Nome do enredo: O que é que a baiana tem? Do Bonfim à Sapucaí
Nome da carnavalesca: Annik Salmon
Porto da Pedra 2020: matriarcado e ancestralidade na experiência afrodiaspórica brasileira
O G.R.E.S Unidos do Porto da Pedra viaja à Bahia e retorna ao Rio de Janeiro
para narrar as tramas e segredos de uma das figuras mais emblemáticas do imaginário
popular brasileiro: a baiana. Em uma primeira leitura, o título nos remete ao clássico da
MPB “O que é que a baiana tem?” de autoria de Dorival Caymmi que seria imortalizado
na voz de Carmen Miranda. Todavia, a sinopse do enredo de 2020 da escola de samba
gonçalense vai além e apresenta uma imersão no percurso histórico da construção social
da personagem na experiência afrodiaspórica brasileira: do cais do Porto de Salvador
onde aportaram escravizadas nos tumbeiros; aos ganhos nas ruas de Salvador com a
culinária ancestral presente em seus tabuleiros; a busca por oportunidades na nova
capital do país e fundação do samba na Pequena África; da religiosidade presente nos
festejos cariocas dedicados aos santos católicos; até ao templo do samba, onde dão um
banho de cheiro, abrem os caminhos e depois giram suas saias pela manutenção das
raízes negras dos desfiles das agremiações carnavalescas.
O texto de autoria do historiador Alex Varela possui o caráter descritivo como
principal e conduz o leitor para o entendimento do enredo em alguns aspectos
fundamentais: a ideia de diáspora não só como deslocamento forçado de povos, mas
também como a conformação de novas identidades em trânsito; ancestralidade como
saber advindo da memória oral e espiritual que conduz para a salvaguarda das tradições
e perpetuação da cultura; e o matriarcado africano que mostra o papel da mulher negra
como eixo de sustentação familiar. Pelo escrito, há um foco nos aspectos religiosos, da
culinária, da dança e canto que permeiam os costumes das baianas. Contudo, de maneira
não tão evidente, salienta-se a luta e resistência como outra possibilidade a ser
considerada no desenvolvimento da narrativa de carnaval, afinal um dos papéis das
baianas era “defender a agremiação das violências que sofriam” nos primórdios dos
desfiles das escolas de samba.
A sinopse evidencia, através de sua divisão em setores, como possivelmente
serão apresentadas as questões visuais. Por outro lado, a preocupação com a descrição
de cada prato presente nos tabuleiros assim como cada item presente no ritual de
lavagem da Marquês de Sapucaí sugere que não somente se atentarão para as
visualidades, mas para toda uma experiência sensorial com foco no olfato. “Muita água
de cheiro, arruda, aroeira, flores e defumador para espantar o mau agouro e fazer com
que tudo corra bem”.
Na apresentação das mais diversas facetas que compõem o imaginário social
acerca das baianas, a relação entre sagrado e profano sobressalta como discurso. Na rua, na missa, no terreiro, na procissão e na avenida. Coexistir. Diálogos possíveis.
Atravessamentos. É interessante perceber que, mesmo vindo do município berço da
umbanda fluminense, a Porto da Pedra não possui uma tradição de realização de desfiles
com temática afro brasileira. Mas, pelo segundo ano seguido, segue nos caminhos da
negritude entre a Bahia e o Rio de Janeiro. Se, em 2019, o sabor era Pitanga para o ano
seguinte muita pimenta e dendê estarão no cardápio do cortejo do tigre. Diante dos
recentes ataques que os cultos de origem afro-brasileira tem recebido na região
metropolitana do Rio de Janeiro, esse desfile pode servir como um estandarte em defesa
dos seus ritos, práticas e costumes. Além disso, ao trazer luz para a oralidade, é um
registro imagético que contribui com a discussão de representatividade e protagonismo
da população negra brasileira.
O enredo apresenta-se em um cenário onde as escolas estão valorizando cada
vez mais o desenvolvimento de discursos. Narrativas que possam ganhar o debate do
espaço público. E, por esse aspecto, possui potência para transpor-se do ambiente das
escolas de samba, sobretudo nos aspectos relacionados ao racismo religioso que
permeiam o fazer-se das personagens. Por outro lado, é uma importante homenagem
para baluartes em sua maioria anônimas para o universo do carnaval e que serão
protagonistas nesse desfile. Mais do que uma obrigatoriedade, a ala de baianas estará
em metalinguagem; enunciando sobre si. Um desafio para o desenvolvimento do
enredo: aprofundar-se nas capilaridades, onde elas fazem parte do todo, mas não percam
a dimensão de que são as estrelas da homenagem da agremiação gonçalense para todas
as baianas brasileiras.
Deseja-se que o tigre de São Gonçalo pise forte na avenida. E que o primeiro
trabalho solo da carnavalesca Annik Salmon seja guiado pela força das yabás. Preparem
seus balangandãs que a Porto da Pedra vai pedir axé e lavar a Sapucaí! Bom carnaval!
Autor: Victor Hugo Raposo – [email protected]
Licenciando em Ciências Sociais – UFF
Membro efetivo do OBCAR/UFRJ
Leitor orientador: Mauro Cordeiro
Doutorando em Sociologia e Antropologia – IFCS/UFRJ
Instagram: observatoriodecarnaval_ufrj