Por Leonardo Antan
Foi uma festa variada de enredos o carnaval da Série A. Em dias de desfiles desnivelados, as escolas de samba do grupo lutaram para colocar seu carnaval na rua com pouca verba e muitas dificuldades. Com desfiles fracos no grupo, se viu refletir a falta de investimento no que deveria ser uma das bases da folia carioca. Mas mesmo em meio ao cenário da famigerada crise, se provou um ano de renovação e aposta em novos talentos. Quase metade das agremiações apostou em carnavalescos que desenvolveram seu primeiro trabalho solo na Sapucaí esse ano, mostrando a importância de trazer novas linguagens para festa e promover sua renovação. Além disso, as escolas apostaram em enredos de forte apelo cultural e artístico, variando temáticas e tratamentos. Vamos aos apontamentos sobre como passaram as narrativas nesses dois dias de cortejos.
A crítica social, que se consolidou com uma tendência dos últimos anos na folia carioca, marcou tanto o início dos cortejos quanto seu encerramento. Surpreendendo com uma boa apresentação, a Vigário Geral trouxe uma fábula batizada de O Conto do Vigário que lançava um olhar crítico e debochado sobre a história brasileira e suas mazelas. O enredo se desenhou de maneira menos inspirada e apostou em críticas políticas conhecidas, mas ganhou um excelente final ao trazer uma enorme escultura de palhaço fazendo um gesto de arma, trajando uma faixa presidencial. A mensagem direta e contundente viralizou nas redes sociais Brasil a fora, mostrando a importância de uma imagem símbolo que represente o que a escola pretende artisticamente. Desfiles aclamados do último ano, como Paraíso do Tuiuti e Mangueira, também tinham essa característica, conseguindo condessar sua mensagem numa forte construção imagética.
Em tons menos exaltados, mas ainda sim urgentes, as pautas sociais também apresentaram em outras ocasiões durante os desfiles. O Império da Tijuca fez um importante alerta sobre a educação. O enredo conduzido pelo personagem Homem-Livro tomou decisões perigosas na sua narrativa, passeando tanto por clássicos da literatura como pela formação da imprensa no Brasil, além da própria história da agremiação verde e branco que completa 70 anos. Apesar da importância da discussão, a apresentação deixou a desejar num desencadear de ideias mais bem construído.
Outra pauta social que apareceu em outros cortejos foi a força feminina. O Império Serrano fez um enredo conduzido por essa máxima, exaltando grandes mulheres da história brasileira. O tema que tinha tudo para passar de maneira relevante na Avenida foi ofuscado por lamentáveis problemas da agremiação, marcado por situações trágicas e que roubaram os holofotes. Também falando de empoderamento, a Inocentes fez uma apresentação que homenageou a jogadora Marta e exaltou a luta feminina. O enredo de desenvolvimento simples, mas correto funcionou muito bem, em um belo tributo à rainha do futebol brasileiro. Na materialização do tema, o carnavalesco Jorge Caribé surpreendeu positivamente com um trabalho criativo e de forte comunicação. Disto, fica o destaque para a alegoria formada inteiramente por bolas de futebol, investindo num visual menos tradicional e sem tanto acetato e galão das alegorias tradicionais. Um acerto.
Falando tanto em força feminina quanto em soluções visuais criativas, o desfile da Rocinha reuniu estes dois elementos. A narrativa abordou a trajetória de Maria Conga, negra africana tornada escrava no Brasil, que construiu um quilombo na cidade de Magé e ao desencarnar integrou a falange de pretos velhos na umbanda. A bela e necessária história dessa personagem, pouco conhecida da história nacional, teve momentos plásticos bem marcados pelo competente trabalho de Marcus Paulo, que integra também a Comissão de Carnaval da Unidos da Tijuca nos últimos anos. O destaque ficou para uma alegoria decorada completamente com bambus e apostou num visual que fugiu a tentativa de uma opulência plástica vazia.
Se soluções visuais originais marcaram Inocentes e Rocinha, não foi o que se viu em outras apresentações do grupo. A velha fórmula de enormes esculturas e caixotes com elementos em pouca harmonia marcou muitas das alegorias que passaram pela Sapucaí nesse dois dias de desfile, unindo falta de apuro estético na sua concepção e problemas graves de acabamento. Coincidentemente, trate-se de escolas que apresentaram enredos confusos e desenvolvidos de maneiras menos interessantes. Foram o caso da Unidos da Ponte, numa frágil narrativa sobre a relação do homem com a eternidade; da Acadêmicos do Sossego, que cantou os Tambores de Olokum de maneira confusa; e da Unidos de Bangu, apostando num enredo africano com signos clichês e já reutilizados várias vezes na Avenida.
Além do enredo guiado por um griô da vermelho e branco da zona oeste, as chamadas temáticas africanas passaram ainda mais duas vezes no grupo em enredos mais bem resolvidos. A Cubango fez uma bela homenagem ao escritor Luiz Gama, passando pela história da escravidão do Brasil, o tema se entrecruza ao ótimo Ginga, da Unidos de Padre Miguel. A interessante e multifacetada história da Capoeira foi bem desenvolvida pela agremiação, que contou ainda com um trabalho plástico interessante e bem resolvido que apostou em referências artísticas, como as obras de Carybé e Rubem Valentim.
Outro tom percebido entre os temas foi a aposta na simplicidade, que deu bons resultados em desfiles que juntaram leitura e enredos mais bem estruturados. Como foi o caso da Santa Cruz ao cantar o nordeste de maneira competente; a Renascer, que homenageou as rezadeiras e falou da religiosidade brasileira; e a Porto da Pedra, que levou uma homenagem a figura da baiana, desde o aspecto religioso e cultural da personagem como sua relação com o carnaval.
Encerrando esse giro pelas narrativas das escolas da Série A, a Imperatriz Leopoldinense fez a grande apresentação da Série A e contou também com um excelente enredo. A homenagem ao compositor Lamartine Babô, feita originalmente pelo excepcional Arlindo Rodrigues, ganhou nova roupagem nas mãos de Leandro Vieira, que optou por uma sequência mais poética ao abordar o imaginário das canções do artista. Se em 1981, pesou o estilo histórico e mais cartesiano, a leveza deu o tom da sequência de alegorias e fantasias que apostaram na nostalgia. Em comum entre esses dois artistas, é inegável o bom-gosto e requinte que unem a estética de Leandro e Arlindo. O carnavalesco bicampeão pela Mangueira tem um evidente diálogo com o artista que fez história na Imperatriz há três décadas atrás e ajudou a definir as bases da linguagem da festa carnavalesca.
Dificuldades aqui e ali, fica deste carnaval a importância de olharmos para as escolas do acesso com mais atenção e cobrar ações para melhorar as condições de trabalho dos artistas que atuam nesse cenário. Mesmo com tanta dificuldade, a nova safra de artistas que se apresentou esse ano mostrou competência em propor temas interessantes e que renovam o público do carnaval.