A segunda edição do Festival Guardiões da Favela foi realizada na tarde/noite de sábado e terminou na manhã de domingo, na Cidade do Samba. Um total de 15 baterias se apresentaram, revezando no palco colocado de forma centralizada onde fica a tenda. A ornamentação já indicava que o Festival desse ano pensou bastante nos detalhes. Em momento algum faltou água para ritmistas que tocavam, preocupação válida por causa da onda de calor. O calor, inclusive, acabou atrasando o início, mas nada que prejudicasse a animação do público. A Viradouro não se apresentou no encontro, porque houve atraso no evento e a escola já tinha compromisso na quadra da Mangueira.
Porto da Pedra: A bateria da Unidos do Porto da Pedra contou com sua tradicional pegada característica. E mesmo com o andamento um pouco mais acelerado por questão de identidade, a “Ritmo Feroz” fez sobressair o peso de suas marcações. O balanço cativante dos surdos de terceira foi um dos pontos altos do ritmo gonçalense, bem como o toque firme dos marcadores de primeira e segunda. Vale menção para a execução privilegiada do samba campeão do grupo de Acesso da Liga-RJ do Carnaval 2023, com suas bossas potentes sendo apresentadas com precisão e firmeza.
Império Serrano: Com um ritmo de energia ancestral é possível dizer tranquilamente que a “Sinfônica do Samba” é uma verdadeira entidade musical do carnaval carioca. Sua levada identitária de caixa com rufada se apresentou de forma uníssona, garantindo com o bom balanço das terceiras, uma apresentação bastante vibrante. O nível de detalhamento musical de uma bateria como a do Império Serrano é simplesmente impressionante. Além das convenções repletas de densidade sonora, vale ressaltar a própria forma como os ritmistas se entregam musicalmente, produzindo uma sonoridade profundamente diferenciada e de amplo destaque.
Unidos da Tijuca: Mesmo com número de contingente reduzido em relação às demais baterias, a “Pura Cadência” se exibiu de forma consistente. Uma apresentação que brindou o público com uma afinação de surdos diferenciada, que ajudou a evidenciar o trabalho pulsante dos surdos de terceira. As caixas de guerra tijucanas também contribuíram preenchendo a sonoridade com aquela batida clássica do ritmo do Borel. Os naipes agudos ajudaram a consolidar a musicalidade da bateria da Tijuca. Cuícas ressonantes, além de tamborins e chocalhos que tocavam de forma sincronizada, deram leveza à parte da frente do ritmo.
União de Maricá: A bateria “Maricadência” fez uma apresentação intensa. Com marcadores bem firmes e surdos de terceira cheios de balanço, se mostrou uma bateria que aproveitou o momento de fazer ritmo para interagir com o público, através de uma exibição musicalmente energética. Seu esquenta misturou um ritmo pesado e acelerado, com uma bateria que não só pulsou firme, como se exibiu de forma animada, jogando o clima do evento lá no alto! Durante a apresentação do samba do Carnaval 2024, mestre Paulinho Steves não conseguiu conter a emoção e acabou indo às lágrimas, enquanto agradecia aos ritmistas pela exibição que dignificou o ritmo da União de Maricá, num evento dessa magnitude e importância.
Império de Casa Verde: Antes mesmo de iniciar seu esquenta, foi possível ouvir raios e trovões que precederam um dilúvio que acompanhou toda a exibição da bateria do Império de Casa Verde. No esquenta, a “Barcelona do Samba” adotou um andamento um pouco mais para frente que o de costume, mas que contribuiu dando pressão ao ritmo imperiano. Com um naipe de caixas absurdamente ressonante, a bateria do Império executou seus sambas de forma precisa, contando ainda com uma levada de surdo de terceira de grande destaque, que contribuiu tanto com balanço, quanto com pressão. É possível afirmar que a explosiva apresentação do samba do Carnaval 2023 foi um dos pontos altos da festa. Principalmente devido à paradinha do refrão principal, quando os surdos terminam a bossa subindo em progressão dinâmica, demonstrando bom gosto.
Estação Primeira de Mangueira: Toda a energia tipicamente mangueirense foi traduzida em forma de ritmo genuinamente verde e rosa. Uma bateria vibrante, com marcadores poderosos e caixas ressonantes. O surdo de primeira pulsou firme, intercalado pelo balanço dos surdos mor. A bateria “Tem que Respeitar meu Tamborim” fez jus ao nome, apresentando uma ala de tamborim coesa, firme e profundamente impactante. Vale mencionar também cinco ritmistas do naipe de xequerês, que ajudaram não só no ritmo, mas como na leveza e energia da cabeça da bateria. Tocaram, dançaram e se divertiram! A espontaneidade da bateria da Mangueira foi aquele peculiar show. Uma exibição poderosa, com sonoridade sobretudo sofisticada.
Acadêmicos do Salgueiro: Com sua típica vibração salgueirense a bateria Furiosa fez uma apresentação espontânea e intensa. Começando com um esquenta que jogou o clima lá no alto, a nítida energia dos ritmistas contribuiu na exibição luxuosa. Apresentando sua afinação de timbre grave característico, o molho de caixas, taróis e repiques foi realçado pelos surdos de terceiras com sua pegada peculiar. A pressão de suas marcações deixou os presentes impressionados com o ritmo da Furiosa, proporcionando uma interação popular de grande destaque. Vale ressaltar que o já aclamado samba para o Carnaval 2024 provou seu valor, possibilitando uma apresentação pra cima e vigorosa.
Acadêmicos do Grande Rio: A escola organizadora do Festival optou por iniciar sua apresentação no palco principal da Cidade do Samba, até por apresentar de longe o maior contingente da noite. A escolha trouxe conforto no esquenta dos ritmistas, que puderam se divertir enquanto faziam ritmo. A cadenciada bateria da Grande Rio se exibiu de forma segura, num ritmo cujo destaque foi a equalização entre os naipes, onde era possível ouvir qualquer instrumento independente do ponto onde se estava na bateria. O toque ressonante das caixas foi destaque de um ritmo absolutamente fluído, que ainda contou com repiques coesos e retos no preenchimento da sonoridade dos médios. Todos os instrumentos eram percebidos, graças ao toque educado e ponderado dos ritmistas, que tiravam som das peças com a firmeza certa.
Beija Flor de Nilópolis: Antes mesmo de subir para o palco, a bateria “Soberana” iniciou seu esquenta cantarolando seu samba do ano, enquanto executava seu privilegiado leque de bossas para o próximo carnaval. Vale destacar a animação dos ritmistas, que fizeram um esquenta que mesclou ritmo com alto astral. A bateria da azul e branca de Nilópolis exibiu sua afinação característica de surdo, com destaque para o timbre agudo do surdo de segunda. O complemento dos médios esteve em evidência, graças ao bom trabalho de caixas e repiques. A ênfase no samba do Carnaval 2024 foi tanta que, logo após o hino de exaltação, rolou sua surpreendente execução. A Soberana acompanhou de forma simplesmente luxuosa a obra da Deusa da Passarela, com convenções extremamente conectadas ao samba-enredo. Nitidamente a sonoridade da bateria da Beija Flor impulsionou o samba da escola, recheando sua apresentação com bom gosto musical.
Portela: A bateria “Tabajara do Samba” se apresentou com sua peculiar classe. Com marcadores que pulsaram de forma firme, mas sem correria, o que auxiliou o bom preenchimento dos médios, com repiques ressoando juntos à batida tradicionalmente rufada das caixas de guerra. Os surdos de terceiras foram o ponto alto da sonoridade portelense, possibilitando um balanço simplesmente único para a bateria da Águia. A musicalidade genuinamente portelense encantou o público presente, com seu aspecto particularmente grave, que ainda contou com naipes agudos sólidos para preencher com consistência a bateria da Portela.
Paraíso do Tuiuti: A bateria “Super Som” do Paraíso do Tuiuti se exibiu com um ritmo requintado. Com uma afinação de surdos mais leve, os naipes médios sobressaíram de forma considerável, com destaque para repiques e caixas. Com um agudo de qualidade, o preenchimento sonoro da bateria do Tuiuti se mostrou simplesmente sublime, principalmente com sua ala de chocalhos altamente técnica, acompanhada de tamborins e cuícas tocando de forma segura e coesa. Uma atuação profundamente precisa da bateria do Tuiuti, com um ritmo refinado e consistente. A apresentação tecnicamente impecável se juntou a um clima de interação popular, à medida que a bateria do Tuiuti executava suas bossas com maestria.
Unidos de Vila Isabel: A bateria “Swingueira de Noel” se apresentou de forma sólida e precisa. Com sua afinação particularmente grave, os marcadores foram firmes. O destaque musical ficou por conta do ritmo coeso e equilibrado dos médios, desenvolvidos por caixas retas, repiques e taróis com batida de partido alto. A segurança e consistência dos naipes agudos também merecem menção musical positiva, pois auxiliaram no preenchimento do ritmo com eficácia e qualidade sonora. Animação não faltou aos ritmistas da bateria da Vila, que aproveitaram a participação no Festival para aliarem boa musicalidade e espontaneidade. A execução privilegiada das bossas impressionou, assim como a boa educação musical do ritmo da Vila.
Imperatriz Leopoldinense: Uma bateria “Swing da Leopoldina” muitíssimo bem afinada foi notada. Sua definição de timbres beirou o espetáculo, tudo isso fortalecido por um balanço irrepreensível dos surdos de terceira. No preenchimento dos naipes médios, repiques sólidos tocaram entrosados com caixas de guerra ressonantes. As peças agudas também impulsionaram o bom ritmo da verde e branca de Ramos, adicionando nítida qualidade à parte da frente da bateria. As bossas foram executadas com firmeza e precisão. A educação musical nítida facilitou com que a segurança pautasse o toque dos ritmistas, incluindo as retomadas.
Vai-Vai: A bateria “Pegada de Macaco” se apresentou com seu ritmo tradicionalmente acelerado, com bastante pressão provocada pela afinação de timbre bem grave das marcações. O balanço dos surdos de terceira foi o destaque da cozinha da bateria. Os naipes agudos auxiliaram no preenchimento sonoro demonstrando virtudes musicais, com menção positiva para o entrosamento entre tamborins e chocalhos. É possível dizer que o ritmo da bateria do Vai-Vai possui uma energia musical bastante peculiar, com os ritmistas colocando também muita emoção como parte característica do seu toque. O público, nitidamente fascinado, respondeu com interação caindo dentro da escola do povo de São Paulo e de seus sambas históricos. Uma apresentação visceral, que conectou a musicalidade da bateria do Vai-Vai, com a explosão típica dos sambas da escola do bairro do Bixiga.
Unidos de Padre Miguel: A Bateria “Guerreiros” da Unidos de Padre Miguel fez uma apresentação segura e equilibrada. Um fato que merece ser mencionado é que foi o ritmo com maior participação feminina, graças inclusive ao projeto de Bateria das Guerreiras, lançado por mestre Dinho e com ritmo completamente composto por mulheres, comandada pela mestra Vivian Pitty. Com uma afinação tradicionalmente mais pesada, a bateria da UPM exibiu um ritmo consistente, com ótima execução dos agudos, principalmente dos tamborins e chocalhos, que por vezes tocavam entrelaçados. As bossas altamente musicais foram destaque dentro da sonoridade da bateria da UPM.
Mocidade Independente de Padre Miguel: A bateria “Não Existe Mais Quente” iniciou seu esquenta com repique solista tocando, lembrando as apresentações “das antigas”. Logo após o repique chamar o ritmo foi possível constatar a inigualável subida cascavel do chocalho independente. A afinação invertida de surdos foi percebida. O complemento sonoro dos médios foi contundente. Repiques coesos e caixas de guerra rufadas com acentuação diferenciada preencheram a sonoridade com eficácia, bem como os agogôs de duas bocas contribuíram no balanço, junto de surdos de terceira profundamente envolventes. Tamborins e chocalhos se exibiram de forma sublime, acrescentando valor sonoro à musicalidade da bateria “NEMQ”. O jeito característico e único da bateria da Mocidade encerrou o evento da melhor forma possível, com uma sonoridade que reflete por completo seu DNA musical. Ao invés de terminar sua apresentação andando pela passarela até o palco principal iguais às demais escolas, a bateria da Mocidade preferiu descer pelas escadas que subiu para o palco e terminar sua apresentação no meio da tenda da Cidade do Samba, em meio ao calor do público. Um final apoteótico, de um festival feito de sambistas para sambistas.
Mais do que nunca o Festival Guardiões da Favela foi um sucesso. É necessário que ele faça parte do calendário anual de eventos da Cidade do Samba, permitindo inclusive uma exploração comercial visando turismo. Nossa cultura rítmica de baterias pode ser difundida tanto em caráter nacional, quanto internacional, atingindo cada vez mais um público que não costuma ter contato com os ritmos, dignificando o gênero samba-enredo.