Se a Águia da Zona Leste cantou ‘Faraó Bahia’ em 2023 e caprichou na estética, agora, adentra ainda mais no mapa nordestino e irá cirandar com a artista Lia de Itamaracá. A segunda maior campeã do carnaval paulistano está em um grande momento. É sempre válido ressaltar que há pouco tempo a agremiação vivia fases conturbadas. O contingente de componentes diminuiu nos ensaios e era até cogitado que a Nenê de Vila Matilde seria apenas um patrimônio do samba de São Paulo, sem sequer disputar fortemente o carnaval como nos seus anos de glórias.
Porém, com a chegada do carnavalesco Fábio Gouveia, a escola conquistou o campeonato do Acesso II em 2022 e quase engatou a subida para o Grupo Especial em 2023, ocupando o terceiro lugar do Acesso I. isso reanimou os ares dos integrantes que, agora, estão totalmente engajados com os projetos carnavalescos. O site CARNAVALESCO visitou o barracão da Nenê e conversou com o carnavalesco Fábio Gouveia, conhecendo o projeto da escola visando o Carnaval 2024.
Surgimento do enredo
O carnavalesco diz que as raízes da negritude da Nenê casaram perfeitamente com a sua ideia do enredo, além do fato de que o tema estava preparado há algum tempo. “Lia de Itamaracá sempre foi um enredo que eu quis fazer e só queria uma oportunidade para encaixar. Ela é um patrimônio do nosso país, a maior cirandeira em vida. Isso foi ganhando ainda mais força quando eu cheguei na Nenê, que tem essa identidade preta, raiz cultural. A gente fez os projetos do ‘Narciso Negro’, ‘Faraó Bahia’ e precisava de um enredo para fechar essa trilogia. Na verdade, a Lia seria enredo da escola quando a Nenê subiu para o Acesso I. Já era algo conversado, mas optamos por fazer algo diferente para ganhar peso e homenagear a Lia como ela merece. Queríamos no Grupo Especial, mas guardamos. Depois ficamos um ano inteiro estudando as possibilidades, fazendo os contatos com a assessoria dela e equipe de trabalho para chegar a um consenso. Depois do desfile das campeãs nós fizemos o primeiro contato com a presença dela para apresentar o enredo de fato. Ela prontamente nos atendeu e foi muito mágico”, contou.
Quase desistência
O Império da Tijuca, agremiação do Rio de Janeiro, também irá homenagear Lia de Itamaracá. Fábio disse que pelo fato de a divulgação da Nenê ter sido depois, algumas pessoas fizeram parecer com que fosse um plágio, o que fez a escola desistir de homenagear a artista. Porém, com provas de fotos de reuniões essa turbulência foi sanada. “Pós o lançamento, depois de oficializar, chegamos a desistir, porque uma outra agremiação lançou o enredo antes da gente e também vão homenagear a Lia, que é o Império da Tijuca. Ficamos meio na naquela: Se a gente lançar vai parecer um plágio. E realmente deixaram isso muito claro, que era um plágio da Nenê, quando na verdade não era. Nós estávamos conversando há mais de um ano para fazer esse enredo. Então até explicar e mostrar fotos de reuniões, foi difícil tirar essa imagem de que a Nenê plagiou a outra agremiação”, declarou.
A pesquisa de enredo
Na explicação de como levar o enredo para a pista, o artista contou que quis eliminar a narrativa da história da Lia de Itamaracá, como nascimento e vida dela. Optou por transformar a cirandeira em uma personagem lúdica. “Depois veio a discussão de como seria essa sinopse, de como abordar esse carnaval e eu trouxe o Felipe Diniz para auxiliar, contamos com o Sérgio Santos, que é da escola, muito antenado com o projeto, Márcio Telles, meu parceiro de muitos anos nessa construção de enredos, de proposta de enredos pretos nesses últimos anos. Dentro disso, pensamos em abordar a Lia de Itamaracá em um conto de fadas. Uma menina preta que foi agraciada com um dom e mais tarde viria se tornar rainha, mas para ela conseguir isso, teria que passar por inúmeras dificuldades e situações. Nós transformamos a vida da Lia, uma menina preta, em um conto de fadas. É isso o que está sendo. Muito mágica toda a realização do carnaval”, disse.
‘Atravessei o mar de fogo’
Perguntado sobre o que mais fascinou Fábio dentro da pesquisa do enredo, ele comentou que foi a maneira de a cirandeira se reinventar, assim como a Nenê de Vila Matilde. De acordo com o carnavalesco, Lia de Itamaracá sofreu um incêndio em sua casa. Algo similar aconteceu com o artista, quando perdeu todo o projeto para o fogo, onde aconteceu um incêndio no barracão da Independente Tricolor, no ano de 2019. “A Lia é uma fortaleza por tudo o que ela viveu na vida dela. Isso é uma coincidência não só para a minha vida, mas também para a Nenê. É uma escola que sempre está se reinventando para se resgatar. Eu também sou uma pessoa que busco me reinventar para ser diferente de alguma maneira. Na pesquisa para o enredo, o ponto chave foi a descoberta que ela teve a casa incendiada. Foi um dos pontos mais fortes para mim. É algo que não está superado. No dia de apresentação dos figurinos, ela abriu essa fantasia que fala do mar de fogo e disse: ‘eu estou vendo o que eu vivi’. Ela contou como se deu o fogo na vida dela e poucas coisas se restaram, apenas a bíblia, algo que tem muita fé e devoção. Ela me viu emocionado e perguntou o porquê. Eu contei toda a minha história do carnaval na outra agremiação, e que sobrou apenas um croqui no barracão todo queimado e que eu guardo até hoje. E aí entendemos o quanto o fogo e a situação nos aproximou. Tem sido assim. O carnaval da Nenê não é fácil, mas tem sido de luta e superação todos os dias”, contou.
Engajamento com o enredo
Lia está sendo bastante participativa para o próximo desfile, seja dentro ou fora da escola. Internamente, a homenageada aprova, faz pedidos e sempre está em contato com a agremiação. Externamente, participou de festas e chegou até a dar uma coletiva de imprensa para a mídia especializada de carnaval, pouco tempo depois do anúncio. Segundo Fábio, a comunidade da Nenê de Vila Matilde está se sentindo totalmente representada. “A Nenê sempre fala de pessoas pelo que elas são e pelo que contribuíram para o carnaval e para o país. A Lia foi um encontro. Desde as primeiras reuniões até a chegada dela na quadra, a escola teve um contato muito próximo dela por ser uma pessoa muito próxima de todo mundo. Ela fala muito de unir mãos com mãos para que se alcance o objetivo. Ela une todo mundo. Por onde ela passa, vai unindo as pessoas, juntando todo mundo em torno de um sentimento. A ligação da Lia com a escola é muito forte. Ela vive o tempo todo o que a escola está fazendo. Quando não gosta, ela fala e faz pedidos. Está sendo muito bom para o componente da Nenê ter uma pessoa sendo homenageada pela escola, mas que também é parte dela. Para ela também é uma festa muito bonita. A Lia completa 80 anos em 2024, celebra o ano dela desfilando por duas agremiações e também sendo tema do carnaval de Pernambuco”, afirmou.
Estética diferente
Fábio Gouveia encontrou muitas dificuldades desde que chegou na escola. Isso limitou a tamanha beleza que queria impor na plástica dos carros alegóricos e fantasias. Porém, de acordo com o carnavalesco, isso vai mudar para o próximo desfile, pois garantiu que haverá mais luxo e encanto no conjunto visual da águia. “Para 2024 nós vamos mudar totalmente a estética. No meu primeiro ano aqui foi um carnaval com muita dificuldade, estava no Acesso II, era um processo pós-pandemia e não tinha recursos para nada. Trouxemos uma estética boa para a escola, que há mais de 10 anos a escola não trazia nota de fantasias e alegorias. Para o segundo ano, no ‘Faraó Bahia’, eu pedi muito para que a gente tivesse um olhar diferenciado para o luxo, acabamento, novas formas e foi atendido. Para o carnaval da Lia nós vamos mostrar uma estética totalmente diferente. A gente quer uma estética lúdica para que as pessoas olhem a Nenê com essa beleza, afinal estamos fazendo um conto. Tudo mudou. É um carnaval um pouco mais luxuoso, que está priorizando os detalhes. A pessoa que estiver assistindo e o componente que vestir a fantasia, vai observar essas nuances. A Nenê sempre teve problema com essas coisas de finalização, mas agora conseguiu resolver, tanto aqui no barracão, quanto no ateliê de fantasia. A escola cresceu muito nesse segmento. Se a Nenê se sente orgulhosa e bem vestida, vai pra cima”, declarou.
Um desfile mágico
Segundo o artista, a magia será a grande ‘carta na manga’ da Nenê de Vila Matilde para 2024. “O trunfo vai ser a magia. O enredo fala de encantamento e profecia. Iemanjá admira aquela menina de 12 anos caminhando sob a beira-mar cantarolando e chora sobre a cabeça daquela menina, e Iemanjá chora, se emociona e derrama as suas lágrimas, sendo na verdade o talento que mais tarde vai transformar essa menina em rainha. Tudo vai ter magia. Nas alegorias, fantasias e na forma como o nosso componente vai se comportar”.
Conheça o desfile
Setor 1: “O setor que abre o desfile fala sobre a profecia das águas. Essa coisa de Iemanjá de admirar a criança e sobre ela jorrar o talento. Nós abrimos o desfile falando dessa profecia”
Setor 2: O segundo setor vai falar da vida da Lia ganhando o mundo. Como a Lia atravessou as dificuldades e mesmo assim não perdeu a sua fé e esperança até alcançar os seus objetivos, que era unir os povos cirandando através das suas cantorias, musicalidade e do seu som. Ela foi viajando pelos fogueiros populares, culturas e tradições de um povo até chegar fora do Brasil e viajar pelo mundo levando essa sua ciranda encerrando com a grande festa de coroação
Setor 3: “O nosso último setor fala deste encontro com a Lia. Quando ela se vê homenageada por uma das maiores escolas de samba de São Paulo e do Brasil. Ela se vê homenageada por toda sua honra e glória por uma escola coberta de glórias, como diz o seu hino. Ela encerra o desfile com essa coroação. São os 75 anos da Nenê de Vila Matilde e 80 anos de Lia de Itamaracá”
Desfilando na terceira posição do domingo de carnaval, pelo Acesso I, a Nenê de Vila Matilde irá apresentar o enredo: “Cirandando a Vida de Lá e pra Cá! Sou Lia, Sou Nenê, Sou de Itamaracá”.
Ficha técnica
Três alegorias
1200 componentes
Diretor de barracão – Cristiano da Nenê
Diretora de ateliê – Bruna Moreira