Voltamos para encerrar nosso passeio pelos enredos do Grupo Especial carioca para 2023. Das últimas vezes, tentei reunir os enredos propondo alguns recortes que os aproximavam. No primeiro texto, exploramos os temas que falam de céus e paraísos. Já no segundo, falamos daqueles que exploram regiões brasileiras ao norte e nordeste.

Esse último grupo de quatros enredos restantes — formado por Grande Rio, Império Serrano, Viradouro e Vila Isabel — não forma exatamente uma seleção homogênea de temas. Pelo contrário, reafirmam a diversidade das escolhas narrativas, apesar de alguns deles se aproximarem também. Um exemplo disso é a dupla formada por Caxias e o Reizinho de Madureira, ambas homenagearão grandes sambistas brasileiros: Arlindo Cruz e Zeca Pagodinho.

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Os dois artistas são frutos de uma mesma geração, surgidos na década de 1980 nas sombras da Tamarineira do Cacique de Ramos. Quiseram os orixás que dois amigos tão próximos desfilassem seguidos na Avenida, abrindo a folia deste ano no domingo. Além de tocarem em universos próximos, a condução das narrativas pelos carnavalescos também se aproximou ao optarem por abordagens geográficas.

zeca beija
Foto: Eduardo Hollanda/Divulgação

Na Grande Rio, a narrativa começa exatamente no dia 23 de abril, dia do cortejo campeão da tricolor. Após saudar Exu, a escola segue a gira com Ogum (o segundo a baixar no xirê) e vai até a alvorada de São Jorge para procurar Zeca Pagodinho. O enredo então segue uma busca pelo artista, inspirado na canção “Zeca, Cadê Você?”, a partir de lugares afetivos de sua história: Irajá, Del Castilho, Ramos, Madureira e Oswaldo Cruz, até chegar em Xerém, distrito da cidade de Duque de Caxias, onde o artista fez o seu recanto pessoal.

Desenvolvido por Leonardo Bora e Gabriel Haddad, com pesquisa de Vinícius Natal, o enredo é bem construído exatamente por essa condução inteligente e bem amarrada que foge a uma biografia habitual. Se tivesse que ser encaixado num gênero literário, inclusive, a narrativa não estaria tanto para um texto biográfico, mas sim uma verdadeira crônica do subúrbio e da cultura carioca, que será conduzida a partir da obra do homenageado.

arlindo imperio

Quem também trará a devoção por São Jorge logo na sua abertura será o Império Serrano. O padroeiro da agremiação é quem abre a narrativa proposta por Alex de Souza, que também se inspirou numa música. Dessa vez o clássico “Meu Lugar” se expandirá para virar os “Lugares de Arlindo” — explorando a vasta obra musical do marido de Babi Cruz.

Apesar de tantas semelhanças entre os dois enredos — o que não se configura como um problema de modo algum — a narrativa da verde e branco tem um caráter afetivo maior por louvar um nome de sua própria história. Afinal, a própria Serrinha é um dos “lugares” do homenageado, o que garante também um passeio pela história da agremiação e seus baluartes. Já é um trunfo e tanto apostar nessa emoção e afetividade para buscar a permanência no grupo especial. Uma escolha muito mais acertada do que na sua última passagem da Serrinha na elite da folia.

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Foto: Nelson Malfacini/Site CARNAVALESCO

Saímos do pagode contemporâneo e voltamos para o período colonial brasileiro. Pois foi no século XVIII que viveu Rosa Maria Egipcíaca, mais um enredo biográfico que vai passar na Avenida em 2023. A história da mulher negra que foi de meretriz a santa aclamada pelo povo será apresentada pelo Viradouro na segunda-feira de carnaval, sob a batuta criativa de Tarcísio Zanon, com desenvolvimento e pesquisa de João Gustavo Melo.

Apesar de ser tratado por alguns como um tema “católico” ou “religioso”, o passeio dos setores terá um recorte bem mais abrangente. Já que a narrativa parte da diáspora africana, segue pelo ciclo do ouro de Minas Gerais e explora ainda outros aspectos que permitem uma abordagem mais histórica. As possibilidades estéticas a serem exploradas são tão ricas que o carnavalesco definiu o tema como “afro-barroco”, prometendo um recorte inovador. Com uma das premissas mais originais do ano, a Viradouro vai cumprir aquele papel importante de uma agremiação: revelar ao público uma personagem pouco conhecida da história brasileira que merece ganhar mais holofotes.

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Por fim, temos um enredo que destoa bastante das outras propostas apresentadas. Se falamos de algumas propostas com forte densidade cultural e uma pesquisa apurada, a Vila Isabel deverá seguir por uma viagem mais temática. Celebrações religiosas espalhadas pelo mundo são a condução de “Nessa festa eu levo fé”. Simples assim, já que a peregrinação proposta não tem um desenvolvimento mais cuidadoso ou um fio-condutor definido.

Uma narrativa direta pode ter suas qualidades. A conferir se tal objetividade proposta não será apenas uma premissa de onde sairão os momentos visuais que Paulo Barros quer representar em alegorias, desvalorizando o enredo em detrimento da estética. Se esse tipo de proposta foi eficaz no passado, parece bem menos pertinente atualmente, principalmente em comparação com a variedade expressiva e qualitativa dos demais enredos. Verdade seja dita, a surpresa que o carnavalesco sempre busca atingir poderia ser mesmo a reinvenção do seu estilo já conhecido, que apesar de ter feito história na festa precisa seguir novos caminhos.

Lidas todas as sinopses, investigados os temas apresentados e especulado sobre eles, agora é hora de sair da teoria e conferir como os enredos se darão na Avenida. Pois é lá, na pista da Sapucaí, que as narrativas se concluem e podem ser analisadas de fato, no desenrolar de alegorias e fantasias. Chega logo carnaval!