O Paraíso do Tuiuti está de volta ao Grupo Especial desde 2017, o maior período na elite do carnaval desde que a Amarela e Azul de São Cristóvão foi criada em 1952. Com um vice-campeonato em 2018, a agremiação tem trazido para a Sapucaí enredos com forte presença da representatividade negra, com temas políticos e voltados para grande cuidado com a responsabilidade social como “Ka RíBa Tí Ye” , “Meu Deus, meu Deus” e “Carnavaleidoscópio Tropifágico”, e assuntos inéditos e ricos de brasilidade como “O santo e o rei”, “Mogangueiro da cara preta” e “O Salvador da Pátria”, que também não deixavam de ter o seu “pézinho” nas questões sociais. De volta ao Tuiuti, após carnavais na Mocidade e na Unidos da Tijuca, o carnavalesco Jack Vasconcelos, responsável pela parte artística daquele desfile aclamado pelo povo e que quase beliscou o título há 6 anos atrás, mais uma vez segue a linha de enredos da escola nos últimos anos e levará para a Sapucaí “Glória ao Almirante Negro!”. A história faz uma justa homenagem a João Cândido, um marinheiro brasileiro que se engajou na luta contra os maus-tratos, a má alimentação e as chibatadas sofridas pelos colegas. Jack explicou que o objetivo é difundir para o máximo de pessoas possível a história e importância do almirante e revela que a equipe se surpreendeu bastante com o conhecimento que o grande público já tem do personagem histórico.
“O nosso intuito é dar esse reconhecimento, é trazer o João Cândido para um conhecimento maior. Na verdade, neste caminho até aqui a gente percebeu que o João Cândido é mais conhecido do que a gente imaginava inicialmente. Mas, às vezes era um reconhecimento um pouco superficial, às vezes as pessoas não o ligavam nem à Revolta da Chibata em si, e por isso, acredito que vamos dar uma contribuição bacana para essas peças todas se encaixarem na cabeça do público em geral, da grande massa, que na verdade é o público que mais nos interessa. A gente pegar a massa e mostrar para eles que nós temos um herói vindo da massa que nos representa, e que lutou pelos direitos humanos, lutou por nós, que ele serve de exemplo maravilhoso, já que estamos em uma época que carece de heróis bacanas”, afirma o carnavalesco.
Em abril, quando o enredo foi lançado, a logo também foi divulgada. A marca do enredo foi desenvolvida pelo designer e ilustrador Antônio Vieira. O profissional se inspirou no universo dos quadrinhos para criar o desenho. A arte é uma capa de HQ, já dando o tom do que o carnavalesco Jack pretende trazer como identidade visual para este desfile.
“O nosso intuito é mostrar o João Cândido como o herói nacional que ele é. Existem alguns códigos visuais que a gente usa quando a gente quer dar uma ênfase maior a alguma passagem histórica, quer dar esse tom heróico que passa pelos dourados, pelos castanhos, a figura heróica, a passagem heróica, a construção de uma imagem, de um momento heróico, passa muito por esse filtro. A gente pensou muito no que que a gente podia usar para facilitar essa linguagem a ser assimilada pelo público. O desfile, como um todo, está se aproximando de uma linguagem pop, por que falo pop e usando a questão do heróico? Minhas referências para montar o desfile são muito cinematográficas e muito das histórias em quadrinhos. Desde o início eu pensei em mostrar o João Cândido de uma forma em que as pessoas entendam que estamos falando de um cara que é um herói. A gente não esconde isso, é isso o tempo inteiro, não é uma surpresa para quem não conhece o João Cândido que ele é o herói do enredo. A gente já deixa claro desde o início que a gente está falando de um momento heróico, que a Revolta da Chibata é um momento heróico da história brasileira. Alguns códigos de cores e de formas, eu extraí das linguagens de HQ e algumas coisas de cinema para a gente poder trazer para o desfile “, explica Jack Vasconcelos.
Não só se inspirando nas histórias em quadrinho, mas também nos grandes sucessos de Hollywood para apresentar esse enredo, Jack espera que o público consiga ver João Cândido como o protagonista que ele foi para a luta pelos direitos humanos no Brasil e que esse desfile possa ser um “sucesso de bilheteria”.
“O enredo é um épico, é um filme de três horas “Hollywood mente” falando é daqueles filmes de três, quatro horas no cinema que vai ter 11 indicações , é um épico da história brasileira que a gente vai botar na Avenida. João Cândido é tratado com esse filtro heróico mesmo, desde o início”, enfatiza Jack Vasconcelos.
Família de João Cândido participa de toda a construção do desfile
Único filho vivo de João Cândido, Adalberto Cândido, conheceu de perto o projeto de alegorias e fantasias que o Paraíso do Tuiuti vai levar para a Avenida no próximo Carnaval. Seu Candinho, como é chamado,com quase 90 anos, chegou a conhecer o barracão da agremiação ao lado de familiares e tem estado bastante presente acompanhando o desenvolvimento do projeto. Em agosto esteve na festa de lançamento do samba na quadra do Paraíso do Tuiuti e falou de forma exclusiva ao site CARNAVALESCO sobre a honra e importância de ver seu pai sendo homenageado além da expectativa pelo desfile onde estará presente ao lado de familiares e amigos.
“É uma satisfação muito grande para mim, para a minha família, para todos os admiradores do meu pai, por ele ser reconhecido e já pelo povo. Meu pai é um herói popular. É bom ele ser reconhecido pelo povo brasileiro. E no desfile, a emoção vai vir na hora, na hora que entrar no sambódromo, não é para qualquer. Se Deus quiser estarei desfilando com minha família e amigos”, explicou o filho do “almirante negro”.
O projeto desenvolvido por Jack passou pelos olhos da família que ajudou bastante desde o início colocando a disposição do carnavalesco arquivos, documentos e relatos importantíssimos para que o enredo pudesse ir além da Revolta da Chibata, mas também traçar um pouco mais da vida de João Cândido.
“Eles conheceram o Barracão, conheceram o projeto que já estava um pouco mais adiantado, mas desde o início quando a gente resolveu que seria este o enredo, a gente entrou em contato com eles e foram super bacanas. O bom, que eu percebi na questão da família do João Cândido, é que eles entendem perfeitamente o papel dele como grande personagem da história brasileira. A preocupação deles era, na verdade, de como se usaria a imagem do João Cândido. Como a gente deixou claro para eles, desde o início, que a nossa intenção sempre foi só homenageá-lo e o trazer como uma referência para as pessoas de hoje, eles nos deixaram muito livres nessa questão da criação. Ficaram à nossa disposição para darmos uma olhada alguns materiais que eles nos cederam que são do acervo familiar”, conta o carnavalesco do Paraíso do Tuiuti.
Seu Candinho foi fundamental neste papel pois é um entusiasta e efusivo defensor do legado do pai. Com seus quase 90 anos, Adalberto Cândido tem trabalhado muito para que João Cândido tenha o reconhecimento que merece e com certeza viu essa possibilidade no desfile do Paraíso do Tuiuti. Seu candinho conhece muito bem a história do pai, suas aventuras e sua luta pelos direitos humanos. O carnavalesco Jack Vasconcelos conta que quando o filho do “almirante negro” visitou o Barracão, o artista nem precisou explicar muita coisa para o herdeiro do homenageado.
“A gente ficou muito feliz de ver o seu Candinho estar por aqui e o mais bacana é ele descrever as coisas da história, a partir dos carros. Eu não precisei abrir a boca. E isso fez a gente pensar que acertamos em cheio. E também o fato dos familiares sempre estarem dispostos, solícitos, toda vez que a gente precisa tirar alguma dúvida, ou precisar deles para vir até aqui. Estão sempre aqui com a gente. Esta construção com o aval da família foi muito importante e isso dá para a gente um conforto de saber que a gente acertou pelo menos em questão de construção, de conceito, a gente acertou porque a família está muito à vontade com a escola e com o enredo”.
Barracão a todo vapor e uso das cores para dar o clima de cada setor
Muito elogiado pela forma como consegue tratar os seus enredos e muitas vezes sair do lugar comum, Jack Vasconcelos já contou a Baía de Todos os Santos pegando o ponto de vista das águas, já trouxe para Sapucaí o guaraná a partir de um prisma baseado na arte Naif, contou a vida e a carreira de Elza trazendo também uma homenagem a educação. Em termos de resultado seu grande trabalho foi no Tuiuti 2018 quando lançou um questionamento se a escravidão havia realmente sido abolida, pergunta chave para um enredo que falava sobre o momento dos direitos trabalhistas. Agora neste retorno, a vez é de João Cândido, que já passou na Sapucaí algumas vezes sendo citado, neste desfile, será a grande estrela, homenageado como o herói que foi. Jack explicou que buscou fazer com que o público possa sentir a emoção de cada momento vivido pelo almirante através da divisão cromática e de formas em cada setor. O artista espera causar diferentes sensações no público a partir de cada parte do desfile do Tuiuti.
“A gente tem setores que existem para você sentir o que as pessoas sentiram naquele momento de enredo. A gente tem o segundo setor que é quando ele entra para a Marinha que é um choque de visão mesmo, das coisas que ele vai ver, das chibatas e da correlação que se faz com um passado colonial que insistia e insiste em continuar por aí. A gente tenta decodificar em cores e em formas esse choque. O outro é uma coisa mais descoberta, tem uma viagem para outro tipo de mar. A gente tem uma cor de mar para Brasil, a gente tem uma cor de mar para lá fora, então, o enredo vai falando com as pessoas através dessas emoções despertadas por esses signos. Tem um setor que está quase inteiro avermelhado por conta desse sangue do marujo que escorre das costas e entra pela Baía de Guanabara e deixa a gente louco de raiva para explodir a revolução. As cores vão conversando com o público durante o desenvolvimento do enredo e trazendo as pessoas para dentro da história”, esclarece Jack.
Com um início que tem tudo para ser arrebatador, com um abre-alas que com certeza vai impressionar o público pelo tamanho, o carnavalesco procura não definir as emoções pela largura ou altura de alegorias, a ideia é atingir o público pela emoção do conteúdo que o carros e fantasias vão trazer para a Sapucaí.
“O que estamos fazendo é um desfile que traz essa preocupação com o épico, com a cor do épico, com esse signos de cinema, de história em quadrinhos para mostrar o nosso personagem. Como todo desfile que eu faço, eu atendo ao que o personagem ou ao que enredo pede. Desde o início o João Cândido pediu, me impôs ser tratado como herói e esse momento da história do Brasil ser tratado como um momento heróico. É claro que um carro tem mais impacto do que outro, mas isso a gente não tem como controlar, isso é gosto pessoal de cada um mesmo, mas a gente tenta dentro da nossa formação e do nosso estudo a ideia de brincar com esses signos e fazer as pessoas terem a sensação de estarem oprimidas em uma alegoria, ficar mais relaxadas em outra, e essas coisas vão acontecendo durante o desfile. Se juntar tudo e o pessoal falar ‘nossa tava grande’, beleza. Mas não é o intuito desde o início. A gente faz o que é melhor para a história”, define o artista.
E até por isso, para Jack não há uma alegoria preferida. O profissional enfatiza que todas precisam ter um cuidado, e acrescenta em tom brincalhão que não pode ignorar uma e destacar outra. Nessa reta final, o momento é de foco para dar o melhor acabamento para tudo aquilo que o artista tem planejado levar para a Marquês de Sapucaí.
“Essa época é assim mesmo, a gente mete mais a bronca severa na reta final e o intuito é sempre fazer o melhor possível. A gente olha, acha que cabe mais um negócio ali, sempre assim, vê onde pode dar mais uma tinta, mais um tonzinho, tipo esse azul aqui está muito chapado, vamos dar outra mão, a gente vai afinando as coisas. Não sei (sobre a alegoria que mais gosta), é uma pergunta difícil. Eu tenho que dar conta de todas, não posso pensar,’ não gosto muito desse carro, vou fazer de qualquer jeito(risos), não tem isso”, brinca o carnavalesco.
Mensagem do enredo é extremamente atual
Em uma realidade em que os direitos da dignidade da pessoa humana são ridicularizados, onde muitas vezes torturadores são aplaudidos, o enredo do Paraíso do Tuiuti ainda é muito atual. Como uma marca também dos enredos de Jack Vasconcelos, a história contada no passado sempre dialoga com o presente e busca entender como essa relação se dá e como pode contribuir para um futuro melhor. A responsabilidade social do desfile, do carnaval e sua potencialidade como mensagem sempre é bastante avaliada. Um dos pontos que esse traço estará bem claro vai ser na terceira alegoria que trará o entregador Max Ângelo dos Santos, agredido a chicotadas em São Conrado, bairro da Zona Sul do Rio de Janeiro, no ano passado. Max aceitou o convite do Paraíso do Tuiuti e será João Cândido no carro que representa o momento da Revolta da Chibata (1910). Jack Vasconcelos falou mais sobre a importância que o enredo tem para pensar questões atuais.
“A grande mensagem é que a gente precisa estar sempre de olho na chibata que ainda está por aí, que ainda não acabou, que a luta não acabou. E também que democracia é uma luta constante, é uma vigilância. Nós tivemos há pouco tempo aí provas suficientes de ameaças, inclusive, à nossa democracia. Direitos humanos e direito à cidadania, à democracia, são lutas constantes. A gente não pode deixar de estar alerta. O João Cândido quando a gente olha para a estátua dele na Praça XV, é não deixar a gente esquecer que a gente não pode descansar porque as chibatas ainda estão por aí tentando ser empunhadas e a gente não pode aceitar”, prega o artista.
E não só na terceira alegoria, mas de forma mais clara no final do desfile, segundo Jack, haverá signos que vão apontar que esta luta continua mais atual do que nunca.
“A gente tem no final da escola algumas representações do que acontece hoje, dessas chibatas que a gente vê ainda serem instaladas durante o dia a dia e que já deveriam ter terminado. São imagens que ficaram na nossa formação, cultura e que elas devem ser abolidas”, conclui o carnavalesco.
Conheça o desfile
O carnavalesco Jack Vasconcelos revelou que o Paraíso do Tuiuti va levar para a Sapucaí no enredo “Glória ao Almirante Negro!” cinco carros e dois tripés, além de 29 alas. Confira uma ideia da setorização do enredo a partir da fala do carnavalesco.
“A gente vai acompanhando a construção desse herói, da infância dele no Rio Grande do Sul, dele entrando na Marinha, vendo as atrocidades, depois ele viajando para a Inglaterra e conhecendo a questão do sindicalismo, os movimentos, ele se nutrindo dessas informações e percebendo que ele não necessariamente precisaria se conformar com o que ele estava vendo de errado. A luta e ele se tornando líder e no final ele se tornando essa referência para a história do Brasil que ele acabou se tornando “, detalha o carnavalesco.