e Márcia Lage, no desfile do Acadêmicos do Salgueiro de 2017, também trouxe sua interpretação magistral da obra de Dante Alighieri, em A Divina Comédia do carnaval. O enredo, uma trinca de Reis, homenageou Fernando Pamplona (1926-2013), Arlindo Rodrigues (1931-1987) e João Trinta (1933-2011). E a homenagem não era gratuita, os três nomes foram fundamentais ao contexto histórico da agremiação. Introduziram inovações, identidade à escola, trabalhos marcantes e vários campeonatos.

Componente do G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro, 2017. Enredo A Divina Comédia do Carnaval, de Renato Lage e Márcia Lage. (disponível em: www.jornalrondoniavip.com.br)

A ideia para o desfile estava concentrada em três atos:” Alegria infernal”, “Pecado é não se entregar” e “Divina folia”, e tinham relação análoga aos três espaços do imaginário, descritos na obra original de Dante Alighieri – Inferno, Purgatório e Paraíso. No primeiro ato, o calor dos blocos de mascarados e as labaredas da alegria carnavalesca, em diversos âmbitos do brincar, eram apresentados pelo “Rei do Mundo Inferior”, o qual determinou que a máxima era o divertimento. No segundo, o cordão de foliões deixa de lado seus pecados e num alucinante cortejo, ruma em direção às águas da purificação, sem culpa ou medo de ser feliz. No terceiro momento do enredo, após a purificação do espírito, os foliões cruzam os portais do Reino de Momo. São recebidos pelo corso que anuncia a Santíssima Trindade Carnavalesca, os Reis da Academia do Samba – Pamplona, Arlindo e João. Belíssima homenagem! E fica a pergunta: o Paraíso terrestre está no morro do Salgueiro?

Entendemos quão próximos de Dante estamos e que Antônio Infante Zayas jamais imaginaria que o livro, encontrado por ele na Biblioteca Nacional em 1920 e que o fascinou, seria inspiração de um tema tantas vezes interpretado no carnaval carioca. Brasis de tantos Paraísos e tantos Infernos. Hoje, nosso Paraíso se encontra na Avenida da Fantasia Marquês de Sapucaí. Nela moram seres alegóricos, personagens mágicos, Reis e Rainhas de nossos morros. Elegantes senhores e senhoras que guardam tradições, mistérios e segredos.

Vem se perder no imaginar…

Vem sambar e se vestir de alegria até o dia amanhecer. Porque os habitantes do Paraíso jamais serão catequizados. São Mestres, Deuses e fazem Carnaval.

Reginaldo Leite é cenógrafo e professor universitário, pesquisador de Pós-Doutorado em
História da Arte (UERJ) e integrante do Studiolo – Grupo de Estudos vinculado ao CNPq e
liderado pela Professora Doutora Maria Berbara. É Doutor em Artes Visuais (UFRJ) e Mestre
em História da Arte pela mesma instituição. Autor de dois livros publicados: Os Crimes de
Platão (2019) e A Insanidade que nos une: um mergulho na arte de enlouquecer (2020).

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