Já terá passado das 11 horas da noite do Dia do Descobrimento do Brasil quando a sirene do Sambódromo do Anhembi tocar para dar início ao primeiro desfile de uma escola de samba do Grupo Especial de São Paulo em mais de dois anos. Empunhando o microfone principal do carro de som da Acadêmicos do Tucuruvi, o intérprete Leonardo Bessa será o principal responsável por contar para o público mais uma história a adentrar o palco iluminado do Grande Otelo.
Leonardo, o que representa para você cantar em São Paulo?
“Em primeiro lugar, a realização de um sonho. Eu sempre tive vontade, desde quando comecei a cantar profissionalmente, de conhecer o carnaval de São Paulo. Eu via que vários amigos que cantavam no Rio também vinham para cá, e eu tinha esse desejo, essa vontade de crescer e participar. Foi um processo de anos, de convites que não deram certo, algumas propostas que não evoluíram. Até chegar a Tucuruvi, que em 2015 eu vim como diretor musical, e anos depois vim ser o cantor da escola, onde estou muito feliz e realizado. É uma escola que me abraçou muito, e eu abracei a escola com o mesmo carinho e respeito que eles têm por mim”.
“O carnaval da vida”. A voz da cultura popular em tempos sombrios
Leonardo Rodrigues Bessa, que apesar do seu grito de guerra dar a entender que não para alguns, de fato tem esse sobrenome, é cantor, compositor e produtor musical. Além de tantos outros talentos, durante a pandemia da Covid-19 precisou também dedicar parte do tempo para fazer do carnaval também uma causa a ser defendida. Foi uma das vozes mais ativas no debate público a defender não só o carnaval como cultura, mas também os direitos e necessidades dos trabalhadores que dependem direta ou indiretamente da festa.
“A princípio a gente estava com muito medo. Não sabíamos de fato o que estava acontecendo no mundo. E a gente sabia que o carnaval não tinha uma importância na vida de muita gente. Nós ficamos dois anos sem poder trabalhar, sem poder fazer shows. E ninguém como o povo do carnaval sofreu tanto para poder trabalhar, fazer shows. E a gente defendia o carnaval através de lives. Quando começaram a voltar os shows, por que o carnaval não podia voltar? Mesmo que fosse em um modelo mais enxuto, para que as pessoas pudessem voltar e levar o seu sustento para casa. Então a minha briga sempre foi essa. E eu via até pessoas do carnaval remando contra, e isso é que me chateava um pouco. Mas dessa vez agora nós estamos voltando a nossa normalidade. Se Deus quiser será um grande carnaval, o carnaval da vida! E em 2023 a gente retoma tudo como era antes no Castelo de Abrantes”.
Muitas lágrimas. Do xeque ao mate em um retorno triunfal
Bessa é intérprete oficial há quase 20 anos. Iniciou sua carreira na São Clemente e já teve passagens por grandes escolas, como Estácio de Sá, Salgueiro e Império Serrano. Mas se para um cantor do carnaval todo desfile é como se fosse o primeiro, voltar a um Sambódromo depois de dois anos sem poder fazer o que mais ama tem um peso ainda maior.
“Cara, no primeiro ensaio eu chorei muito no início ali. Eu comecei a conversar com o pessoal do carro de som, eu chorava. Porque chegou num momento que a gente não acreditava que pudesse ser possível a volta do carnaval. Chegou até a se colocar em xeque a importância do carnaval. Então quando a gente pôde pisar aqui, quando a gente teve a certeza de que o carnaval de fato iria acontecer, e a gente pôde estar em contato com o público, as pessoas, a comunidade da escola. Com todos os apaixonados pelo carnaval. Então para mim foi um momento de muita emoção, e a expectativa agora é o desfile. A gente chegar aqui, ver essa passarela lotada de gente, e poder levar alegria para o povo, que é o que a gente sabe fazer”.
O que representa para a sociedade o enredo da Tucuruvi?
A Tucuruvi levará para a avenida o enredo “Carnavais… De lá pra cá, o que mudou? Daqui pra lá, o que será?”, que fará uma viagem no tempo para relembrar os carnavais do passado de São Paulo, para refletir sobre o que o futuro reserva para a festa. O público será estimulado a debater sobre o tema, e o intérprete está preparado para transmitir a mensagem.
“É um grito de alerta. A gente conta como foi a origem do carnaval de São Paulo. Como era, como as pessoas tinham liberdade de brincar, de cantar, assim como foi na Tiradentes, nos Cordões, nos Blocos de rua, aquelas coisas todas. E a gente faz um paralelo com os dias de hoje. O que mudou? O que a gente esqueceu lá atrás de essência, e hoje a gente não consegue repetir? Ter a mesma magia que tinha lá trás? E a pergunta fica: E daqui para a frente? Que carnaval a gente quer? O que era antes ou o que é hoje?”.
O que muda em cantar no Rio para São Paulo?
Leonardo Bessa já cantou por escolas de samba de cinco estados do Brasil, e se depender dele não irá parar por aí. Várias cidades já tiveram a oportunidade de presenciar desfiles defendidos pelo sambista. Em sua opinião, não há diferenças entre cantar em São Paulo ou no Rio de Janeiro. Para ele, o que importa é ser porta-voz da cultura popular.
“Não, não. Diferença nenhuma. A diferença é só a Dutra! Porque a emoção e a alegria é a mesma. E eu sou um defensor de todos os carnavais do Brasil. Nenhum carnaval é melhor do que o outro. Cada cidade tem sua particularidade, sua raiz, sua história, e tem que ser respeitada. Manaus, Belém, Uruguaiana, Porto Alegre, Vitória, Florianópolis, Minas Gerais. Todos os lugares desse Brasil. E de São Paulo, com desfile de escolas de samba em Santos, Guaratinguetá… Tem a sua magia e tem que ser respeitada. O importante é que a gente leva a nossa cultura para o povo. O carnaval é isso: É inclusão, é alegria, é oportunidade, é a gente poder levar a história para as pessoas, conhecimento. Isso é muito importante”.
De lá para cá, o que é igual? E daqui para lá, o que é diferente?
“O povo aqui é muito apaixonado pelas escolas de samba, assim como o Rio de Janeiro também é, e nas outras cidades também acontece. O povo do carnaval é muito apaixonado. Acho que São Paulo tem uma união muito grande, um respeito muito grande, especialmente pelo pavilhão. Tem todo um processo quase religioso de saudação ao pavilhão, e isso sempre me impressionou muito. Todo esse respeito que tem pelo pavilhão me tocou muito”.
Falando de samba, qual foi o mais marcante da sua carreira?
“Ah, com certeza foi o Malandro Batuqueiro do Salgueiro (‘A Ópera dos Malandros’, de 2016). É um samba que marcou minha passagem pelo Salgueiro e sou lembrado até hoje por esse desfile e por esse samba”.
Se pudesse ter cantado na avenida algum samba de São Paulo, quais em especial?
“Da Rosas de Ouro, o ‘Mar de Rosas’ (de 2005), que acho um samba lindíssimo. Mancha Verde 2012 (‘Pelas Mãos do Mensageiro do Axé a Lição de Odú Obará: A Humildade’), que toda vez eu falo com o Freddy que é um samba fantástico. E tem o do Vai-Vai, do Maestro de 2011 (‘A Música Venceu’), lindíssimo aquele samba. São Paulo tem muito samba bom”.