Por Leonardo Antan
“E uma festa se levanta desse enredo que encanta”
Em 1984, o genial Martinho da Vila revelou a história de sonhos de reis, piratas e jardineiras que se acabavam na quarta-feira, inspirado nos versos originais de Vinícius de Moraes. Um poema sobre o efêmero da folia carnavalesca. Não muito tempo depois, em 1991, o Arranco do Engenho de Dentro voltou a abrir a coxia da avenida, com um samba menos conhecido do grande público, mas igualmente belo em descrever as ilusões e bastidores da nossa maior festa.
Nas duas obras tudo começava em um único cerne: o enredo. Para Martinho, era ele “a grande paixão do poeta”, o intenso amor que inspira e faz nascer os versos de um artista. Já para os compositores Capelo, Edimar e Marcus do Cavaco, a metalinguagem de um enredo se definia numa frase genial: “uma festa se levanta desse enredo que encanta…”
As gigantescas alegorias, as fantasias volumosas, o bailado do casal de mestre-sala e porta-bandeira, a batucada da bateria, o sorriso da Velha Guarda… Tudo se materializa para a avenida e levanta voo vindo daquelas palavras iniciais; onde tudo é pura abstração, sequência de narrativas que se transformam em alas, alegorias e massas de foliões.
Mais do que uma história a ser contada, é o traço de um artista. Aliás, de vários. Tudo pode sair, geralmente, da cabeça de um carnavalesco ou enredista, mas ganha contornos de obras contemporâneas, abertas e coletivas. Todos ganham sua voz, democraticamente ou não. Os compositores sintetizam tudo em melódicos versos, as costureiras e aderecistas dão materialidade ao sonho, os passos da Comissão e dos defensores do pavilhão também, assim como todos os milhares de componentes sambando em uníssono. Todos saem de casa para contar a história que todos escreveram, cada um com a contribuição a seu modo. E assim falam sobre as agremiações, constroem discursos e identidades, formam e sintetizam um país inteiro.
“O Salgueiro é uma escola negra”. “A Caprichosos e São Clemente, críticas”. “A União da Ilha, alegre”. “A Portela só fala do Rio”… A personalidade de uma escola está diretamente ligada ao que ela leva para avenida, dos delírios dos carnavalescos e dos versos de um compositor. As alcunhas de vanguardista para a Mocidade e histórica para a Imperatriz, não surgiram do nada, senão das narrativas de sambistas no espaço sideral e de jegues escondidos na história. É bem verdade, que por trás sempre há os carnavalescos, impossível não citar Fernando Pinto, Arlindo Rodrigues, Rosa Magalhães, ou tantos outros.
Os artistas do visual se tornaram protagonistas desde a chegada de Pamplona e Arlindo no Salgueiro na década de 1960, mas sem compositores, sem artesões, sem sambistas de todas as áreas, uma escola não ganha corpo. Tudo precisa se alinhar para um enredo dar certo. Samba e visual, desfilantes e público. Até os dirigentes e seus desmandos, os patronos e diretores, da harmonia e da bateria, das polêmicas nas redes sociais, das fotos compartilhadas de barracões, das sinopses, sambas, entrevistas, reportagens da TV. Com tudo isso se faz um enredo, seja “bom” ou “ruim”, “genial” ou “previsível”, “lindo” ou “didático”, e tantos outros maniqueísmos.
“Espera sair a sinopse”. “Enredo se faz é na avenida mesmo”. “Mas o samba pode mudar tudo”.
São tantos atravessamentos, narrativas, agentes e autores. São diversas reinterpretações, ressignificações, transformações.
Não adianta uma bela história em que não se acredite, que não se materialize em belas imagens… e também, de que servem imagens sem um forte conteúdo? Belas apenas por serem belas? Do que vale se uma comunidade não acredita no que diz, não se identifica.
“Um enredo bom impulsiona tudo”, dizem. E podem fazer de uma rebaixada a vice campeã do carnaval de um ano para o outro. Citando exemplos para o ano que vem, como definir a força de enredos aguardados, como Xangô no Salgueiro e Clara Nunes na Portela. Histórias esperadas, que inspiram compositores e farão componentes cantarem de pulmões inflados.
Em tempos pós-modernos, o discurso é mais importante que a obra. A proporção que um assunto pode tomar, a repercussão de cenas e imagens de um desfile ganham o Brasil e o mundo e fazem das nossas escolas de samba mais vivas, mais plurais, mais relevantes. Agremiações que desfilam no seu texto, não suspensas num oásis imaginário. Falar da saudade de tempos atrás, do futuro que nos espera, de personagens de outrora no presente importantes, viajar pra Maricá ou tomar um iogurte. Tudo reflete o Brasil que somos. O Brasil que queremos ser, ou que repudiamos, ou o que acreditamos sem saber. Seja a falsa mestiçagem cordial que ainda insistimos em reforçar, ou a história de heróis brancos e nobres. As instituições negras que marcam sua gramática do tambor ancestral e se vestem de nobres. Contradições formadoras que fazem quem somos. Boas ou ruins, falam de como e o que nos tornamos.
Todo enredo tem ideologia, é discurso. A suposta imparcialidade de algum tema é também uma narrativa e opinião sobre aquele assunto. Falar ou não falar de algo é dar importância. Enredos críticos ou CEP, históricos ou abstratos, nossas escolas são instituições artísticas e culturais pulsantes, que fazem desse país o caldeirão que ele é. Colocam nossa sociedade no divã da arte, nos repensam em nossa manifestação mais plural, que mistura diferentes saberes, formas, povos e discursos. E fazem do carnaval o maior evento da arte e cultura mundial. E tudo começa lá na grande paixão do poeta. Na massa gritando e no traço solitário do artista, que se completam.
Então ao abrir a cortina do palco de ilusão, todo o povo canta e a festa se levanta.