Por Diogo Cesar Sampaio
Pioneira no teatro, no cinema e na televisão brasileira, Ruth de Souza escreveu seu nome na história. Ao longo de toda sua carreira, colecionou dezenas de marcas importantes, como ser a primeira brasileira a concorrer ao prêmio de melhor atriz em um festival internacional, pelo filme “Sinhá Moça” (1953). Além disso, foi a primeira negra a protagonizar uma telenovela, com “A Cabana do Pai Tomás” (TV Globo – 1969). E agora, aos 97 anos, ganhará mais um feito para o seu currículo: ser enredo de uma escola de samba. A Acadêmicos de Santa Cruz é que será responsável por prestar essa homenagem, concebida e assinada pelo carnavalesco Cahê Rodrigues.
“Eu já tinha o desejo de falar da Ruth há algum tempo. Eu cheguei a ensaiar uma homenagem a ela em 2015, na Imperatriz, quando fiz o “Axé Nkenda”. Porém, ela estava muito debilitada de saúde na época, e achamos por bem não levá-la para o Sambódromo. Queria que ela tivesse um espaço, que fosse grande no enredo. A família achou por bem deixar um pouco mais pra frente, para que ela pudesse se recuperar. E no final do carnaval passado, eu me desliguei da Imperatriz. A ideia era ficar de fora, para que eu pudesse me dedicar a outros projetos. Só que aí veio o convite do Zezo (presidente da Santa Cruz). Eu falei para ele: vai me deixar fazer meu enredo? E ele me perguntou qual seria. Disse que era uma homenagem a Ruth de Souza e ele topou”.
Cahê Rodrigues mostra-se realizado com a oportunidade de finalmente tirar o projeto do papel. Ele destaca a abertura do desfile como um dos destaques, que contará com a presença da homenageada logo no carro abre-alas.
“Entre todos os momentos especiais da Santa Cruz esse ano, eu destaco a comissão de frente. Ela é um xodó, pois tem um significado muito grande pra vida da Ruth, além de ter uma carga emocional muito grande. Acho que vai ser um grande momento de emoção. O abre-alas também, que é aonde a Ruth vem. É um carro muito representativo pra ela. É a visão dela sobre o Theatro Municipal. Retrata a estreia dela no palco. Só que criamos um Municipal meio africanizado. É como se ele estivesse decorado pra receber a rainha. Tanto a comissão, quanto o abre-alas, são muito representativos dentro dessa homenagem.”
Saída da Imperatriz
Depois de seis carnavais consecutivos na escola de Ramos, Cahê Rodrigues encerrou sua trajetória na Imperatriz, após o desfile de 2018. Uma saída amigável e em comum acordo entre todas as partes, segundo conta o próprio Cahê. Para o artista, era algo que já se fazia necessário, pois ambos os lados precisavam de experiências novas.
“Eu conversei com o presidente Luizinho Drumond. Tinha assuntos pessoais e familiares pra resolver, e precisava dar uma pausa. O Grupo Especial nos toma muito tempo e dedicação. Fiquei quase que 18 anos direto vivendo isso. Precisei me desligar, e foi super saudável. Tenho um bom relacionamento com todos, frequento a quadra da escola e inclusive recebi um convite para desfilar com a Imperatriz, na diretoria. Aprendi dentro de casa a sempre deixar portas abertas, a saber entrar e sair dos lugares. Tenho uma gratidão eterna por tudo que vivi ali dentro. Acredito que estamos dando um tempo na relação. Isso faz parte. É bom pra todos. Estou me dedicando a outros projetos. Estou fazendo carnaval em Manaus, na Vitória Régia, que um lugar e uma terra que eu amo. Estou fazendo a Santa Cruz, fazendo algumas coisas para fora do Rio de produção de show e cenários”.
Retorno para Santa Cruz
A relação entre Cahê Rodrigues e a Santa Cruz é de longa data. Com o retorno do carnavalesco para a agremiação esse ano, já são três passagens ao todo. Além da atual, ele já esteve na escola entre 1996 e 1997, e novamente em 2003, tendo sido ele o responsável por assinar o carnaval da verde e branca em sua última estada no Grupo Especial.
“A minha primeira passagem na Santa Cruz foi em 1996, quando eu fui assistente do Albeci (Pereira, carnavalesco da escola na época). Na ocasião, fomos campeões do Acesso, e a escola subiu para o Especial. E em 1997, eu também fiz com eles o “Não se vive sem bandeiras”. Depois eu retornei em 2003, com o enredo sobre o teatro, de autoria da Roseli Nicolau, que era uma super amiga com quem eu dividi muitas coisas nessa vida, e que cuidou dessa escola com muito carinho. Sou muito grato a tudo que vivi na Santa Cruz com a Roseli e com o Zezo. E o retorno agora, após quase 18 anos de Grupo Especial, e a Série A nas condições que está agora, a Santa Cruz tendo de mudar de barracão, viemos para um lugar improvisado, sem teto, chovendo dentro do barracão. Uma situação muito complicada. Mas aqui temos uma parceria muito grande entre as pessoas. Tenho uma relação tão boa com a escola, que a gente consegue driblar todos esses problemas, com muita alegria e união”.
Adaptação ao carnaval da Série A
Acostumado a trabalhar em escolas do Grupo Especial, Cahê Rodrigues enfrenta agora outra realidade. Se a crise que impacta o carnaval já atinge muito as agremiações da elite, que dirá as dos grupos anteriores, como a Série A. Não basta a falta de verba e de material, é necessário lidar com questões estruturais também, por exemplo. Até mesmo o modelo de desfile se difere, exigindo do artista recém-chegado no grupo, uma adaptação às novas condições.
“Estou me reencontrando como profissional aqui. Estou reencontrando pessoas, que fizeram parte da minha vida e que ainda vivem nesse grupo, com tanta dificuldade. Às vezes, é preciso dar um paço pra trás. Hoje, eu estou na Série A por opção. Precisava viver algo diferente, afinal, estava há muito tempo no Especial. E lá, as coisas são muito menos difíceis do que na Série A. Por exemplo, você tem mais setores, carros e alas pra contar uma história. Para falar da vida da Ruth na Série A, tive de resumir tudo em quatro setores e quatro alegorias, somente. O que é extremamente desafiador, porque ela tem muita história e eu tive de pontuar de uma forma muito resumida, apenas destacando os principais momentos. A paixão dela pelo teatro, o cinema, a estreia dela na TV. As indicações, pois ela foi a primeira mulher negra em diversos segmentos. Foi a primeira mulher negra a protagonizar uma novela, a primeira mulher negra a pisar no palco do Theatro Municipal, foi a primeira artista negra a ser indicada a um prêmio internacional. Reduzir e resumir toda essa história em apenas quatro setores foi um grande desafio”.
Porém, engana-se quem pensa que Cahê Rodrigues é um novato no acesso. Apesar de ter se dedicado, ao longo dos últimos anos, a trabalhos no Grupo Especial, o carnavalesco já assinou desfiles em outros grupos, incluindo ao que hoje conhecemos como Série A.
“Eu venho do Acesso. Comecei minha carreira como carnavalesco na Vigário Geral, em 1998. Já fiz Sossego, tive uma experiência na Santa Cruz, então eu carrego uma carga muito grande, e sei o sufoco que é fazer escola do acesso. Então, não é novidade. Eu sinto falta da estrutura que tinha na Cidade do Samba, de poder trabalhar até tarde, coisa que aqui não dá, por conta da iluminação. Várias vezes tive de ir embora mais cedo porque chovia muito aqui dentro. Você não pode colocar a vida dos profissionais em risco, então com isso, não dá pra ligar máquina de solda, não pode ligar uma extensão…. Essa falta de estrutura é o que mais senti. Não ter uma sala decente pra receber as pessoas. Mas não fico triste. Estou muito tranquilo e feliz apesar das dificuldades. O Zezo tem sido incrivelmente parceiro nessa produção. Estou vendo a dificuldade que ele está tendo de correr atrás de material. Ele não tem medido esforços para comprar material, para podermos fazer um carnaval digno. E em meio a dificuldade a gente vai se redescobrindo. Temos driblado a crise com alegria, ânimo e vontade de fazer realmente a coisa acontecer, da melhor maneira possível. Não tem como se deixar contaminar com os problemas. O carnaval está difícil pra todo mundo e todos estão no mesmo barco. Não é só a Santa Cruz”.
Soluções para driblar a crise
Reconhecido por ser eclético, Cahê Rodrigues costuma variar o seu estilo artístico de um trabalho para o outro. Com facilidade, consegue ir do barroco clássico ao tecnológico moderno. E para esse ano, o carnavalesco promete uma estética limpa, sem tantos detalhes, até mesmo como uma saída para os problemas financeiros e estruturais, que tanto assolam as escolas do grupo.
“Eu procurei criar um carnaval limpo. Nós não temos tempo de rebuscar muito, nem alegorias e nem fantasias. Eu procurei criar um carnaval mais didático, para que as pessoas possam ter uma leitura mais direta da proposta. É um carnaval que tem uma cara mais limpa. Eu não consigo definir que cara ele terá exatamente, até porque não sei como iremos finalizar. Se tiver tempo, irei rebuscar mais. Se o material chegar, terei como dar uma caprichada. Minha preocupação foi de criar alegorias e fantasias que pudéssemos levar uma mensagem mais direta, com simplicidade, devido às dificuldades. As fantasias da Santa Cruz não terão luxo, mas terão modelagem. Eu não tenho plumeiros ou exageros de bordados. A escola não tinha condições de investir nisso. Então, fui para um caminho mais de figurino. As alegorias, a gente está trabalhando com o que estamos conseguindo. Procurei manter 70% das estruturas dos carros, fazer novas esculturas com muita dificuldade, e a cada nova semana, é uma novidade. Porque nunca sabemos se o material vai chegar ou se vamos encontrar o material nas lojas. É difícil dizer qual será o resultado final que terão essas alegorias. Mas garanto uma leitura fácil e finalização caprichada de decoração. Isso eu vou lutar pra gente conseguir levar pra avenida, até o fim”.
Outra saída encontrada pelo carnavalesco, para ausência de recursos, foi a utilização de materiais atípicos e alternativos ao espetáculo. Em meio a uma das mais graves crises que enfrenta a festa, a criatividade torna-se fundamental. Materiais como o plástico e a palha ganharam espaço na confecção do carnaval da Santa Cruz, por conta de características como custo e praticidade.
“Se a gente não tiver criatividade e bom gosto na Série A, fica difícil. Estamos reciclando muita coisa. Eu estou trabalhando com materiais como pratos de festa, copos coloridos, canudos, espetos de churrasco, pá de sorvete para fazer máscaras… Ás vezes, passo na rua, vejo algum material alternativo, compro e faço um teste. Se der certo, eu compro mais . Estou usando algodãozinho com pintura de arte nos carros. Estou usando palha, forração com esteira em uma das alegorias. Estou usando até plástico, porque como está chovendo muito aqui dentro, a minha opção é usar plástico e carpete. O carpete chupa a água e não aparenta muito a mancha. E o plástico se sujar, passamos um pano e está limpo. São dois tipos de materiais práticos e de fácil limpeza”.
Entenda o desfile
Com o enredo “Ruth de Souza – Senhora liberdade. Abre as asas sobre nós!”, a Santa Cruz será a quarta escola a desfilar na sexta-feira de carnaval. A verde e branca levará ao todo 20 alas, 4 alegorias e 2200 componentes para a Sapucaí.
Setor 1: “Abrimos o carnaval falando do teatro, de quando ela começa a dar os primeiros passos como atriz, no teatro experimental do negro, com Abdias do Nascimento. E vamos até a sua estreia no palco do Theatro Municipal”.
Setor 2: “O segundo setor falamos da estreia dela no cinema. Ela desperta essa paixão pela sétima arte na infância, e depois mostra ela como uma atriz consagrada já”.
Setor 3: “O terceiro setor faz um passeio pelos personagens de novela da Ruth de Souza. O carro 3 é ‘A Cabana do Pai Tomás’, que é a novela na qual ela foi a primeira protagonista negra da televisão”.
Setor 4: “Nosso encerramento é a senhora mãe da liberdade, que abre as asas sobre nós. O último carro traz a mensagem do legado que a Ruth de Souza deixou. O setor mostra outros artistas negros, que estão hoje brilhando, devido às portas que a Ruth abriu”.