A Beija-Flor de Nilópolis, atual vice-campeã do Grupo Especial do Rio de Janeiro, divulgou algumas fantasias de alas comerciais e de comunidade para o Carnaval 2023. Novamente, a azul e branco prepara um enredo de forte apelo popular e com pegada crítica. A escola pretende levar para a avenida um novo olhar sobre a Independência do Brasil, através do enredo: “Brava Gente! O grito dos excluídos no bicentenário da Independência”, de autoria dos carnavalescos Alexandre Louzada e André Rodrigues.
Ameaça vermelha (ala de comunidade): Em dois momentos distintos de nossa história, em 1937 e 1964, setores conservadores da sociedade brasileira fizeram do medo o combustível para justificar intervenções autoritárias que romperam com as garantias constitucionais e instituíram regimes de exceção. Não à toa, nos dois momentos, teorias conspiratórias sobre uma ameaça comunista no Brasil ganharam força com o objetivo de criar na população temor e insegurança. Mobilizando valores, crenças e ideias construíram uma representação que se disseminou acerca do comunismo e legitimou ações violentas. Sendo um país forjado na desigualdade e erguido, em seus pilares, para manutenção desta, uma corrente ideológica que defende a transformação social entra em choque com o sentido desta nação, com a sua lógica fundante, sua razão de ser. O anticomunismo se enraizou graças à ação de órgãos estatais e entidades privadas que o disseminaram com forte apoio e adesão de setores conservadores da sociedade como, por exemplo, a Igreja e os militares. Tanto no Estado Novo quanto na Ditadura civil-militar o que se viu foram intervenções arbitrárias que cercearam direitos duramente conquistados para evitar uma ‘ameaça vermelha’ que nunca esteve próxima de se concretizar. Assim, ainda hoje, em momentos de crise ou instabilidade política institucional, o fantasma de um ‘perigo vermelho’ é acionado para legitimar medidas autoritárias, excludentes e antidemocráticas. A grande ironia é que a justificativa da implantação destes dois períodos ditatoriais foi uma suposta defesa do regime democrático.
República da espada e do coturno (ala comercial): Se o tripé que sustentava o Império brasileiro era composto pela relação monarquia-latifúndio-escravidão, não surpreende perceber que com a abolição da escravatura em 1888, as oligarquias latifundiárias descontentes retiram seu apoio a monarquia e, no ano seguinte, é proclamada a República que decreta o banimento da família imperial do território brasileiro. A República no Brasil já nasceu velha, restringindo a cidadania a poucos e protagonizada por militares. É neste período, da Primeira República, que se consolida o projeto de nação iniciado no Império em suas características principais: a exclusão, a desigualdade e o autoritarismo. Operando através da construção de símbolos, o movimento republicano irá forjar uma ideia de Brasil que terá êxito na promoção dos seus valores. O país do futuro que silencia as mazelas do passado e as agruras do presente. O lema da bandeira nacional tem inspiração positivista. O progresso foi pensado como consequência da manutenção da ordem. Esta ordem, no Brasil, foi mantida através da violência, a partir da ação autoritária do Estado em um país desigual desde o seu alvorecer. Em nome da ordem e para manutenção da desigualdade, brasileiros e brasileiras sangraram nos sertões, nas florestas, campos e cidades. Eis a nossa República.
Quem tem fome, tem pressa (ala de comunidade): A miséria, a extrema pobreza e a fome são sintomas do caráter desigual e excludente da formação nacional. Desde a colonização, o modelo econômico e social imposto em nosso território produziu a escassez e a insegurança alimentar. A brutal concentração de terras, o sistema escravista e a prioridade para exportação são algumas das raízes desta mazela. Este gigante de dimensões coloniais, onde a produção de alimentos bate recorde, ano após ano, também é o país onde o flagelo da fome é fato histórico. Uma nação verdadeiramente independente não pode conviver com a fome. Enquanto no ano de 2014 comemoramos o fato do país ter saído do Mapa da Fome da ONU; hoje, dados do Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19 no Brasil apontam que mais de 33 milhões de brasileiros não têm garantido o que comer, vivendo em situação de insegurança alimentar. O combate à fome no Brasil é uma luta histórica pela preservação da própria vida daqueles e daquelas condenados à carestia. A sociedade civil organizada é protagonista na denúncia, na mobilização, no enfrentamento e na conscientização em prol da conquista de políticas públicas que promovam a diminuição da pobreza. O objetivo primordial é garantir a todos os brasileiros e brasileiras o acesso a alimentação saudável, nutritiva e suficiente. Quem tem fome, tem pressa.
Indígenas na luta pela terra (ala comercial): Em luta pelo seu direito originário desde a invasão colonial, as comunidades, os povos e nações indígenas conquistaram, através de ampla mobilização e organização coletiva, o reconhecimento desse direito na Constituição de 1988. Embora previsto em lei, a luta pela demarcação das terras indígenas segue sendo uma pauta fundamental em um contexto político de avanço do desmatamento, do agronegócio e da captura do Estado por estes interesses comerciais e produtivistas. A articulação dos povos indígenas têm marchado contra as duras investidas que ainda sofrem não apenas através de projetos de leis que autorizam, por exemplo, o garimpo em seus territórios mas também pela forte violência armada durante essas atividades e as invasões que ainda ocorrem nas poucas áreas demarcadas. Eles bradam, em alto e bom som, em defesa do direito fundamental dessas nações na busca de liberdade e autonomia: NÃO AO MARCO TEMPORAL! Indígenas são entraves aos interesses monopolistas dos latifundiários da burguesia agrária. Além de seus saberes ancestrais, tecnologias e formas de vida que desafiam a lógica castradora e uniformizante do Estado nacional, estabelecem uma relação com a terra que não é econômica; muito pelo contrário: a terra é fonte significativa da sua experiência comunitária. Possuem uma imensa diversidade sociocultural e linguística que insistem em preservar em um cenário de epistemicídio de todos os modos de conhecimento para além do paradigma ocidental judaico-cristão.
Ode aos “Botocudos” (ala de comunidade): Indígenas integrantes do complexo Macro-jê, os “botocudos” são caçadores e coletores seminômades que cultivam a crença nos espíritos encantados dos mortos. Seus hábitos e modos de vida foram classificados pelo olhar eurocêntrico do colonizador, desde o primeiro contato, como obstáculos a um projeto civilizatório homogeneizador e violento. No ano de 1808, assim que a Corte Portuguesa chegou ao país, Dom João declarou uma guerra ofensiva aos chamados botocudos que só seria revogada em 1831. O que justificava esta medida e a guerra que se instaurou era o interesse nas terras. No século XIX, eles ocuparam os sertões de Minas Gerais e do Espírito Santo, na região dos rios Doce, Mucuri e Jequitinhonha, lugar cobiçado no roteiro de expansão econômica que tinha justamente na questão fundiária uma pauta decisiva. Mesmo durante as guerras da independência, os conflitos entre as tropas do nascente Império brasileiro e os indígenas não cessaram. No alvorecer de um Brasil emancipado de Portugal, indígenas, filhos desta terra, foram combatidos como inimigos da nação a se construir. Em 1824 os “botocudos” realizam um cerco na cidade de Vitória em um episódio emblemático de insubmissão em um contexto violento onde a própria existência desta nação indígena estava em jogo. Reconhecemos sua altivez e bravura através de diferentes táticas e estratégias em uma saga de resistência heróica. Fazemos aqui nossa ode a estes heróis da terra.
O sonho de liberdade Malê (ala de comunidade): Permeava o imaginário de todos os cativos, o sonho da liberdade. Após o grito de 1822, não compreendia-se a tal Independência com tantos ainda presos e forçados ao trabalho, sustentando sob a barbárie os alicerces do “progresso” desta terra. A manutenção da escravidão estava nas letras miúdas deste pacto mentiroso. A tensão dos escravizados explodia por vários cantos do Brasil. Salvador, que entre escravizados e libertos, tinha 78% da população composta por afrodescendentes, foi palco de diversas rebeliões negras sendo a mais significativa dentre estas a Revolta dos Malês. Um protesto coletivo, um levante, uma rebelião que, embora tenha sido rapidamente controlada, estremeceu a classe senhorial em seu temor de um novo Haiti. Este movimento pode ser compreendido a partir de uma combinação sui generis de três elementos: pertencimento étnico, condição de classe e religião. Os malês eram negros muçulmanos de origem iorubá – nagôs, haussás, ewes e etc. – e esta identidade étnica e religiosa se articulava a condição de classe: a maior parte dos revoltosos eram escravizados. Mesmo os revoltosos libertos, compunham o estrato mais baixo da pirâmide social. Nas reuniões de mobilização havia a leitura e a memorização de passagens do Alcorão. Partilhavam coletivamente a crença no poder protetor de amuletos. Os filhos de Alá na Bahia ensejaram transformar radicalmente a sua realidade e embora não tenham sido vitoriosos, os malês legaram heranças históricas e culturais até hoje presentes em nosso cotidiano, mas, acima de tudo, nos ensinaram, através de sua experiência, a importância da organização coletiva para os nossos anseios de liberdade, por isso um retrato glorioso em nosso ato, aos que vieram antes e lutaram. Vestir-nos de Malê é incorporar seus sonhos, mesmo que marginalizados em um projeto de sociedade.