“Dona Ivone Lara, a coisa mais linda do Brasil, amor das nossas vidas”. Assim Caetano Veloso saudava a cantora e compositora, ao participar do “Baú da Dona Ivone”, disco que, em 2012, reuniu canções inéditas da rainha na voz de grandes nomes da música brasileira. Nove anos se passaram, e Dona Ivone, que nos deixou em 2018, segue cada vez mais linda — a despeito do Brasil que, desde então, vem insistindo em mostrar seu lado mais feio e triste. A beleza crescente das melodias da imperiana, registradas no “Baú da Dona Ivone”, está ao alcance de todos nas plataformas digitais, pela primeira vez, como parte das celebrações do centenário da artista — as 12 faixas, raridades que até pouco tempo existiam apenas em CDs físicos, distribuídos em escolas da Prefeitura do Rio, foram disponibilizadas agora pela Radar Records em três EPs, lançados entre outubro de 2020 e fevereiro de 2021.

A notícia já é motivo de alegria enorme para quem ama o Brasil radiante que Dona Ivone representa, mas a celebração vai ainda mais fundo no baú. Bruno Castro, seu parceiro e idealizador do “Baú da Dona Ivone”, garimpou mais canções da compositora. Elas ganham a luz neste dia 13 de abril, quando a artista completaria 100 anos. Quatro delas são completamente inéditas: “Dois corações abrindo a manhã”, na interpretação de Maria Rita; “O espaço pra sonhar”, com Fundo de Quintal; “15 anos após o centenário”, no dueto de Dudu Nobre e Pretinho da Serrinha; e “Já é hora”, na voz de Xande de Pilares. “Nas escritas da vida”, lançada em 2010, volta agora em registro inédito, com Dona Ivone dividindo os vocais com Gilberto Gil. Completando a homenagem, Dandara Mariana canta “Silêncio da passarada”, feita por Bruno Castro e Ciraninho, em tributo à autora de “Sonho meu”.

O time dos sonhos inclui também grandes arranjadores. Rildo Hora assina o arranjo de “O espaço pra sonhar” e, Jota Moraes, o de “Dois corações abrindo a manhã”. Leandro Braga fica responsável por “Já é hora”, “Silêncio da passarada” e “15 anos após o centenário”. “Nas escritas da vida” tem a caneta de Maurício Verde, que havia trabalhado em todas as faixas do “Baú da Dona Ivone”, em 2012.

A história de cada uma dessas canções registradas no novo EP revela um tanto da alma de Dona Ivone. “Dois corações abrindo a manhã” nasceu de um dos famosos contracantos (os “laralaiás”) que a cantora improvisava com extrema naturalidade.

— Estávamos num show em Curitiba, no Sesc da Esquina, em 2005, e Dona Ivone estava especialmente inspirada aquele dia, interagindo demais com a plateia — lembra Bruno Castro. — Em “Tendência”, ela deixou o canto com o público e veio fazendo um desenho de improviso

bem peculiar, ela estava na ponta dos cascos. Como tinha esse show gravado em CD, separei esse improviso e mostrei a melodia pro Rildo Hora. Ele perguntou se podia fazer uma segunda parte e me mandou pra fazer a letra.

Bruno se inspirou numa cena que viveu com a mulher — um café da manhã no qual o casal, que comemorava 20 anos de casado, ganhou um bolo com dois corações desenhados. Viu ali o mote para a letra romântica da parceria tripla (Dona Ivone, Rildo e Bruno), que agora ganha a voz de Maria Rita.

“O espaço pra sonhar” (Dona Ivone e Bruno Castro) nasceu numa fase, nos últimos anos de vida, em que Dona Ivone ficava muito em casa, criando melodias, sentada em seu quintal em Oswaldo Cruz. Numa dessas melodias, Bruno construiu a letra de exaltação ao samba:

— É uma letra bem política, no sentido de afirmação do samba — explica o letrista, antes de cantar versos que exemplificam o que diz. — “Bem mais que ofício, me faz ser brasileiro/ Verdadeiro, a cantar os meus Brasis”. Também digo: “Se vejo em curso um preconceito/ Eu canto samba/ Pra cantar nosso direito/ Eu canto samba/ E se partir pro desrespeito/ Eu faço samba”. Tínhamos que chamar o Fundo de Quintal para essa.

“Já é hora”, que Xande de Pilares canta, tem uma origem inusitada. Amante de doces (que nem sempre podia comer por questões de saúde), Dona Ivone improvisou um samba em louvor ao pudim de Dona Fátima, sogra de Bruno. Seu parceiro registrou a melodia e, tempos depois, conta que acordou com a segunda parte da música inteira na cabeça:

— Na hora peguei o instrumento e gravei. Depois, Dona Ivone veio a falecer, e o (compositor e cavaquinista portelense, Serginho) Procópio, que é um aficionado por ela, perguntou se eu tinha alguma melodia de Dona Ivone. Mostrei essa. Ele levou e no dia seguinte trouxe a letra pronta. Ele mesmo mostrou pro Xande, que adorou e quis gravar.

A outra inédita dessa leva, “15 anos após o centenário”, foi feita por Bruno e Zé Luiz do Império, a partir de melodia de Dona Ivone — e seus relatos sobre Vó Tereza, personagem fundamental pro jongo, para Serrinha e para toda a comunidade de Madureira. Mãe dos lendários Mestre Fuleiro e Tio Hélio, e tia de Dona Ivone, ela é celebrada num samba em forma de crônica, narrando uma fictícia festa dos 115 anos da matriarca.

— Fizemos na linha daquelas coisas de Nei Lopes, o grande cronista do samba — diz Bruno.

Em “Nas escritas da vida”, Gilberto Gil colocou seu canto ao lado da voz gravada por Dona Ivone, em 2010. Um dos gigantes da música brasileira, o baiano canta com reverência frente à imponência natural da cantora.

“Silêncio da passarada”, que imagina os pássaros do quintal de Dona Ivone se dando conta de sua ausência depois de sua morte, é relida por Dandara Mariana — em 2022, a canção

ganhará o formato de livro infantil. A atriz e cantora foi uma das escaladas para representar Dona Ivone no musical “Um sorriso negro”, em 2018.

O projeto “Baú da Dona Ivone”, aliás, tem forte caráter educativo. Em 2012, ele nasceu com o apoio da Prefeitura do Rio (na gestão do então prefeito Eduardo Paes), e foi distribuído para as escolas e bibliotecas do município, junto com um suplemento pedagógico. Bruno procura revitalizar esse material, preparado pelo professor Douglas Fagundes, e agora seguindo com a curadoria da professora Helena Soares.

— A História do Brasil está nas canções de Dona Ivone. “Não é miragem”, dela com Délcio Carvalho, é um hino da redemocratização. “A luta imperiana” nasceu de uma nota de jornal sobre os mandos e desmandos dos traficantes na comunidade da Serrinha — conta Bruno. — Estamos gravando vídeos com esse material, no intuito de democratizá-lo.

As sessões de gravação deste novo EP foram registradas em vídeo também, com depoimentos dos artistas. A ideia é que eles possam ser aproveitados num documentário futuro.

As novidades em torno do “Baú da Dona Ivone” abrem as celebrações do centenário da artista, que prometem ser longas. Até porque há uma controvérsia sobre a data de seu nascimento. Dona Ivone tem documentos que afirmam que ela nasceu em 1921 e outros que atestam que foi em 1922. A própria família da compositora, que apoia as iniciativas do “Baú da Dona Ivone”, não tem uma definição sobre a data. Ou seja, anuncia-se um cenário de homenagens que se estenderá ao longo de 2022. Uma imprecisão histórica que atua a nosso favor. Afinal, dois anos é pouco para a grandeza de Dona Ivone — e o Brasil anda precisado.

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