Após apostar em enredos que se direcionaram para um discurso mais politizado nos últimos anos, a Beija-Flor resolveu realizar uma mudança de rota na temática e também no comando da produção visual. Após dobradinha com Rosa Magalhães no Paraíso do Tuiuti em 2023, João Vitor Araújo chega à Deusa da Passarela, para o que pode ser o seu maior desafio na carreira até o momento pelo menos. Dona de 14 carnavais campeões, a Azul e Branca de Nilópolis, maior vencedora da Era do Sambódromo, não ganha desde 2018. Neste século, já é o maior jejum da escola. O que sempre permeia o pensamento do torcedor Nilopolitano é a lembrança de uma Beija-Flor imponente, luxuosa, grandiosa, uma agremiação que atingiu o ápice destas características talvez no bicampeonato de 2007 e 2008, com “Áfricas” e “Macapaba”, mas que se fez presente também em outros títulos deste século, como no tricampeonato de 2003, 2004 e 2005, além do desfile de 2015 sobre a Guiné Equatorial. Por isso, mais do que o título, o torcedor da Beija-Flor almeja um reencontro com uma estética suntuosa e garbosa, com muito volume e grandiosidade, mas com eficaz atenção também para o acabamento. O que se pode ver até aqui do barracão da Deusa da Passarela parece ir ao encontro com o que deseja a comunidade. João Vitor, que em seus trabalhos apresentou um estilo muito similar com estas características da Beija-Flor vitoriosa, tem trabalhado incansavelmente para corresponder aos anseios do povo nilopolitano.
“Foi tudo pensado com muito carinho, com muito amor. Obviamente a gente não consegue agradar a todo mundo. Isso faz parte, mas eu acho que a comunidade vai gostar muito do que a Beija-Flor vai mostrar na Avenida. Ainda estamos finalizando algumas coisas, dando aquele cuidado, tem muita coisa empoeirada porque já está pronta há muito tempo, estão cobertas, isso faz parte. O barracão está apertado, muito apertado, porque os carros estão ocupando muito espaço”, revela um bastante empolgado João Vitor.
Com a produção a todo vapor e a escola terminando os últimos detalhes, o carnavalesco explica que neste momento a equipe de barracão caminha para os últimos retoques, tem muita coisa já pronta há um bom tempo que por conta das tarefas que são realizadas em outros carros, acaba se sujando um pouco o que já está pronto. Mas, o profissional promete que tudo estará maravilhoso quando for entrar na Avenida.
“Às vezes a gente está trabalhando em outra coisa e esbarra em uma barra de ferro, ou uma chapa de madeira, que danifica alguns materiais, mas isso é normal, tem coisa que pegou um pouco de poeira mas são retoques que para quem não entende, não conhece barracão, a gente não pode ficar retocando isso a toda hora, porque senão a gente fica fazendo só isso todo dia. O que a gente faz? Quando chega na semana do desfile, a gente deixa para passar aquele pente fino, e aproveita para fazer isso, dar esses retoques só uma vez. Porque senão o profissional fica parando o que ele tem para fazer de fato, e fica passando massa aqui o tempo todo. Porque enquanto tiver dentro do barracão a alegoria, é isso que vai acontecer, é um fluxo muito grande de gente carregando peças, madeira, fantasias, esculturas, carregando isso, carregando aquilo, então acaba danificando, arranhando ou amassando. Esse é o quotidiano de um barracão de escola de samba, mas estou cuidando para que tudo fique pronto até o dia do desfile”, promete o carnavalesco que não esconde o entusiasmo com o que está produzindo para a Beija-Flor.
Como citado na abertura, a comunidade de Nilópolis tem por este desfile de 2024, a expectativa de assistir e participar de um carnaval que consiga atingir o nível plástico de imponência que há alguns anos a escola não tem conseguido. Só para ilustrar esta premissa, a escola não gabaritou o quesito Alegorias e Adereços nos últimos cinco carnavais, algo impensável para a Soberana em outros tempos. Ciente de tudo isso, João Vitor procura não levar essa pressão para o barracão e se concentra em fazer aquilo que acredita que é peculiar ao seu estilo e que é inerente ao estilo da Azul e Branca nilopolitana.
“Eu não posso gerenciar a expectativas das pessoas. Eu não posso, porque senão eu não trabalho, senão eu não consigo seguir. Se você for parar para pensar isso, você não produz. Você tem que ir naquilo que você acredita, mas respeitando a característica da escola, o que aquela comunidade gosta. Tudo está sendo produzido com tanto carinho, com tanto amor, com tanto zelo , o cuidado com o barracão, dando acabamento, pois gosto muito de cuidar dessa parte, dos detalhes, das finalizações, pode neste momento até ter alguma coisa soltando, se desprendendo, mas estou cuidando para que as coisas voltem para o seu devido lugar até o dia do desfile. É isso que eu quero que a comunidade se enxergue neste trabalho, que ela fica impressionada, como alguns que eu já recebi aqui no barracão, infelizmente eu não posso receber todos, mas os que recebi ficaram felizes, satisfeitos com o que está sendo produzido”, conta o artista.
Enredo cultural e que inspira até história cinematográfica
A aposta deste ano da Beija-Flor é um enredo que fala sobre as nobrezas de Maceió, de Nilópolis e da Etiópia. Um encontro mágico de personagens reais, mas que nunca se viram, guiados pela luz dos encantados e da ancestralidade, com as cores, os ritmos e os pisados dos folguedos das Alagoas. E nesta história, um personagem se destaca: Rás Gonguila. Nascido em Maceió, no ano de 1905, e chamado Benedito de berço, menino no início do século passado, Rás cresceu ouvindo histórias encantadas de antepassados que eram reis e rainhas em um país africano, a distante Etiópia, e que desfilavam sua realeza lá pelos altos da Serra da Barriga. Entre sua herança africana que ele foi descobrindo ao longo do tempo, juntando com seus devaneios até se tornar o rei do carnaval de Maceió, a Beija-Flor vai trazer de forma lúdica toda essa narrativa e difundir um importante personagem da cultura maceionse. No pré-carnaval houve algumas insinuações e críticas ao enredo que não mexeram nem um pouco com a escola que confia na escolha realizada para este ano.
“Há quem duvide da existência do Rás Gonguila. Outro dia tivemos que ouvir que achamos um enredo no lixo. É um cara que tem uma história linda que está virando filme. Estou contando para vocês, vem um filme aí e o Rás Gonguila será o protagonista. Isso não é a partir da Beija-Flor não, é a partir de uma outra fonte de pesquisa, que descobriu que a Beija-Flor de Nilópolis está com esse enredo e procurou a gente para poder participar, para saber como está sendo, nada mais, nada menos que a obra está sendo produzida pelo Cacá Diegues, que é maceioense, e ficou muito impressionado quando soube que a Beija-Flor falaria de Maceió através da figura de Rás Gonguila”, revela o artista da Beija-Flor.
Rás Gonguila estará presente no próximo filme de Cacá, de nome “Deus Ainda É Brasileiro”, com previsão de lançamento no primeiro semestre deste ano. O cineasta aceitou um convite do carnavalesco João Vitor Araújo e vai desfilar pela Beija-Flor.
Nesta busca por maior entendimento da história, o carnavalesco João Vitor foi até Maceió para conhecer um pouco mais do homenageado e para se relacionar a fundo com os lugares por onde passou e com a cultura riquíssima da cidade que também é protagonista do enredo. Neste processo que se iniciou em maior quando o enredo foi divulgado, integrantes importantes da escola também estiveram pela capital do estado de Alagoas para gerar esta interação. Dentre eles, o casal de mestre-sala e porta-bandeira Claudinho e Selminha Sorriso, a rainha Lorena Raissa, a bateria de mestre Rodney e mestre Plínio, e o diretor de carnaval Dudu Azevedo. A partir das trocas que realizou e do conhecimento que absorveu nesta visita, o carnavalesco Joao Vitor entendeu que a linha conceitual do enredo deveria partir mesmo pelo delírio carnavalesco.
“O que achei mais interessante foi esse delírio, porque é muito doido, parecia uma história da carochinha contada na mesa de bar. E não era, era real. Eu precisei ir até Maceió para descobrir como de fato isso aconteceu.Ele é o rei dos carnavais de Maceió. A gente cria algumas coisas, interliga histórias, fazer carnaval é uma invenção, é uma maluquice, se você quer figurino teatral você vai para o teatro, se você quer figurino de TV, você vai para TV. Se você quer carnaval, você tem que carnavalizar. Carnavalizar é uma maluquice. Mas é aquela maluquice gostosa, todo mundo gosta, todo mundo briga, discute, o pau quebra, a porrada estanca na internet, mas depois está todo mundo junto dizendo que está morrendo de saudades do carnaval. É essa loucura gostosa, fantasiar, carnavalizar, imaginar, delirar como a gente está fazendo com esse enredo”, define João.
Desfile de 2024 foi pensado para o nilopolitano, ‘carnaval com cara de carnaval’
Completando 10 anos desde que assinou seu primeiro carnaval em 2014 pela Viradouro, quando conquistou o título da antiga Série A e trouxe a escola de volta ao Especial, João Vitor chega na Beija-Flor mais maduro com três carnavais produzidos no grupo de elite do carnaval carioca, dois pelo Tuiuti e um pela Viradouro, além disso, tem um vice-campeonato do Grupo de Acesso pela Unidos de Padre Miguel. Na carreira ainda acumula trabalhos como assistente de carnavalescos nos barracões de escolas como Portela e Mangueira. E também assinou desfiles na Rocinha e no Cubango, esta última com um rebaixamento completamente injusto que beirou a uma aberração em termos de resultado. Sem dúvidas, assinar o desfile da Deusa da Passarela em um momento de seca de títulos é uma grande responsabilidade, mas também uma grande oportunidade. E, sem dúvida, o caminho para acertar é entender e produzir aquilo que a nação nilopolitana deseja.
“Pensei muito nesse desfile para aquilo que o nilopolitano deseja, almeja como carnaval, pois ele me abraçou e por isso eu tenho que abraçar de todas as formas essa comunidade. Quando eu falo que eu não posso gerenciar ansiedade dos outros é porque senão a gente não trabalha. Mas estou ali sempre tentando fazer de tudo para que eles se sintam acolhidos, para que eles se sintam representados. Esse meu trabalho é por Nilópolis. Eu adoro o visual mais requintado e luxuoso que virou uma marca da Beija-Flor. Gosto da grandiosidade, da beleza, assim como a escola. Então, o torcedor pode esperar isso novamente: Carnaval com cara de Carnaval! Nada contra aos outros estilos e as demais características, mas vou fazer aquilo que eu gosto de ver e o que o público gosta também. Então, aguardem uma Beija-Flor lindíssima”, prometeu o carnavalesco.
O trabalho em grandes escolas tem o ônus e o bônus. João Vitor já sentiu na pele isso em outros trabalhos no Grupo Especial. Mas, na Beija-Flor tudo fica maior. Então uma frestinha do barracão que mostra um pedaço de carro ainda não terminado ou sem mostrar o contexto todo pode ser uma ferramenta para intenções de pessoas maldosas. Por isso, o carnavalesco pede paciência para a comunidade e torcida da Beija-Flor, confiando em seu barracão, nas suas ideias e enfatizando que o carnaval só acontece mesmo na MarquÊs de Sapucaí.
“A gente mostra as vezes um pedaço da alegoria e algumas pessoas falam ‘ah, não está bom não ‘. Mas vamos combinar, o carnaval se faz no todo, é no conjunto, uma alegoria não fica pronta dentro do barracão. Uma alegoria precisa de iluminação, dos componentes, dos destaques. Então aquela foto da fresta não quer dizer muita coisa, vamos esperar que o carnaval é na Avenida. Eu mesmo, na época que só era um espectador, nem sonhava em ser carnavalesco, cansei de ver barracão que a gente não achava nada de mais, na Avenida me surpreender. Carnaval é mágico, é algo fantástico que nem a ciência explica o que acontece dentro de uma escola de samba”, entende João.
Inovação que segue gerando polêmica entre o mundo do samba, a luz cênica da Sapucaí, já teve um momento de muito brilho na Beija-Flor na apresentação da comissão de frente de 2023 desenvolvida por Jorge Teixeira e Saulo Finelon, coreógrafos que seguem para 2024. Agora o controle da iluminação da pista vai estar com as escolas e ao ser perguntando sobre o uso do artifício para as alegorias, João Vitor não foge da raia e promete grandes novidades através de um uso responsável.
“As alegorias vão dialogar com a luz cênica, com certeza, sem medo de responder, a gente precisa abraçar a ideia, de acordo com contexto, e estamos fazendo isso de forma muito bem pensada. Mas este desfile também terá o enfoque para uma parte mais artesanal e cultural da região que está presente nos carnavais de Maceió. Eu adoro artesanato, tive esse contato quando fui a Maceió fazer a pesquisa, trouxe muita coisa de lá para poder trabalhar alegoria e vocês poderão ver que eu reproduzi isso em alegorias”, esclarece o artista.
Sempre falando com carinho deste trabalho e mostrando muito entusiasmo com este desfile, com os olhos brilhando, olhando para o imponente barracão da Beija-Flor, que já não cabe mais muita coisa diante da grandeza dos carros que a escola levará para a Sapucaí, João Vitor confessa que esse ano não conseguiu ter uma alegoria como xodó, aquela preferida, a cada dia se enamora por uma.
“Pela primeira vez eu não tenho, porque cada dia eu me apaixono por uma diferente. Em outros carnavais que eu produzi, eu sempre tinha uma, mas esse ano realmente não tenho, um dia eu gosto mais de uma, outro dia gosto mais de outra, quando acende, quando coloca um efeito desejado, eu corro para lá, corro para a que está em destaque”.
Ensinamentos de Rosa colaboram para uma nova versão do carnavalesco
A segunda passagem de João Vitor Araújo pelo Paraíso do Tuiuti em 2023 lhe rendeu a oportunidade de trabalhar com uma das grandes artistas do carnaval carioca e uma figura que o carnavalesco admira: Rosa Magalhães. Após ser rebaixado de forma muito injusta com o Cubango na Série Ouro de 2022, o profissional teve a oportunidade de conviver com a professora, assinou seu terceiro desfile no Grupo Especial. João também viu o Tuiuti, com um carnaval desenvolvido pela parceria com Rosa, surpreender a todos com uma parte plástica exuberante, com segurança nos quesitos, após em diversos momentos do pré-carnaval passado ser colocado como candidato a rebaixamento. A Azul e Amarela de São Cristóvão não chegou nem perto de brigar lá em baixo. João conta que muita coisa do artista que fará este ano o carnaval da Beija-Flor veio também a partir desta parceria e do aprendizado adquirido no convívio com a experiente carnavalesca.
“É uma referência para todos os carnavalescos. Há quem diga que essa história do Gonguila, esse delírio de carnaval para Maceió está parecendo algo que eu puxei da Rosa. Acho que boas referências, a gente sempre tem que ter. É muito bom quando você está lá na frente fazendo o seu carnaval sozinho e você tem uma referência como a Rosa, uma referência de alguém que trabalhou com o Joãozinho Trinta, ela mesmo fala de muitas coisas que tirou do João, isso é maravilhoso. Acho que esse novo João Vitor, após essa dobradinha com a Rosa, tem um pouquinho dela também neste novo trabalho”, confessa o profissional.
E a partir desta perspectiva, João Vitor espera que o trabalho realizado no barracão da Beija-Flor possa impulsionar o componente quando ele se deparar na pista com o todo da parte plástica da Deusa da Passarela desenvolvido pelo carnavalesco e que neste momento a escola possa estar ainda mais motivada para um grande desfile e para conquistar as notas 10 nos quesitos de chão.
“A comunidade está muito animada. Eu digo uma coisa para vocês, nós começamos a distribuição das fantasias, agora no final de janeiro e as pessoas estão felizes, impressionadas. Como o nilopolitano está feliz com a fantasia. E assim eu espero com as alegorias, com o desfile. Estive nos últimos ensaios, tem sido incrível, eles estão mesmo felizes com as fantasias que estão recebendo e acho que essas alegorias montadas, acesas, com pessoas vai ser a injeção de ânimo que está faltando para que a escola exploda no melhor sentido na Avenida”, finaliza o artista.
Com o enredo “Um delírio de Carnaval na Maceió de Rás Gonguila”, a Beija-Flor, segunda escola a desfilar na primeira noite de apresentações do Grupo Especial, vai levar para a Sapucaí 32 alas e seis alegorias.