Enredo: “Zé Espinguela – Chão do meu terreiro”

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AS RAÍZES

Meu Arranco do Engenho de Dentro,
Sua terra é preta e preto é o tambor que nossa gente toca nessa Avenida, o mesmo tambor que tocava em meu terreiro. É matriz de samba, herdeiro de semba, ancestralidade. Sou negro, filho de negros, neto de negros, negros de tantas raízes africanas que atravessaram terras e tempos até se misturarem às amendoeiras, jaqueiras, mangueiras, tamarineiras das ruas do Rio de Janeiro, dos subúrbios — até se fazerem novas raízes nesses nossos terreiros, dessa nossa gente. Meu nome é José Gomes da Costa, mas podem me chamar de Zé Espinguela.

Arranco, seu chão é o meu chão.

Fiz dele minha casa. Como muitos fizeram em cada chão uma casa, em cada corpo uma casa, em cada canto uma fé. O sangue malê que corre em meu corpo alufá é o sangue do saber e da transformação. Ele está em cada búzio lançado no opon ifa, em cada destino adivinhado nas areias, no tanto de axé, encantamento e de tantas fés que correm em tuas ruas suburbanas, nas muitas macumbas que nos definem. O Rio que carrego comigo é também um lugar de festa. Reza, luta e festa. Carnaval. Aqui eu me misturei às folias nos blocos de sujo, me fantasiei para os banhos de mar, batuquei com Zé Pereira e me encantei com os ranchos colorindo a Praça Onze nos braços de tias pretas. É esse Rio de encruzilhadas que eu vejo agora enquanto ouço seus tambores, Arranco, se preparando para tomar a Marquês de Sapucaí, na mesma Praça Onze onde o samba nasceu.

Durante muito tempo meu carnaval foi de festa e também de briga. Eu brincava nos Arengueiros do Morro de Mangueira. Rapaziada boa de samba e boa de briga. A gente descia as ladeiras do morro e ia se encontrar com o Faz Vergonha, dos meninos de Vila Isabel, na Praça Maracanã. Muitos outros blocos, muitas outras brigas. Ali era batalha de ginga, canto, verso, braço e perna. Às vezes navalha.

Eu gostava de estar em Mangueira. Onde tem batuque e reza a gente se encontra e vai ficando. Eu ia pras casas das mães pretas do morro, casas de canto e encanto. Bati cabeça com elas nos terreiros, reverenciei seus orixás. Oxóssi, Iansã, Ogum, Xangô. Me dava com a gente do morro. Cartola, Carlos Cachaça, Maçu, Saturnino, Zé da Zilda, Zé Com Fome, os outros. Foi num dia assim, de batuque, cachaça e conversa, na casa de Seu Euclides, que fundamos a Estação Primeira de Mangueira. Cartola tinha escrito “Chega de Demanda” pra pôr fim naquelas batalhas de arengueiros. Tava certo, o Angenor. A Mangueira chegou pra pacificar as coisas e colorir de verde e rosa o nosso carnaval.

A SEMENTE

“Foi em 1929 […]. Realizei no Engenho de Dentro. Sagrou-se vencedora a Portela, sabiamente dirigida pelo Paulo. Mangueira também se apresentou pujante, tendo os seus sambistas Cartola e Arturzinho apresentado dois sambas monumentais.” (Entrevista de Espinguela, Jornal A Nação, 1935.) Rio, 20 de janeiro de 1929. Dia de Oxóssi, de São Sebastião. Antes de tudo existir, já estava tudo aqui: a batucada, os versos, as bandeiras. Os fundamentos e assentamentos, a festa, a disputa. Tudo aqui.

Na minha casa, na Adolpho Bergamini, criei uma disputa de samba para saber quem era melhor. Eu tinha feito um concurso no ano anterior, mas esse de 29 é que ficaria marcado para sempre na História. Convoquei o povo da Deixa Falar, do Conjunto de Oswaldo Cruz e da minha Mangueira. Uma se transformaria no que é hoje a Estácio de tantas glórias. O outro viraria a Portela, que emprestaria o azul e branco de sua bandeira para amadrinhar sua história, Arranco. E a Mangueira… bem, a Mangueira segue sendo a Estação Primeira.

As agremiações trouxeram para o terreiro o que tinham de melhor, e o teu chão de engenho foi riscado por muitos e grandes bambas. Das bandas do velho Estácio vieram Ismael e Benedito Lacerda. De Oswaldo Cruz, Paulo Benjamim de Oliveira, Heitor dos Prazeres e Antônio Caetano. Minha Mangueira mandou Cartola e Arturzinho. Estavam todos aqui.

Ainda estão.

Naquele dia de Oxóssi e São Sebastião, a Sapucaí era aqui, nessa terra em que piso. Cada compositor cantava seus versos. As torcidas vibravam, a batucada foi até tarde, uma farra. O vencedor foi Heitor dos Prazeres, com “Não adianta chorar”, mas, como seria costume dali em diante, a apuração e o anúncio do vitorioso causaram uma baita confusão.

A solução foi decretar que todos eram vencedores e dar um troféu para cada agremiação. Dizem por aí que eu fui o primeiro a virar a mesa no carnaval… Mas veja bem, Arranco, aqui no nosso chão, naquele momento, uma nova semente foi
lançada em teu solo suburbano — e logo as raízes desse samba começaram a se espalhar. O Rio de Janeiro veria novas escolas aparecerem, criadas a partir de blocos e batucadas, assentadas nos muitos terreiros da cidade. Depois passaram a desfilar na avenida. Alas, carros alegóricos, enredos, sambas de enredo, comissões de frente, tudo foi chegando e foi ficando. No fundo, os fundamentos do concurso de 1929 estarão sempre presentes. O tambor, o terreiro, o samba e o sambista: é a isso que chamam chão. O nosso chão.

O TRONCO

“Espinguela, preciso que você faça um trabalho pra mim”. Quando ouvi o maestro Villa-Lobos dizendo essas palavras, pensei cá comigo: “ué, o maestro é chegado numas mandingas?, tá querendo que eu faça um despacho pra livrar ele de mau olhado, pra arrumar um amor, será que é isso?” Era não. Ele me conhecia do jornal Vanguarda, onde eu trabalhava, e só queria ajuda para reviver os cordões.

O Sodade do Cordão seria um cordão com o jeito dos antigos carnavais. Nada de briga, nada de bagunça, só festa, fantasia, dança e amor. Transformei meu terreiro numa espécie de barracão, desses que hoje ocupam a Cidade do Samba. Lá eu mesmo confeccionei as fantasias de caboclos, homens-sapos, cucumbis. Nas alas, vieram reis, rainhas, morcegos e diabos. De cacique, eu saí na frente do cordão.

O Sodade abriu caminhos para outros convites. Villa Lobos trouxe um outro maestro, Leopold Stokowski, para apresentá-lo à cultura brasileira. Gravamos nossas músicas a bordo do navio Uruguai, ancorado na Praça Mauá. Cartola, Pixinguinha, João da Baiana e Donga estavam lá. Native Brazilian Music foi o nome que deram para o disco — achei “o fino”, como se dizia. Deixei três gravações com meu Grupo do Pai Alufá: “Macumba de Oxóssi”, “Macumba de Iansã” e “Cantiga de Festa”.

Essa era minha vida: as rezas, as giras, os cantos, o samba, as ruas. Durante muito tempo foi assim.

OS FRUTOS

Quando parti deste mundo, queria ter, ainda em vida, aquela sensação boa que via nos gurufins. Queria aquela mistura de tristeza e de festa, queria percorrer as ruas suburbanas e subir as ladeiras do morro de Mangueira anunciando minha partida. Queria ouvir o surdo batendo no ritmo da minha minha primeira estação, os tambores dos nossos terreiros batendo, sentir o cheiro da terra e das pessoas do morro, a ladainha nas capelas, o jogo de bola, o povo do samba se divertindo no Buraco Quente, a algazarra das biroscas, o barulho que a criançada faz quando brinca, as juras de amor declaradas nos quartos de dormir, os cantos de festa e de dor, quis me despedir da vida onde ela me foi mais bonita. Adeus, Mangueira. A gente parte chorando, como disse no samba, mas parte sabendo que deixou uma semente.

Essa semente, meu Arranco do Engenho de Dentro, deu muitos frutos. Era o destino revelado no opele. São frutos nascidos nos terreiros, nas rodas e nas quadras, no fundo dos nossos quintais, nos quilombos transformados em favelas, nos templos de persistência da cultura negra e popular. Eles continuam frutificando onde os tambores batem mais forte, onde nossos corações batem mais forte, onde a vida segue e resiste como arte. O nosso chão semeado é o chão da gente negra; o nosso chão é o chão das escolas de samba.

Os fogos anunciam o início do Carnaval de 2023 na Marquês de Sapucaí. Quase cem anos se passaram desde aquele dia 20 de janeiro e posso ver agora que as marcas deixadas no nosso terreiro permanecem. Elas estão em cada pavilhão, em cada passista, na dança de mestre-sala e porta bandeira, nos versos dos poetas, na roupa alinhada que veste a velha-guarda, no suor da harmonia, na gente que trabalha escondida nos barracões, na alegria das alas no toque do repique, no barulhinho bom que vem no giro das saias das baianas, no brilho e no perfume que cada escola de samba tem. O nosso Brasil é um terreiro e toda escola é um quilombo.

Posso ver tudo isso agora enquanto olho nossa gente vestida de azul e branco entrando na avenida e comemorando 50 anos de sua história. E como é bonito te ver, meu Arranco, defender nossas raízes, nossos quilombos de resistência e arte, nossas heranças e suas novas sementes plantadas. E como você está lindo, meu Arranco. Sua gente feliz, teus santos felizes, teu canto feliz.

Zé Espinguela

Carnavalesco: Antônio Gonzaga
Texto e pesquisa: Antônio Gonzaga, Renato Lemos e Ana Rosa Alves
Presidente: Tatiana Alves
Vice Presidente: Dona Diná
Presidente de honra: Antônio Carlos Júnior
Diretores de Carnaval: Junior Fionda e Michel Porto

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