Para quem conhece o básico do carnaval, em especial o de São Paulo, sabe que Ernesto Teixeira é um dos maiores intérpretes da história. Como ele apenas um, outro membro do panteão dos bambas, Neguinho da Beija-Flor, é tão longínquo no posto de cantor principal de uma mesma escola de samba ainda em atividade. São 57 anos de idade, 44 deles dedicados a uma comunidade e voz da mesma desde antes dela se fazer escola.
“Acho que a Gaviões a gente pode resumir que ela praticamente é a minha vida. Pelo tempo de vida que eu tenho e o tempo que eu estou na agremiação, dá para entender facilmente”.
O artista assumiu o microfone principal dos Gaviões quando a agremiação ainda era bloco, em 1984, e desde então apenas o cancelamento da festa de Momo, no ano passado, o impediu de ser a voz da Fiel Torcida na passarela. Em 2022 ele estará de volta ao Sambódromo do Anhembi, e não há cor que reine em algum pavilhão que não se emocionará ao ouvi-lo cantar mais um de incontáveis sambas os quais já defendeu.
O site CARNAVALESCO conversou com o cantor e compositor, e em meio a prosa, perguntou sobre a relação dele com a escola alvinegra.
“Eu cheguei na Gaviões com 13 anos, hoje estou com 57. Passei por todos os departamentos. Sou da torcida organizada, de assistir jogo, de viajar, de cruzar o Brasil pelo Corinthians. Com 16, 17 anos, também me interessei por esse braço cultural da Gaviões que é o Carnaval, através do bloco, onde eu saí em ala, depois eu saí da bateria, fui para ala musical, virei intérprete, compositor. Já se vão 40 anos nesse segmento cultural dentro da Gaviões da Fiel. Então, resumindo, a Gaviões é a minha vida. Muitas vezes a gente começa a analisar, e a gente passa mais tempo na quadra com os Gaviões, do que com a própria família. A gente acaba se envolvendo de tal forma que você não percebe, e quando olha aquilo é a sua família, uma extensão da sua família”.
Muitos colocam Ernesto Teixeira no mesmo patamar de importância de Jamelão, histórico intérprete da Estação Primeira de Mangueira cuja trajetória também ficou marcada por defender os sambas da escola por décadas sem pestanejar. E uma coincidência marcará 2022 para o cantor paulistano: os mesmos 57 anos que ele completou equivalem a totalidade de carnavais os quais José Clementino defendeu as cores da verde e rosa. Questionado sobre a comparação com o ídolo mangueirense, Ernesto aproveitou para garantir que, se depender dele, terá carreira tão duradoura quanto.
“Primeiro eu fico lisonjeado, porque ser comparado com Jamelão é uma honra. A gente vai fazendo ano a ano. Como eu disse, eu fui guindado ali em 85 na ausência do intérprete que não pôde estar lá, que era o Tobias (do Vai-Vai). Me pegaram na bateria e me colocaram para cantar. E dali a gente ficou, foi se aperfeiçoando, fazendo curso de canto lírico, canto popular, estudando um pouquinho de música e praticando dia a dia. E a cada ano é uma nova emoção, cada ano é um novo desafio, porque muitas pessoas até tem essa curiosidade de saber, “poxa, vai parar, não vai parar”, aí eu vou falar: “O Jamelão pelo que vi ele foi até os 90, e eu estou só com 57”. Tem mais uns trinta e poucos pela frente. Se Deus nos der saúde, e se quem estiver a frente da direção da escola não tiver nenhum empecilho, a gente vai continuar prestando esse serviço, fazendo com muito amor, estando ali no carro de som da Gaviões da Fiel, com certeza”.
A jornada de Ernesto com os Gaviões é histórica, mas mesmo dentro do samba houve momentos em que a ligação da escola com o futebol foi vista com grande preconceito. Ao menos na capital paulista, esse trato com as chamadas pejorativamente de “oriundas” mudou, em especial com a ascensão de outras agremiações de mesmas origens, como Mancha Verde e Dragões da Real, coirmãs que também fazem parte do Grupo Especial. O intérprete acredita que o pior momento já passou, e exaltou a importância dessas agremiações na formação de sambistas.
“(O preconceito) melhorou, melhorou. A gente atingiu um ápice dessa negatividade em 2006, onde o próprio exemplo são os Gaviões da Fiel que foi lançado ao Grupo de Acesso, quando naquela oportunidade as pessoas ligadas a outras agremiações queriam criar o grupo das torcidas e o grupo das escolas de samba. Os Gaviões se sustentaram em uma liminar, mas dentre as notas dos jurados a gente, de 30 notas 10 conseguimos apenas 3, da letra do samba. Depois disso aí o pessoal entendeu a importância, haja vista que hoje são algumas escolas de samba com identidade de torcida no Carnaval. A torcida organizada, como a própria escola de samba, todo mundo ou a grande maioria tem suas origens no futebol. Eu fui forjado dentro da Gaviões da Fiel como sambista, como compositor, como intérprete, e assim acontece com os nossos ritmistas, com os nossos diretores de bateria, com os nossos casais de mestre-sala e porta-bandeira, com os nossos diretores de Harmonia. A gente é uma escola de samba na acepção do termo. Não tem que ter esse preconceito, que eu acho que diminuiu muito”.
Entre tantos desfiles que fizeram história do carnaval de São Paulo, os Gaviões da Fiel foram responsáveis por alguns dos mais marcantes. Um deles tem lugar especial no coração de Ernesto Teixeira: ‘Xeque-Mate’, de 2002, uma apresentação campeã praticamente perfeita que contou com um samba que não só foi assinado pela parceria do próprio cantor, como é lembrado até os dias de hoje e se tornou um dos esquentas tradicionais da escola.
“Com certeza todo carnaval se torna inesquecível. É uma história diferente, é uma música diferente. Alguns vão ganhando algumas particularidades. Por exemplo, eu gosto de falar muito do carnaval de 2002 da Gaviões porque a gente foi campeão. A gente tinha um enredo que fazia uma analogia da sociedade como um todo em cima do tabuleiro do jogo xadrez, onde a gente se manifestava contra a corrupção, por uma sociedade melhor e mais justa, um enredo na linha do que a gente vem agora em 2022. E eu era um dos autores do samba do lado do José Rifai e do Alemão do Cavaco, e a escola foi campeã. Então eu tenho esse desfile, que foi tecnicamente perfeito, tudo deu certo, as passagens da bateria, da ala musical, os carros se encaixavam perfeitamente junto com o samba, tanto é que é um dos sambas mais cantados da história dos Gaviões até hoje”.
Em se tratando dos sambas que cantou pela escola, são diferentes os motivos que levam alguns a serem inesquecíveis para Ernesto. O primeiro título, o primeiro samba composto a vencer o concurso, além do já citado. Cada um deles tem significado único em suas memórias.
“Coloco o Xeque-Mate, coloco o ‘Corinthians o meu mundo é você’ de 1998, que foi a primeira música que a gente compôs como escola de samba, também em parceria com o Alemão do Cavaco e com José Rifai que a gente foi vencedor. Foi um carnaval muito bom também, inesquecível pelo samba. Agora eu posso falar aqui também que é óbvio, o grande público vai lembrar de 95, o ‘Coisa Boa é Para Sempre’. Mas esse não dá para a gente nem analisar, esse samba e esse carnaval são ‘hors concours’. Quando a gente fala dele a gente se lembra de Raul Diniz, a gente se lembra do Grego como compositor, a gente ali na ala musical fazendo a interpretação, a nossa bateria Ritimão. Ou seja, foi um desfile assim que quem estava ali sentiu algo jamais visto e sentido da história da Gaviões. E até o público do samba fala isso. Depois que a gente terminou passar falaram ‘acabou o carnaval, não tem pra ninguém’. Muita gente regravou esse samba, como Neguinho da Beija-Flor, Jamelão, Tobias do Vai-Vai”.
O apreço aos clássicos de um ícone do samba paulistano
Quem acredita que o conhecimento do intérprete se restringe aos carnavais dos Gaviões, está cometendo um grande erro. Perguntado sobre quais sambas de outras escolas ele gostaria de ter defendido caso tivesse oportunidade na época, o ídolo musical da Fiel Torcida mostrou grande apreço pelos clássicos do carnaval de São Paulo, e a julgar pelo samba carioca citado por ele, só os Anos 80 renderiam um disco inteiro com sua voz.
“Eu gostaria de ter cantado ‘Kizomba’ da Vila Isabel (‘Kizomba, Festa da Raça’ de 1988). Eu gostaria de ter cantado ‘Catopés do Milho Verde’, da Colorado do Brás (de 1988). Gostaria de ter cantado ‘Jorge Amado’, do Vai-Vai (‘Amado Jorge, a História de uma Raça Brasileira’, de 1988). São muito sambas. ‘Boa noite, São Paulo’, do Camisa Verde e Branco (‘Convite Para Amar’, de 1988). Sempre tem um samba marcante, um samba diferenciado. Tem também aquele ‘Contam os antigos rituais, que Xangô foi rei um belo dia, de Obatalá seu pai’, samba de autoria de Dom Marcos da Cabeções de Vila Prudente (‘Do Iorubá ao Reino de Oyó’, de 1981), samba muito bonito. Samba da Imperador do Ipiranga, que é escola da minha região, tem um samba muito bonito que fala ‘Meu canto levanta, poeira, samba é a minha, bandeira, essa arte de bamba, me coroou, cabeça feita, sou Imperador’ (‘Ipiranga, Berço Esplêndido de um Povo Heroico’, de 2004), um samba bonito que eu gostaria de ter cantado. Você pega ‘Mariana’, no Peruche (‘Água Cristalina’, de 1985), que Eliana de Lima cantou muito bem. ‘Mariana’ do saudoso Ideval”.
Um amor que se renova a cada ano
Ernesto Teixeira é um sambista que conquistou incontáveis corações além do bando de loucos de sua escola. De uma simpatia ímpar e sempre muito receptivo, trata a todos do mundo do samba com o mesmo carinho ao qual se dedica a nação corinthiana. O segredo para ser tão bem reconhecido por todos é simples, daqueles que crianças são capazes de entender melhor que muita gente grande.
“O sucesso é o amor. É o amor, é a paixão, é pensar e lembrar que cada ano é um novo carnaval. Cada é um novo enredo, é uma nova história, uma nova fantasia, um novo carro alegórico, um novo samba-enredo. É uma emoção diferente. Então é isso que nos motiva. Quando a gente olha para trás que a gente vê que tem uma estrada longa que foi percorrida, mas você olha para frente e vê que tem muito o que fazer ainda. Que cada ano é um novo desafio. É isso que a gente tem como legado. O olhar de que tudo pode ser diferente no ano que vem”.
Um bom momento de uma história que precisa ser perpetuada
A história do carnaval de São Paulo é bastante rica, com histórias centenárias. Infelizmente, são raros os registros ao alcance do grande público desse importante legado que tantos homens e mulheres deixaram ao longo das décadas. Instigado a fazer um balanço do momento atual do carnaval de São Paulo e projetar o futuro da festa na cidade, Ernesto Teixeira encerrou nossa entrevista deixando uma mensagem aos sambistas paulistanos que pode ser espelhada aos de todo o Brasil.
“Hoje a gente vive um momento no sentido da infraestrutura, mas por outro lado a gente tem que discutir todos os dias a questão da identidade, a questão da raiz do samba. Porque se não a gente corre o risco de engessar o carnaval, de industrializar o carnaval ainda mais. Daqui a pouco o componente está com som mecânico. E a gente tem que valorizar a essência do samba. Nós temos que valorizar o samba no pé, temos que valorizar a poesia, a letra do samba-enredo, que não é dado muito valor até no próprio julgamento. Parece que ela é feita assim: ‘Todo mundo é 10’. Isso é uma coisa que não incentiva a gente a melhorar, e a gente precisa discutir isso, ter olhos para isso também. Eu vejo que o carnaval passa por um momento bom, mas que tem que estar sempre no grupo ali da Liga das escolas de samba, os mais antigos e os mais novos, tem que estar em constante discussão para que ele se perpetue. Para que ele permaneça, que evolua, sem perder as raízes. Um dos pontos que a gente defende é a criação de um memorial do carnaval de São Paulo, para justamente resgatar essa história das pessoas que iniciaram tudo isso. Dos grandes compositores, dos grandes cantores, dos grandes sambistas. Os grandes sambas de enredo, as grandes fantasias, os grandes carnavalescos. A história do carnaval de São Paulo é riquíssima, e a gente precisa correr atrás dela porque o tempo passa e cada vez fica mais difícil”.