Por Fábio Fabato
O carnaval é filho da disputa. Não apenas a que termina com o sonhado “dez, nota dez”, ou naqueles décimos perdidos, gritados por Jorge Perlingeiro no calor da quarta derradeira. Ele é fruto, desde os primórdios, das tensões que envolvem a ocupação de espaço público e a sanha domesticadora das elites. O enlace do Jogo do Bicho com o samba emerge do conflito na rua e pela rua. Marginalizados, ambos encontraram no abraço sincero ou interesseiro uma forma de sobrevivência à atmosfera de repressão que vinha de cima. Por vezes, partindo pro pau. Noutras, em afagos de mutualismo descarado. Assim, decolaram. Ora, as agremiações nasceram, fundamentalmente, em áreas periféricas e, ocupadas por “benfeitores”, se permitiram a relação de troca em meio ao voo em cego dos segredos de existir. Não à toa o porquê de perdurarem, a despeito de titubeios aqui e acolá de era em era. Nesse mesmo passo a passo no compasso, a contravenção amealhou moeda-prestígio, garantida em status e cifras.
No meio da década de 70, sob a liderança de Castor de Andrade, os bicheiros decidiram que valia muito mais a divisão de regiões de mando do que o bangue-bangue urbano por controle de pontos. Mudaram o próprio Rio de Janeiro e a sua dinâmica social. Não foi coincidência, portanto, que, a partir de 1976, três escolas impulsionadas pelo dinheiro da banca alcançassem vitórias seguidas. Primeiro, a Beija-Flor (1976, 1977, 1978), liderada por Aniz Abraão David, o Anísio. Depois, a Mocidade (1979), quando Castor já arriscava uns desajeitados passinhos de algo assemelhado a samba à frente dos ritmistas de Padre Miguel. Por fim, a Imperatriz Leopoldinense (1980 e 1981), sob a tutela de Luiz Pacheco Drumond. Além do trio, Aílton Guimarães Jorge, o Capitão Guimarães, ligado à Vila Isabel, também começou a se destacar na chefia da brincadeira séria.
Consolidado o mapa de influência sobre o estado, outra ofensiva. Em 1985, insatisfeitos com as decisões da Associação das Escolas, os bicheiros fundaram a Liesa (Liga Independente das Escolas de Samba). Em ata e nas falas à imprensa da época, os homens não fizeram nem sombra de rodeio sobre as intenções: profissionalizar os desfiles e garantir o interesse das agremiações. Trocando em miúdos, queriam tête-à-tête com os palácios, negociar contratos, sair melhor na fita e na tela da tevê, no meio desse povo. Por algum tempo, verdade seja dita, até valeu o que estava escrito. Do fim dos 80 até 1993, ano em que a cúpula da contravenção foi presa numa só canetada pela juíza Denise Frossard, as escolas de samba, na esteira da televisão aberta absolutamente hegemônica, experimentaram popularidade e divulgação históricas. O Long Play de 1989, por exemplo, chegou a atingir R$ 1,2 milhão de cópias vendidas, patamar para pódio e coroa de louros, ao lado do disco natalino do Rei Roberto.
Com a morte (natural) de Castor, em 1997 – estava jogando biriba com amigos e sofreu um ataque cardíaco –, a guerra pelo controle dos pontos do Bicho e máquinas de caça níquel voltou às manchetes. Em paralelo, o modelo de financiamento dos desfiles seguiu sem grandes mudanças (apenas aumentou o aporte do poder público a partir da gestão do falecido ex-prefeito Luiz Paulo Conde, mas os patronos até deixaram de garantir o investimento outrora certo). A Sapucaí, então, passou a incentivar um festival de enredos patrocinados de cunho duvidoso, o que expôs as vísceras da falta de sustentabilidade do negócio: as escolas não conseguiam injeção perene, apenas recursos para carnavais específicos, e sempre com o sacrifício dos temas. Ou seja, prefeitos/governadores esbanjadores em busca de promoção para cidades/estados e o carnamarketing sugaram tudo o que puderam de uma manifestação longeva também em razão dos laços de pertencimento e signos identitários robustos.
Veio, então, a crise econômica e todos os apoiadores de ocasião sumiram. Veio, ainda, a eleição de Marcelo Crivella, que não se esforçou para compreender a base ancestral de um grêmio de samba: trata-se de um bem público – e que merece atenção pública (!) – porque versa, ritualisticamente, sobre a nossa formação miscigenada. E tome de corte de verbas! O fato é que jamais foi decodificado o impacto do investimento governamental na festa. Talvez, sequer saibam a joia rara que manipulamos sem lapidar: são R$ 4 bi (dados da Riotur) movimentados, anualmente, na cidade. Nosso delírio de virarmos uma Suécia tropical é tangível nos famosos quatro dias de Momo – há renda extra, amor livre, os índices de violência diminuem. Um festejo-divã que dialoga com nosso DNA e no qual processamos questões para seguirmos ano adentro. Mas se falta sensibilidade à Prefeitura, as escolas passaram longe do dever de casa quando os patrocínios cantaram para subir: encapsuladas em feudos e romântica visão da ilicitude, não se reinventaram. Sim, todo coletivo que louva homens com problemas judiciais repele apoio empresarial e se banha de estigmas. Eis as múltiplas camadas no processo de hecatombe de um velho modelo…
A partir das quedas de braço por hegemonia, e em meio ao formato ultrapassado, a segunda década deste século não deixou de apresentar novos personagens à Avenida. O policial militar Marcos Falcon, inocentado pela CPI das Milícias, mas que mantinha sabida autoridade territorial na Zona Norte, teve passagem meteórica nesse roteiro. Alçado à condição de mito da Portela como vice-presidente, resgatou a capacidade competitiva da Azul-e-Branco, maior vencedora da folia carioca. Foi eleito oficialmente presidente da agremiação com amplo apoio, inclusive, dos bicheiros, em 2016. Logo depois, lançou-se candidatou a vereador. Em 26 de setembro do mesmo ano, durante reunião no comitê de campanha, um saraivada de tiros de fuzil interrompeu suas ousadas pretensões foliãs e políticas. O assassinato nunca foi esclarecido.
Com os decanos do patronato ostentando avançadas idades e cabelos ralos nos RGs, seus filhos e netos também ganharam espaço e passaram a agentes de peso nas tensões naturais que envolvem o palco de asfalto. Gabriel David, filho de Anísio, é conselheiro da Beija-Flor. A presidência da Viradouro está a cargo de Marcelo Calil Filho, neto de Antônio Petrus Kalil, o Turcão, falecido no começo do ano. Luizinho Guimarães, sucessor do Capitão Guimarães, ocupa a cadeira de vice-presidente da Vila Isabel. Além de muito jovens, outro ponto em comum: todos se posicionaram contra a virada de mesa que manteve a Imperatriz Leopoldinense no Grupo Especial. Nem o peso de Luizinho Drumond do outro lado, ex-presidente da Liesa a quem alguns deles chamam de “tio”, foi suficiente para sensibilizá-los. Os votos, claramente, expuseram o duelo acerca da liderança do carnaval, considerada arcaica pela nova geração.
Do lado oposto do front, oito dirigentes, alguns até pouco tempo atrás relegados ao “Baixo Clero” momesco, conseguiram quebrar pela terceira vez seguida a regra do rebaixamento, desunir a banca e implodir o que já estava desmoralizado junto à opinião pública – afinal – a liga é consagrada como uma caixa preta de decisões controversas a portas lacradas. Como concordar que as guerras na sede da entidade representante das ditas “coirmãs”, protagonistas de espetáculo ocorrido em equipamento público, ignorem solenemente princípios republicanos? O fato é que, para além da batalha em si, a decisão de preservação à Verde-e-Branco de Ramos sinaliza mais um ingrediente: a crise também no Grupo de Acesso, espelho direto da violência cotidiana por territórios que assola o Rio. Ante a mudança de comando no antigo “segundo grupo” e a fundação até mesmo de uma liga paralela, além da presença de agremiações fincadas em comunidades cujas ações do tráfico e da milícia já resvalam no batuque, a Imperatriz preferiu se agarrar numa carta de apoio rubricada por oito escolas para continuar a bater bola num campo onde, pelo menos, conhece os seus pares e regras sem regras.
Se caísse, creem alguns sambistas, poderia até desidratar, dada a incerteza sobre a voz mais potente num cenário de conexões em reconfiguração. As assinaturas do tapetão contrariaram três representantes do Alto (ou Altíssimo!) Clero – Capitão Guimarães, Anísio e o, agora, ex-presidente da Liesa, Jorge Castanheira – titãs do métier, e que nem andavam tão alinhados, apesar de, atual e unanimemente, preocupados com um certo e constante “verniz” legitimador para o histórico obscuro do poder ali manifestado. Com a renúncia de Castanheira, a assembleia da segunda-feira (03/06) já representa o maior quiproquó no conclave, desde a fundação. Hoje, até mesmo outra liga e um grupo fechado no andar de cima são cogitados – ou seja – sem descenso e tampouco simpático às investidas de novas bandeiras. Seja por não querer se emaranhar com os métodos recém-desenhados no Acesso, seja apenas para evidenciar incompetência e a necessidade de urgente mudança na jurássica administração sem lisura e credibilidade, a plenária da Liesa foi a própria materialização da alma da festa, seu samba de uma nota só: tensão para domínio de força e geográfico.
Três dias após a fissura no clube, a Prefeitura aproveitou o desgoverno para veicular um criminoso anúncio na televisão em que ataca a liga e a TV Globo, mas com o evidente intuito de justificar um cerol definitivo na verba depositada para os embalos de fevereiro ou março. A propaganda opõe o carnaval ao orçamento de educação e proclama, de forma demagógica, que é preciso uma “escolha prioritária”. Curiosamente, o prefeito – evangélico – não apresentou o retorno financeiro que os quatro dias embalados por batuques de origem africana proporcionam à metrópole-balneário forjada em misturas. Bastaria uma consulta à Riotur, sequer citada na peça. De novo… Disputa (!) – sempre ela – por espaço e narrativa. E sem mocinhos.
Nada mais brasileiro, nada mais metafórico que aconteça – justamente – na ópera popular das confusões que vestem fevereiro. O nosso samba, minha gente, também é isso aí.
Fábio Fabato é jornalista, escritor e comentarista de carnaval