A Gaviões da Fiel traz um enredo reeditado de 1994. Sidnei França é o responsável pelo desenvolvimento do tema: “A saliva do santo e o Veneno da serpente”.
“Está sendo uma honra desenvolver esse trabalho. Na época foi um desfile com cara de campeã, a escola levantou o público e todos apostaram no título. Teve uma apuração muito conturbada, na época o carnaval de São Paulo não era tão profissionalizado como se é hoje, e parece que teve notas que sumiram e depois acharam. O jurado de samba-enredo deu nota seis de melodia pra o samba que era um dos mais cantados do ano. Ficou um clima estranho, e com essa nota seis a escola ficou na segunda colocação, e isso ficou meio que entalado na garganta. Quanto tivemos a ideia de resgatar o enredo, isso gerou um alvoroço na comunidade justamente por isso”, afirma.
O carnavalesco diz que poucos elementos do desfile original será usado e revela nova linguagem, principalmente no último setor.
“Muitas pessoas me perguntam se o desfile vai ser apresentado da mesma maneira, e eu sempre respondendo ‘não’. O enredo foi totalmente remodelado, até porque falar do tabaco, que deriva pro cigarro há 25 anos era uma coisa, hoje a sociedade está mais politizada. Fiz toda uma repaginação, respeitando a essência do samba mas não necessariamente o que foi mostrado em 94. Visualmente falando a escola mudou demais, os carros estão maiores, as fantasias mudaram, os materiais, e isso vai refletir pra quem for comparar o desfile de 2019 com o de 1994. Claro, eu escolhi pontos do desfile até pra homenagear o Raul Diniz, mas numa releitura repaginada. Por exemplo, em 94 a última alegoria era uma caveira, e isso significa que quem fuma está perto da morte. Eu não concordo com essa visão, em 2019 vai ter uma nova leitura, o final do desfile não faz um julgamento de ser certo ou errado fumar, a questão não é essa, cada pessoa é dona de si e é responsável pelas consequências dos seus atos. Eu deixei mais leve, colorido, conto a história do tabaco como ele é deixo as escolhas para cada pessoa”.
Sidnei França conta que ideia de reedição surgiu através de um diretor e revela que tema gerou polêmica.
“Desde o carnaval do ano passado já existia uma ideia de um grande carnaval em 2019 porque é o ano que os Gaviões faz 50 anos, queríamos um enredo que conseguisse agradar a escola com um sentido mais emocional. Um diretor me perguntou se a gente não poderia reeditar o enredo de 94, eu pensei e achei que daria um caldo legal. O presidente me perguntou se eu não teria medo do julgamento, eu até acreditava que poderia gerar uma polêmica, mas eu acho que os Gaviões tem uma linhagem de enfrentamento, ela é não é uma escola de fica em cima do muro, e eu acho que ele tinha que comprar briga e foi o que aconteceu. Algumas mídias comentaram que enredo era uma apologia ao fumo, incentivar as crianças, mas a gente não se abateu as críticas”.
Sobra a pesquisa, Sidnei ressalta que quantidade de informações sobre o tabaco foi o que mais lhe cativou.
“O que mais me chamou a atenção foi a capacidade desse tema de encantar. Falar do tabaco gera uma riqueza cultural, de signos e símbolos que o homem foi se apegando e o tabaco sempre esteve presente”.
Conheça o desfile
SETOR DE ABERTURA – Saliva do santo e o veneno da serpente
“A comissão de frente se auto-explica. Ela vai contar sobre uma lenda árabe que diz sobre um santo que viveu na época de Cristo. A família dele, fugindo do exército romano, foi para o norte da África, especificamente no Egito. Esse santo, chamado de Santo Antão, teria abdicado sua vida toda a percorrer a África levando a mensagem de Cristo, ele acreditava nesse conceito cristão. Já adulto encontrou uma serpente, maltratada, judiada, com sede, descamando, e a acolheu. Quando ela se restabeleceu, a serpente picou o braço desse santo, traiu a confiança dele. O santo assustado pela picada, jogou a cobra longe e chupou o veneno da cobra na mordida. No local que ele cuspiu esse veneno, surgiu um pé de tabaco. O enredo parte pra contar a história do tabaco através dessa lenda muito lúdica de como teria surgido o pé de tabaco no oriente, essa é a nossa comissão de frente”.
1°SETOR
“Aqui conta que muito tempo depois dessa lenda um árabe estaria percorrendo o mesmo local e encontrou um pé de tabaco. Curioso, porque ele era um grande conhecedor de ervas, pegou um pé e levou pra terra dele, e esse árabe é Maomé, fundador da religião muçulmana. Ele teria levado o tabaco para o oriente médio e ali se espalhou. A gente vai mostrar toda a suntuosidade dos templos árabes, os camelos, desertos, enfim. É o trecho que passou a comissão de frente até o abre-alas”.
2° SETOR
“É aqui que a gente vai contar que os gurus indianos pegaram o tabaco e desenvolveram uma cura, o primeiro uso da erva foi medicinal. Depois a gente conta que foram os árabes que levaram para a Europa o tabaco. Na Europa a gente mostra que foram os alquimistas da era medieval que acreditavam que o tabaco tivessem elementos que os levariam a encontrar a poção da eterna juventude. Temos os portugueses porque foi em Portugal que o tabaco virou rapé, nada mais é ele moído com algumas composições químicas, e foi constatado que em forma de pó ele ajuda a obstruir as artérias e também para curar dores de cabeça. E aí desenrola para o carro dois que é a alegoria da Rainha Catarina de Médici. Tinha um embaixador francês que ouviu dizer sobre a erva que curava dores de cabeça, e na época a rainha era muito famosa pelas dores de cabeças alucinantes, ela saia gritando no palácio, tacando objetos. A gente vai falar nesse carro que o embaixador francês levou para Paris o tabaco para rainha experimentar, e ela foi curada. Nós vamos mostrar no carro que em forma de gratidão ela deu um baile no palácio. Só que não para por ai, após a cura ela começou a ter uma nova fase no seu reinado. Sem as dores de cabeça, Catarina passou a ser mais ativa na sociedade, e ela era conhecida por ser enérgica, por não ter medo de mandar prender. Isso revoltou o povo que foi o começo do processo que culminou na queda das Bastilhas, a revolução francesa e a construção de uma nova França. Mesmo não intencional, ela ajudou no processo de criação de uma nova França. Esse carro mostra o baile e a construção de uma França nova”.
3° SETOR
“O terceiro setor se dedica a contar sobre a Bahia, quando o enredo cai no Brasil. A gente conta da velha Bahia, os pescadores, e que todos conhecem de uma forma lúdica. Foi nessa Bahia que chegou o tabaco, que no começo era vendido por escravos, e isso vai ser retratado na primeira ala. Nesse setor também temos as baianas que são as mães de santo, porque nos terreiros também se usa tabaco triturado como erva de purificação. O setor é encerrado com o terceiro carro que é o sincretismo religioso, a fé católica com o culto aos orixás. É um carro mais místico, religioso”.
4° SETOR
“Na penúltima parte do desfile a gente mostra como a mulher na sociedade buscou no cigarro uma forma de emancipação feminina. A mulher e o cigarro estiveram ligados no século 20 como uma forma de emponderamento, de mostrar que a mulher tem o direito de fazer o que quiser. Tem várias alas que mostram isso que estou falando. Também tem uma ala que homenageia a Rita Lee, que foi uma mulher que nunca escondeu que fumava e que sempre se mostrou a frente do tempo dela. O quarto carro é um cabaré, que mostra que a mulher é dona do seu corpo, das suas atitudes, e o cigarro sempre presente”.
5°SETOR
“Eu optei por uma linguagem muito mais leve e lúdica, ao invés de falar de câncer, morte. A gente fala desde a venda do cigarro, não da forma maço, mas antigamente numa época mais romântica em que as pessoas iam ao cinema de mãos dadas. Depois a gente mostra doces, porque toda pessoa viciada em cigarro tem um gosto por doces. Um cigarro acompanha um xícara de café, uma barra de chocolate, um chiclete, muitas vezes pra tirar o gosto da boca. É uma forma brincalhona de mostrar os doces acompanhamentos. Nesse setor vou ter uma ala de pessoas vestidas de juiz, uma ala metade preta e metade branca, eu quero mostrar que toda pessoa é dona das suas escolhas. Ela mostra através das cores que tudo tem o seus benefícios e os seus malefícios. A gente vai pra última ala que é o coração e o pulmão, porque o nosso samba termina cantando isso. Você é livre pra escolher o que faz da sua vida, só que tem que preservar a saúde. Então nós vamos para o carro da mente humana, que é um cérebro como parque de diversões mostrando como a mente é delirante, de como ela é entregue aos vícios, e precisamos ser fortes. A mente que busca o cigarro por prazer, só que a mente é delirante, ela te leva ao domínio mas tem horas que você perde o controle. O carro mostra de uma forma bem leve de como o vício faz você brincar com os sentidos”.
História do Sidnei França
“Desde os dois anos eu frequentava a Mocidade Alegre com a minha mãe, e até os 13 eu ia de uma forma descompromissada. Com 14 anos passei a desfilar e, quando a presidente Solange assumiu a presidência, eu comecei a fazer parte da diretoria como Diretor Cultural. Nesse cargo passava a assessorar o antigo carnavalesco nas pesquisas e criação, e com isso eu fui me aproximando cada vez mais. De 2003 e 2008 eu desempenhei esse papel, e quando o carnavalesco saiu da escola a Solange me convidou a integrar a comissão de carnaval, e essa é o começo da minha história como carnavalesco.Meu primeiro desfile que assinei foi em 2009 e, junto à comissão, trouxemos o título. Fiquei até 2016 na Mocidade Alegre, no ano de 2017 aceitei o convite da Vila Maria pra fazer o carnaval sobre os 300 anos do achado da imagem de Nossa Senhora Aparecida, que também foi um presente. E em 2018 eu aceitei o convite dos Gaviões, quando eu desenvolvi o enredo “Guarus”, que era um tema patrocinado. Mas eu busquei uma outra linguagem, não ser folhetinho político, e busquei uma linha mais mitológica sobre os índios Tupi. E continuo aqui com um grande presente na minha trajetória que é poder reeditar um enredo clássico como esse”.