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Africanidade e papel da escola de samba na sociedade é destaque em aulas do 1º Simpósio de Enredos – São Paulo

Aulas, ministrada por Renan Ribeiro e Fábio Gouveia, versaram sobre aspectos pertinentes ao público que interage com instituições

Carnavalescos de duas das principais escolas de samba do carnaval paulistano deram aulas no 1º Simpósio de Enredos – São Paulo, organizado pela Faculdade Centro Sul-Brasileiro de Pesquisa, Extensão e Pós-Graduação (CENSUPEG) e realizado no Centro Cultural Olido, no último sábado (22). Renan Ribeiro, do Camisa Verde e Branco, e Fábio Gouveia, da Nenê de Vila Matilde, abordaram focos distintos sobre a concepção de uma temática a ser abordada em um desfile. Em comum, além de temas relacionados ao enredo carnavalesco, duas concepções que, além de importantíssimas para escolas de samba, também versam sobre comunidades no geral.

Mais que desfiles

A primeira aula, ministrada por Renan Ribeiro, teve como tema “A relação entre o enredo e a função social da escola de samba”. Abordando, entre outros pontos, o quanto a comunidade é fundamental para uma agremiação obter bons resultados e ter aderência em uma região em um círculo vicioso benéfico, ele começou a abordagem contando a própria história, iniciada na Zona Leste de São Paulo.

Colocando-se como parte de tal relação entre comunidade e instituição, o carnavalesco recorda a própria infância. “Minha escola-mãe é a Nenê de Vila Matilde, e foi lá que eu aprendi como uma escola de samba se relaciona com o seu povo. Tive a sorte de nascer a um quarteirão da escola, e isso me deu essa vivência desde o início, indo escondido, na ala das crianças, em 1997. Desde então eu via como a escola se relacionava com o seu entorno. Fui ritmista, mestre-sala e percorria a escola me metendo em qualquer assunto porque não tinha o que fazer em casa e vivia na quadra”, comentou. Há espaço, também, para certo lamento em verificar que tal situação, hoje, mudou consideravelmente – tal qual a própria sociedade. “Hoje, poucas escolas ainda mantêm com muita firmeza isso. Até existe, mas de forma muito mais superficial – e as comunidades se modificaram muito nesses últimos períodos”, destacou.

Exemplificando o que dizia, o professor deu detalhes sobre como a Nenê estava inserida na infância. “Todo mundo que desfilava na escola era matildense não ser por ser torcedor da Nenê, mas por morar na Vila Matilde. Isso tinha uma relação afetiva não só para defender a águia e as cores, mas para defender o seu povo. Era para defender o primo que estava na ala da frente, a sua mãe que era da ala das baianas, a prima que era passista, outra pessoa que estava em cima de um carro. Tinha essa conotação muito familiar”, pontuou.

A família, por sinal, rendeu uma situação bastante curiosa na vida de Renan – que, inclusive, o une à atual escola defendida por ele. “Meu pai era Camisa Verde e Branco, ritmista da Furiosa na década de 1980, com o mestre Divino. Ele falava que eu era Nenê porque eu tinha preguiça de pegar o metrô até o final da linha. Isso é muito o espelho da boa rivalidade que existia entre Nenê, Camisa, Vai-Vai e Unidos do Peruche, por exemplo. Foi nesse momento que eu comecei a me interessar pelo quanto o carnaval tinha relações orgânicas”, relatou. Explica-se: a Vila Matilde, bairro da Nenê, fica na Zona Leste de São Paulo, sede de uma das estações da Linha Vermelha do metrô – que, no lado oposto, tem Palmeiras-Barra Funda como estação final, no distrito onde está o Trevo.

Escola de samba em São Paulo e no Brasil

Extrapolando os limites da maior cidade da América do Sul, o professor buscou conceituar o que é uma agremiação carnavalesca, na visão dele. “A escola de samba passou a ser objeto de entendimento como se fosse a célula de um brasileiro, que reúne o poeta que floreia algumas coisas absurdas e a diretora que xinga com a mesma facilidade. Lá é uma zona de paz que convivem prostitutas, evangélicos, macumbeiros, advogados e ladrões de forma muito comum. Todo mundo lá convive com ideias que são muito diferentes porta afora”, detalhou.

Para complementar o pensamento, ele buscou comentar o motivo pelo qual uma agremiação existe. “A escola de samba nasce para dar voz a vozes que falavam e ninguém escutava, para jogar luz em assuntos que ninguém debatia, para mostrar um formato narrativo e de comunicação que pertenciam a pessoas que não tinham acesso à comunicação em larga escala”, comentou.

Para ilustrar de maneira ainda mais completa, uma metáfora foi feita para os alunos. “Um perfume só existe para ser cheirado: se você tira a essência de um perfume, ele não é nada. A essência de uma escola é exatamente a mesma coisa, e a essência de uma escola de samba é a mesma coisa. Essa essência é se comunicar com aqueles que vão participar disso, que produzem e vão degustar isso. Se você tira essa essência, ela deixa de ter motivo para existir e se torna aleatório. O discurso se torna vazio e o desfile se torna desconectado com quem assiste, com quem consome e com quem desfila”, comparou.

Os limites da cidade, entretanto, voltaram a aparecer em outros momentos da apresentação. No primeiro deles, aproveitando um dos tantos ganchos deixados por Sidnei França em aula anterior, ele voltou a relembrar a infância. “Cresci vendo debates de enredo na TV Manchete, e esse universo era distante do carnaval paulistano. A relação das duas cidades com as escolas de samba é muito diferente”, pontuou, ao comparar agremiações carnavalescas nas duas maiores cidades do país.

Invisíveis

Ainda falando da Terra da Garoa, o professor entrou no desfile carnavalizado por ele, com o nome que abre o intertítulo. O vice-campeonato garantiu ao Camisa Verde e Branco, quarto maior campeão do carnaval paulistano, com nove títulos, o retorno ao Grupo Especial – onde, em 2024, não desfilava há doze anos. A constituição do Grupo de Acesso I em 2023 foi o norte para a fala. “O Acesso I em 2023 tinha Vai-Vai, Nenê, X-9 Paulistana… todos estavam de olho, era, até certo ponto, nostálgico. Quando eu, irrequieto, propus esse enredo para a presidente (Erica Ferro), ela me perguntou se não mexeríamos com pessoas que não gostariam tanto assim desse enredo. Foi pensando nessa confusão que eu pensei. Isso, para mim, é a escola de samba funcionando como deveria funcionar: para provocar, para falar sobre coisas que ninguém queria falar”, resumiu.

Aproveitando para criticar a quase obrigatoriedade de visuais luxuosos no atual momento da folia paulistana, Renan relembra a reação de quem viu as alegorias do Trevo na concentração do Anhembi. “Quando o Camisa chega no terreno, com uma estética que não era bonita aos olhos do carnaval de São Paulo, viciado em placas e espelhos, eu sou queimado em praça público. Isso, para mim, é um orgasmo. Não gosto de carro alegórico grande, mas somos condenados a utilizar aqueles trambolhos. Se não fazemos isso, é como se a gente não soubesse fazer. E eu começo o desfile com uma favela com uma porta do tamanho de uma porta e uma janela com tamanho de janela. Eu acho ruim quando o carro é grotesco, gigantesco, paredes imensas e as pessoas se tornam uns pingentinhos”, ironizou.

Por fim, ele próprio deu deixas do processo criativo para cada desfile idealizado por ele. “Eu sou muito angustiado, minha cabeça é caótica. Eu começo a entender qual o papel de um carnavalesco e começo a mirar nisso: um dia, quero criar algo e fazer com quem as pessoas entendam como eu entendo o que chega na minha cabeça”, finalizou.

Viagem pela história

A aula seguinte foi ministrada por Fábio Gouveia, carnavalesco da Nenê de Vila Matilde desde 2022. Intitulada “Ancestralidade e oralidade dos enredos afros paulistanos. A construção de uma identidade pautada na herança cultural”, além de falar sobre questões ligadas também aos sambas-enredo, ele aproveitou para cutucar quem acompanha a folia de longe e critica temáticas africanas. “Compro brigas porque sempre tem o cara da internet que vai falar que tem mais um enredo afro. Graças a Exu! Mesmo com tudo que o povo preto passou, não perdemos o nosso intelecto, que é como temos que ser vistos”, riu, provocando palmas dos alunos.

Defendendo as canções de temas afro, o professor explicou os motivos pelos quais melodias e ritmos significam tanto. “O samba tem a força e o poder de acolher e trazer, mas as pessoas não pensam muito assim. Mas isso é do povo preto e da nossa história. A oralidade está muito inserida no povo africano, nas raízes e na forma de se expressar em comunidade. Está muito além das escritas”, destacou.

A dinâmica da aula, entretanto, foi distinta. O professor escolheu cinco desfiles (e, consequentemente, sambas-enredo) marcantes com temáticas afro para abordar como cada um deles pontuou a negritude – e, em outro plano, aproveitar para traçar um paralelo de acordo com a cronologia. “Escolhi enredos para que entendam como o enredo afro em São Paulo se comporta, como ele se apresenta. Vejo muitas diferenças entre São Paulo e Rio de Janeiro em como eles tratam enredos afros, a forma como as histórias são conduzidas”, explicou.

O primeiro deles foi Casa Grande e Senzala, que concedeu o primeiro título à Nenê de Vila Matilde e concebido por Antônio Protestato. “A aruanda chegou! Enquanto negros sofrem na senzala, eles dividem o conhecimento de forma ancestral – algo que é muito da escola, a ancestralidade da Nenê, sem perder a esperança. É o primeiro samba-enredo do carnaval paulistano”, relembrou.

Em 1982, o Camisa Verde e Branco apresentou “Negros Maravilhosos – Mutuo Mundo Kitoko”. Vice-campeão, o Trevo da Barra Funda “queria lutar contra o fato de que não devemos ser vistos como escravizados, sofridos e como gente que perdeu tudo no caminho”, afirmou Fábio, em apresentação idealizada por Augusto Henrique Alves e o histórico ex-presidente Carlos Alberto Tobias. “O tempo todo, esses dois desfiles deixam claro que os pretos não são o que a história conta: somos algo muito antes disso”, disse.

A viagem cronológica seguiu até 1989, em um clássico desfile do carnaval paulistano. Com Joãosinho Trinta como carnavalesco e Jamelão como intérprete, a Unidos do Peruche cantou “Os Sete Tronos dos Divinos Orixás”, abocanhando o vice-campeonato. “Nós nos encontramos com a religiosidade como enfrentamento naquele tempo. Como aquela plateia e aquelas pessoas escondem, não querem falar e não querem entender. É um samba que pede licença e respeito àquela religiosidade e respeito”, pontuou Fábio, destacando a letra de um dos sambas tidos como dos melhores de todos os tempos no carnaval da cidade de São Paulo.

O penúltimo ponto da viagem foi 2012, quando a Mocidade Alegre apresentou “Ojuobá – No Céu, os Olhos do Rei… Na Terra, a Morada dos Milagres… No Coração, Um Obá Muito Amado!”, que garantiu o título para a Morada do Samba em desfile concebido por Márcio Gonçalves e Sidnei França. “O desfile de 2012 da Mocidade Alegre é, para mim, o carnaval mais completo na apresentação ao contar uma história, uma homenagem, uma profecia sobre a cabeça de um homem que contaria a nossa própria história de maneira clara e coerente: Jorge Amado”, revelou o professor.

Nenê e representação de negritude

O último desfile escolhido pelo professor foi, novamente, outro da Nenê de Vila Matilde. Em 2022, no Acesso II, a escola da Zona Leste reeditou Narciso Negro, concebido em 1997 por Tito Arantes e revisitado pelo próprio Fábio Gouveia. Antes de falar sobre a exibição em si, ele aproveitou para falar sobre como se vê na agremiação em um contexto histórico tão delicado, com a Águia Guerreira no terceiro pelotão do carnaval paulistano. “A Nenê é a escola que me permite ser quem eu sou, fazer os enredos que eu quero e desejo fazer. A Nenê sempre esteve à frente do seu tempo, errando ou fazendo, a escola sempre quis ousar e fazer um carnaval diferente. A Nenê sempre foi a vanguarda de muita coisa no carnaval. Tanto que você olha e vê que não há dor, sofrimento ou escravização do povo preto. Existe a exaltação de um povo, de uma luta, de uma tradição que precisa ser respeitada. O negro sempre está coroado diante de todo o povo: nós estamos aqui. E o encontro com o Narciso Negro faz parte desse reencontro da escola com a comunidade – e, quando ela foge disso, ela começa a se perder”, pontuou.

Revelando uma trilogia iniciada em 2022, ele aproveitou para falar do desfile de 2023, que ficou na terceira colocação do Acesso – deixando de conquistar o segundo acesso consecutivo por um único décimo. “Faraó Bahia nada mais é que a continuação de tudo isso, das histórias do nosso povo, mas de uma outra maneira. Por trás da música, existe muito mais e além que um hit de carnaval. Fala do empoderamento desse povo, da construção e identidade deles. A música fala de como esse povo tomou o seu lugar de direito”, afirmou, relembrando a música que serviu de inspiração para o desfile.

Por fim, em 2024, quando a escola apresentará o enredo “Cirandando a vida pra lá e pra cá. Sou Lia, Sou Nenê, Sou de Itamaracá” e encerrará a trilogia particular, Fábio aproveitou para revelar em qual contexto a temática é importante para a agremiação da Zona Leste. “Nessa trilogia, vamos à coroação de tudo isso, que é Lia de Itamaracá. É a história da minha mãe, da mãe de muitos aqui, das mães da Nenê de Vila Matilde. É a história de luta da mulher social preta para construir a própria história”, finalizou.

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