Uma parte do acervo e do legado artístico da carnavalesca Maria Augusta Rodrigues, de 81 anos, poderá ser conferido de perto pelo público até o dia 10 de dezembro, no Sesc Madureira, através da exposição “Cartografias de Augusta”. A mostra presta uma homenagem ao itinerário da artista e a sua dedicação ao maior espetáculo a céu aberto do planeta. Ao todo, são mais de 200 croquis, desenhos, estudos, traços e fantasias originais reunidos no mesmo espaço. Em entrevista concedida a reportagem do site CARNAVALESCO, os curadores Eduardo Gonçalves e Leonardo Antan relataram como surgiu essa ideia, além de todo o processo para montagem e abertura.

Fotos: Diogo Sampaio/CARNAVALESCO

“Sou amigo da Maria Augusta há muitos anos. Amigo, admirador, chamo ela de dinda, de madrinha do Carnaval. Um pouco antes da pandemia, a gente já tinha conversado sobre essa questão de fazer uma exposição, porque o material dela é muito grande. São muitas pastas, tanto que o exposto aqui não é nem a metade do material. Quando começou a tomar forma a ideia de fazer a exposição, com a qualidade que merece, imediatamente me veio à cabeça o nome do Leonardo Antan e dos meninos que estão fazendo esses trabalhos artísticos tão bem feitos. Na hora, eu falei: ‘Augusta, eu vou procurar os meninos do Carnavalize porque é o caminho’. A gente precisava realmente ter esse tratamento, a coisa da curadoria, do olhar, da restauração, de tudo isso. Então, tivemos uma reunião, há uns três anos, eles toparam e embarcaram nessa loucura. E foi um trabalho árduo, difícil. Além desse processo de ser muito material, muita coisa, tem toda a questão que ela nunca expôs, é um acervo muito particular, muito pessoal dela, que pouquíssimas pessoas tiveram acesso. Isso seria uma exposição para o mundo, para todos verem. Aí, o Léo junto dos meninos, com toda a produção, começaram a procurar, abrir o espaço, vasculhar as pastas. Muita coisa estava guardada dentro de um quarto micro, com vinte e quatro pranchas que tinham sido expostas na Escola de Belas Artes na década de 1980. Foi um processo lento”, contou Eduardo Gonçalves.

Leo Antan e Eduardo Gonçalves

“Foram dois anos de conversa com ela, de encontros, para pensar o conceito da exposição, em como abordar isso. Somente em maio deste ano que a gente começou o processo de curadoria. Ao todo, foram três meses de processo de seleção dos desenhos, para entender tudo que ela tinha guardado e do que iríamos expor. Em meio a este trabalho, nós entendemos que havia mais de um acervo ali, sendo um da história do Carnaval e o outro dela. Então, a gente tentou misturar isso da melhor maneira. O resultado é uma exposição em retrospectiva ao legado e a produção dela na folia, para que possamos apresentar esse trabalho para as pessoas que talvez não conheçam ou que só ouviram falar. Aqui, a gente tem registros das mais diferentes ordens para celebrar essa linguagem artística que ela criou e que deu tantos frutos para o Carnaval”, relatou Leonardo Antan.

De acordo com os curadores, a proposta da exposição é criar, a partir do mapa natal de Maria Augusta, uma cartografia afetiva que correlaciona aspectos astrológicos com temáticas, métodos e características da obra dela. Foi com base nesse preceito que os materiais expostos foram selecionados, sem necessariamente haver um compromisso em seguir uma linha cronológica ou contemplar uma determinada escola e período. Ao falar sobre esse processo de seleção no bate-papo com a reportagem do site CARNAVALESCO, os dois responsáveis pela mostra destacaram o que mais lhe chamaram a atenção e pontuaram se sentem falta de algo do acervo que ficou de fora.

“A gente descobriu nesse processo três desenhos que são uma vista panorâmica do desfile do ‘Domingo’. Então, você ali entende como ela tem esse domínio da forma, da linguagem do Carnaval. Ela planeja um desfile inteiro, a visualidade dele, a vista aérea que terá. Então, virou um dos meus xodós. E assim, não sei se alguma coisa que ficou de fora me dá pena de não ter entrado, porque todo o material exposto é muito especial, muito conectado. Até um dia antes da abertura da exposição, a gente tava tirando algumas coisas que a gente entendeu que não cabia. Como acontece em um desfile, as coisas vão se conectando naturalmente. Se sobra alguma peça, você entende que ela não faz parte. Fico com pena de cortar tudo, mas tivemos uma equipe de curadora incrível também que tomou conta desse processo. A gente fez isso coletivamente, então cada desenho que saía era uma discussão, cada desenho que entrava também. Porém, foi um processo gostoso até porque a nossa ideia não é uma retrospectiva cronológica, uma linha do tempo sobre o trabalho dela, e sim apresentar a poética dela, a linguagem, o que ela trouxe de temática para o Carnaval e como isso é reflexo de quem ela é enquanto artista”, explicou Antan.

“Das coisas que entraram, eu destaco o Carnaval de 1969 do Império da Tijuca. Foi o primeiro desfile que ela realmente desenhou. Na época, o Fernando Pamplona foi procurado pela diretoria da escola e ele indicou a Maria Augusta, além de três amigas dela, colegas da Escola de Belas Artes. Ela desenha esse enredo ‘O negro na civilização brasileira’ e esses figurinos são até hoje todos inéditos. Ninguém nunca viu, pois foi um desfile que acabou não acontecendo. Ocorreu um problema e o Império da Tijuca não desfilou. Então, é um momento raro da exposição. Já do material que não entrou, cada corte para gente foi difícil. Pasta após pasta que a gente abria era uma surpresa. Por exemplo, tem um estudo dos hippies de 1983 do Paraíso do Tuiuti que eu descobri há pouco tempo. Assim, tem inúmeras pastas e a Maria Augusta é esse mistério, de onde pode sair tantos desenhos lindos, tantos estudos. A questão dela desenhar nos papéis em tamanhos pequenininhos e depois essas criações virarem realmente os croquis que vão para os presidentes de ala é muito interessante. É algo que permite a quem visitar a exposição ter esse comprometimento, esse entendimento de como é o processo de estudo de um Carnaval. Acho que isso é o destaque”, respondeu Gonçalves.

Além dos materiais da própria Maria Augusta, a mostra é composta também por obras inéditas de outros carnavalescos e artistas institucionais, que se inspiraram em trabalhos da homenageada e os reinterpretaram. Entre esses colaboradores estão nomes como Alex de Souza, Carila Matzenbacher, Jorge Silveira, Julia Gonçalves, Mulambo, André Vargas, Felippe Moraes, Andrea Vieira e Penha Lima. Para os curadores, essa interação entre as chamadas culturas eruditas e populares, assim como a ocupação de espaços antes exclusivos da elite pelo Carnaval e seus artistas, é algo a ser comemorado.

“É de extrema importância que os artistas ditos carnavalescos, ligados ao Carnaval, estejam presentes em galeria de artes, museus, espaços institucionais. As exposições que estão acontecendo estão dando essa oportunidade, de levar esses nomes e as suas produções para além do Sambódromo. O público tem conhecimento dessa arte, mas isso permite uma outra visão, com ela sendo colocada em uma nova perspectiva. É a possibilidade de ter os trabalhos e as obras dos artistas, sendo apreciados, admirados e consumidos com uma outra representação”, celebrou Gonçalves.

“Esse é um trabalho que faço há muito tempo, pelo menos há uns cinco anos. Já fiz algumas outras exposições em espaços como esse. Entendo que é sempre um olhar de reescrever esses nomes na história da arte. Neste caso, reescrever a Maria Augusta na história da arte brasileira. Ela é uma grande artista, viva, produtiva, que merece essa homenagem. A gente quer que as pessoas tenham o cuidado de olhar para essa trajetória dela com carinho e percebam isso. É óbvio que o desfile de escola de samba já é um evento artístico em si, quando ele acontece, mas a gente tem o resto do ano para poder olhar com calma e poder ter esse trabalho de reorganizar, de entender todos os processos que movem a produção de um. É muito importante que essa consciência se materialize ainda mais”, pontuou Antan.

Contemplada pelo Edital de Cultura Sesc RJ Pulsar, a exposição não tem um destino certo após dezembro deste ano. Na conversa com a reportagem, os curadores afirmaram ter o desejo de levar a mostra para mais locais, até mesmo fora da cidade e do estado do Rio de Janeiro. Também há vontade de realizar outras exposições com os materiais e arquivos que não entraram dessa vez.

“O nosso desejo é continuar, óbvio. Tem muita coisa ainda inédita, que está guardada, conservada. São vários projetos. A gente tem um de tentar fazer a manutenção desse material, por exemplo, que é importantíssimo, não só da Maria Augusta, como de vários artistas de Carnaval. Muitas vezes, os artistas morrem e a família não tem pra onde doar essas acervos. A gente precisa de mais incentivos, de editais que consigam cobrir os gastos disso, porque é trabalhoso, requer mão de obra, requer gastos. Quanto a levar a exposição para outros lugares, é claro que pretendemos isso. O nosso objetivo é esse. O fato de estar aqui, no Sesc Madureira, é maravilhoso. O bairro de Madureira é um berço do samba, estamos na terra do Império Serrano, da Portela, no coração da Zona Norte. E temos a necessidade urgente de trazer arte para essa região. A Maria Augusta amou essa ideia. Agora, é claro que, no que depender da gente, vamos fazer de tudo para viajar com essa exposição”, afirmou Leonardo Antan.

“A gente precisa sempre do apoio governamental, dos editais. Essa exposição só foi possível graças ao edital do próprio Sesc. Então, a gente espera que a cultura seja incentivada cada vez mais, para que possamos levar esse tipo de iniciativas para outros lugares, com certeza”, complementou Eduardo Gonçalves.

‘Fiquei arrepiada e com dificuldade de falar’, relata Maria Augusta

Com mais de cinco décadas dedicadas à folia, Maria Augusta iniciou sua trajetória na festa participando da equipe responsável pelos projetos de decoração de ruas para o Carnaval do Rio de Janeiro. Em 1968, ela passou integrar o grupo que preparava os desfiles do Acadêmicos do Salgueiro, sob supervisão de Fernando Pamplona, sendo uma das artistas que assinou, neste período, o emblemático enredo “Festa para um Rei Negro”, de 1971. Posteriormente, seguiu carreira solo e desenvolveu trabalhos históricos, entre os quais “Domingo”, de 1977, e “O Amanhã”, de 1978, ambos na União da Ilha do Governador. Ao longo da carreira, a carnavalesca teve ainda passagens por Paraíso do Tuiuti, Tradição e Beija-Flor de Nilópolis. Toda essa história, de certa forma, é revisitada pela exposição.

“Fiquei emocionada desde que começamos a mexer nos desenhos. Foi em 19 de maio que iniciamos esse processo de vasculhar e abrir as pastas que tenho organizadas. No meio delas, estava os materiais de uma exposição que fiz em 1981, na Escola de Belas Artes, que tinha guardado e nunca mais mexido. Ao revisitar todo esse trabalho, tudo que produzi ao longo dos anos, mexi com a minha vida. Além do trabalho físico, tem todo um trabalho emotivo, do corpo emocional mexendo com a vida, com tudo que já passei, com tudo que foi feliz e que não foi feliz. É algo muito forte, um processo que estou chamando de catarse. Quando cheguei na exposição, senti algo que não sei explicar. Fiquei arrepiada, com dificuldade de falar, minha garganta trancando. Aliás, é até muito característico meu isso, o emocional fechar a garganta. E posso dizer que gostei muito de tudo, desde as pessoas que vieram na abertura ao espaço em si, que ficou bom. Fiquei muito feliz também com a forma que a mostra foi organizada e pensada. É uma exposição temática, não cronológica, nem por escola. Isso é muito interessante. Tem as obras dos artistas convidados, que produziram algum objeto inspirado no meu trabalho. O resultado disso tudo está sendo uma surpresa muito agradável, muito boa. Acredito que a vida da gente tem uns momentos que marcam, que dividem a nossa trajetória em antes e depois daquilo. Estou me sentindo exatamente assim com relação a essa exposição”, declarou a artista em entrevista concedida a reportagem do site CARNAVALESCO.

A importância do Carnaval chegar a lugares antes tidos como impossíveis ou improváveis também foi destacado por Maria Augusta durante conversa com a reportagem. Na avaliação da carnavalesca, casos como o da exposição dedicada ao seu acervo e ao seu legado são fundamentais para se romper paradigmas e desconstruir pensamentos enraizados na sociedade.

“É muito importante para mim e para todos os carnavalescos que estão participando com obras inspiradas no meu trabalho. Afinal, não é uma exposição só minha, é coletiva. Eu sou de aquário e o coletivo sempre regeu a minha vida. Então, acho muito importante para todos nós romper com esse conceito, preconceituoso, de que existem artes diferenciadas. Arte é arte, assim como cultura é cultura. Esse negócio de cultura popular e cultura erudita não existe, é algo inventado para perpetuar preconceitos. Essa quebra de barreiras, de espaços, é muito importante para a sociedade como um todo”, ponderou.

Assim como os curadores, a artista homenageada não esconde o desejo de ver a exposição percorrer outros espaços dentro da capital fluminense e fora dela. No entanto, a maior preocupação é quanto ao destino que todo esse acervo terá futuramente. É pensando nisso que Maria Augusta se coloca como uma das defensoras da criação de um museu totalmente dedicado ao espetáculo, que é considerado o maior a céu aberto do planeta.

“Todo o meu trabalho sempre foi organizado em pastas, que reúnem desenhos, croquis, figurinos. Sempre estudei muito a forma das fantasias, então tenho arquivos por ano, por escola, além de um acervo muito grande, ano a ano, do Carnaval como um todo. São jornais, revistas, letras de samba enredo… Aliás, onde eu for e ouvir samba, vou guardar as letras. Tenho um acervo que acho que ninguém tem. Ainda nesse processo de guardar, tenho a roupa, a gola e a cabeça de uma fantasia do Salgueiro de 1973. São 50 anos guardada e agora está na exposição para todo mundo ver. Eu gosto disso. Coisas que me emocionam, quando posso, eu guardo. Só lamento que isso não tenha um lugar próprio para ir. Falta um museu do Carnaval, acho que nós tínhamos que ter. Para onde vou deixar esse meu acervo? É um grande absurdo o Rio de Janeiro, que é a cidade do maior Carnaval do mundo, não ter um museu dedicado a isso. Se existisse, seria o lugar natural para nós, artistas do Carnaval, termos o nosso trabalho preservado. Pode ser que essa mistura do espaço dito erudito com o popular seja o começo para que isso se torne real”, refletiu a carnavalesca.

A exposição “Cartografias de Augusta” está aberta ao público até o dia 10 de dezembro, de terça a sexta-feira, das 10h às 20h. A mostra possui entrada gratuita e a classificação é livre. O Sesc Madureira fica localizado na Rua Ewbank da Câmara, no número 90, próximo à estação de trem do bairro e a Praça do Patriarca.