Dos conceitos mais importantes para a construção de um enredo carnavalesco, a semiótica foi tema de duas aulas no “1º Simpósio de Enredos – São Paulo”, evento realizado no último sábado (22), no Centro Cultural Olido e organizado pela Faculdade Centro Sul-Brasileiro de Pesquisa, Extensão e Pós-Graduação (CENSUPEG). Dois importantes nomes da folia no Rio de Janeiro e em São Paulo abordaram a temática nas respectivas apresentações.

Carnavalização de temas

A primeira aula, ministrada por João Gustavo Melo, coordenador do curso de Gestão e Design em carnaval da CENSUPEG e enredista da Unidos do Viradouro, teve como temática “Enredo: História, Beirando a Poesia”. A própria nomenclatura do quesito avaliado em desfiles foi dissecada pelo professor logo no começo da apresentação. “O radical ‘red’ na palavra dá a sensação de conexões, redes, conexões, links. É o entrelaçamento de histórias entrecruzadas”, afirmou ele.

Na visão dele, o quesito é muito mais que a sinopse entregue aos compositores ou qualquer documento entregue à comissão julgadora. “Pequenos toques podem ser muito sutis e podem colaborar muito para a narrativa do enredo. Também é contado na bateria, nos figurinos, na parte musical, em um gesto que uma porta-bandeira faz”, disse – dando como exemplos movimentos gestuais do casal Raphael Rodrigues e Dandara Ventapane, da Paraíso do Tuiuti, em 2023, ou em uma bossa da “Bateria com Identidade”, da Rosas de Ouro, no ano de 2017 – ano em que a escola falou de banquetes com um movimento rítmico alusivo ao tema criado pelo mestre Rafa.

Contextualização

Na visão de João Gustavo, o período histórico vivido e/ou retratado é fundamental para que a construção do enredo seja bem-feita – e gere bons resultados e/ou desfiles históricos. “É importante saber como o enredo está estruturado no tempo em que a gente vive, qual o espírito do nosso tempo, o que está sendo pensado e o que as pessoas vão pensar daquilo em dez meses, por exemplo”, comentou.

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Fotos: Will Ferreira/CARNAVALESCO

Para exemplificar, foram dados alguns exemplos. “Invisíveis”, apresentado pelo Camisa Verde e Branco de 2023, foi muito elogiado pelas bases teóricas, com citação ao livro homônimo da escritora Fernanda da Escóssia. Também foi lembrado uma situação envolvendo “Glórias e Conquistas – A Força do Império está no salto do Tigre”, desfile da Império de Casa Verde que tinha Renato Lage e Márcia Lávia na Comissão de Carnaval. Originalmente, o projeto tinha menos suntuosidade que o imaginado pela escola – e tudo foi refeito.

Na visão do professor, situações opostas também acontecem. Em 2003, com o enredo “Os Dez Mandamentos! O samba da paz canta a saga da liberdade”, a Estação Primeira de Mangueira, com carros alegóricos bastante grandes, sem querer, oprimiu os componentes, de acordo com ele próprio.

Intertextualidade

Algumas inspirações para desfiles e carnavalescos também foram citados na aula. O conhecidíssimo “Real Maravilhoso”, imortalizado por Joãosinho Trinta a partir da década de 1970, por exemplo, encontra guarida intelectual e imagética no Realismo Fantástico de Gabriel Garcia Marquez, por exemplo. Tido por muitos como o maior carnavalesco de todos os tempos, Joãosinho também teve influência de Florenz Ziegfeld, produtor teatral estadounidense – que, assumidamente pelo próprio, também foi muito estudado por Paulo Barros, atualmente na Unidos de Vila Isabel.

Sociedade na avenida

Na década de 1980, com a Guerra Fria ainda em vigor, uma temática passou a dominar o cotidiano: a corrida espacial. O assunto estava tão em voga que até mesmo a abertura dos Jogos Olímpicos de 1984, disputados em Los Angeles, tiveram uma nave espacial. Um ano depois, a Mocidade Independente de Padre Miguel replicou a temática no campeão “Ziriguidum 2001, um carnaval nas estrelas”.

Com o Brasil ainda vivendo uma ditadura civil-militar, o agitado momento político do país também teve muita influência em desfiles, sobretudo na década de 1980. Foram citados “Tropicália Maravilha”, da Mocidade Independente de Padre Miguel em 1980, e dois desfiles da Caprichosos de Pilares: “Moça bonita não paga”, de 1982; e “E por falar em saudade”, de 1985. Na visão do professor, a carnavalização de temas em voga na sociedade obedece ao conceito de ressonância discursiva, no qual um assunto/fato ecoa de diferentes maneiras e encontra abrigo em locais distantes de onde apareceu inicialmente.

Polêmicas

Também foram abordados momentos nos quais desfiles em geral foram criticados pela opinião pública. A comissão de frente dos Gaviões da Fiel de 2019, quando reeditou o enredo “A Saliva do Santo e o Veneno da Serpente”, originalmente de 1994, foi muito lembrada por conta da interação entre Jesus Cristo e personagens travestidos de Satanás – o que rendeu diversas críticas à época após a descontextualização do que foi apresentado no Anhembi.

A figura histórica da Pietá, com a Virgem Maria segurando o cadáver de Jesus Cristo, ganhou diversas releituras em desfiles – e, em alguns mais antigos, foi preciso driblar a censura da Igreja. Em 2000, com o enredo “A imagem e semelhança dos Deuses: Terra Brasilis”, ela precisou entrar como uma índia segurando um filho morto, e não a figura tradicional – que era o plano original.

Ao comentar tais temas, João Gustavo foi enfático: “Quem trabalha com escola de samba está sendo atacado nos tempos atuais”, disparou.

Semiótica aplicada

O segundo palestrante do dia foi Sidnei França, atualmente carnavalesco do Vai-Vai. De acordo com o próprio, ele preparou uma apresentação mais teórica, mas todo o conceito foi utilizado por João Gustavo – causando risadas dos presentes. Ele, então, optou por se aventurar em alguns pontos pertinentes ao exercício de um carnavalesco no carnaval de São Paulo atualmente.

Ele focou em dois temas para provocar os presentes. O primeiro deles diz respeito à diferença entre o profissional que atua em solo paulistano e no Rio de Janeiro. “Diferente do RJ, por conta da Revolução Salgueirense e o encontro da Escola de Belas Artes por meio do Fernando Pamplona, houve uma ruptura com o que era feito antes. Até hoje bebemos daquela fonte. E até hoje o carnavalesco tem protagonismo no RJ, até hoje ele é uma figura cultuada, o grande cérebro que vai gerar soluções. Se a gente transpuser isso para São Paulo, a cidade não teve uma revolução como aquela, então muitos enredos eram da instituição, não do carnavalesco. É muito recente essa preponderância do carnavalesco em São Paulo, passou a ser mais ou menos na década de 1990”, pontuou.

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A não existência de uma Revolução Salgueirense em São Paulo, entretanto, não impediu que os desfiles da cidade tivessem alguns pontos de ruptura importantes. “O carnaval de SP passa por algumas revoluções: Mocidade Alegre no começo da década de 1970, com uma proposta mais dinâmica; Rosas de Ouro ao ganhar o primeiro título, com um carnaval mais vertical, em 1983; Gaviões da Fiel, quando traz carnavalescos do RJ, com um padrão estético que não existia; e Império de Casa Verde com uma monumentalidade estética nas alegorias a partir de 2005”, discorreu.

Exemplos práticos

Citado mais de uma vez por Sidnei, Eduardo Basílio, antigo presidente da Rosas de Ouro e dos maiores baluartes da história do carnaval paulistano, foi lembrado, entre outros motivos, por ser um visionário e por ter, também, um quê de carnavalesco – ele mesmo assinou os desfiles de 1978, 1987 e 1990. Outro fato foi relembrado pelo professor: em 1988, ele foi o responsável por utilizar o acetato pela primeira vez no carnaval de São Paulo – no desfile “Carvalho, Madeira de Lei”.

O próprio Sidnei relembrou das chegadas dele em escolas de samba que já tinham enredos e/ou parcerias definidas. Em 2017, a Unidos de Vila Maria já estava em conversações para homenagear os 300 anos do achado da imagem de Nossa Senhora Aparecida – que se transformou no enredo “Aparecida – A Rainha do Brasil. 300 Anos de Amor e Fé no Coração do Povo Brasileiro”. No ano seguinte, ele foi para os Gaviões da Fiel, que tinha uma parceria com a prefeitura de Guarulhos – que culminou no desfile “Guarus – Na aurora da criação, a profecia Tupi…Prosperidade e paz aos mensageiros de Rudá”. Por fim, em 2020, o campeão “O Poder do Saber – Se Saber é Poder… Quem Sabe Faz a Hora, Não Espera Acontecer” também já estava sendo pensado pela Águia de Ouro.

Monumentalidade

A exigência estética no carnaval paulistano também foi discutida na aula. Na visão do professor, “carnavalescos são quase escravos de ter duas bases acopladas para abrir o desfile”. Esse foi, por sinal, o segundo ponto focal da aula.

Na visão de Sidnei, tal situação é outra temática que diferencia muito os carnavai paulistano e carioca. “O carnaval de São Paulo não pode ser avaliado no quesito Enredo como historicidade e lastro histórico da construção dos discursos com a régua do Rio de Janeiro”.

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Tudo por conta de uma diferença das sociedades em questão. “A questão da monumentalidade, de ser tão vertical… o Império de Casa Verde apenas chancelou uma vocação de uma cidade que tem como mito fundador a figura do bandeirante. A cidade de SP tem o entendimento de que você tem que estar em dia com a Selva de Pedra, com esse colosso de cimento, que tem a capacidade de te oferecer o progresso e o preço são sangue, suor e lágrimas. Non dvcor, dvco, como diz o lema da cidade. A presença do bandeirante como um desbravador, de presença colossal, entra no alter-ego da nossa cidade. Qualquer manifestação cultural genuinamente paulistana está sempre de braços dados com o progresso, com a luta e a bravura. É muito diferente do RJ, que tem até uma estética diferente – eles são art nouveau, SP é art déco. Aqui, Antes de entender se tem leitura e mensagem, todo mundo vê quem tá grandão”, desabafou.

Eu Também sou Imortal

Com presença de Sidnei, o Vai-Vai foi campeão do Grupo de Acesso I de 2023 reeditando o enredo que dá nome a esse intertítulo, originalmente produzido em 2005. O desfile foi citado algumas vezes na aula. Em um desses momentos, como exemplo para chancelar o ponto do professor sobre o padrão estético do carnaval paulistano. “Muitas pessoas elogiam o desfile que fiz no Vai-Vai. O abre-alas era muito extenso, algo que não era o padrão da escola. Isso na chamada ‘Escola do Povo’ foi a senha para muitos desses elogios. O tamanho vem antes da mensagem”, comentou.

Retomando a discussão sobre semiótica, ele também citou o Vai-Vai em 2023. “Quando se debruça no que chamamos de processo criativo, o carnavalesco utiliza a semiótica como respaldo pictórico para sustentar a mensagem. E, aí, ele é um mediador. A cada escolha estética que eu faço podem ter uma ou mais mensagens, tentando acessar sentimentos do sambista como um todo, mas em especial da comunidade. O abre-alas da escola era inteiro preto tanto para remeter ao Big Bang quanto para representar uma comunidade que tinha sido rebaixado pela segunda vez na história”, relembrou.

Papel do carnavalesco

Para encerrar, Sidnei falou sobre o que, na visão dele, é importante destacar na ocupação na qual ele atua. Primeiro, ele fez questão de tirar a aura do cargo. “As pessoas acham que um carnavalesco é um ser iluminado, mas isso é prática e técnica. As escolas são intencionais, não acidentais”, destacou, relembrando que toda montagem de desfile tem erros e acertos.

Por fim, a semiótica, mais uma vez, se fez presente. “Existe um conceito, que é errado, de entender que o carnavalesco se preocupa apenas com questões estético-visuais. Se a gente for entender, a partir do momento que ele chancela um discurso ainda na sinopse, ele também é responsável pelo que o compositor vai colocar no samba, por exemplo. Essa é uma prova de que a semiótica vai muito além de questões imagéticas-visuais”, finalizou, mostrando que o trabalho do profissional vai muito além do que pensam.