O segundo ano dos carnavalescos Renato Lage e Márcia Lage no comando do carnaval da Portela promete ser repleto de simbolismo, força e ancestralidade. Através do enredo “Igi Osé Baobá”, a dupla pretende contar a história do Baobá, árvore sagrada africana relacionada à sobrevivência, sabedoria, ancestralidade e resistência. No carnaval de 2020, a Portela fechou a primeira noite de desfiles e realizou uma apresentação muito elogiada plasticamente, porém, erros na abertura da escola tiraram a chance da volta no desfile das campeãs após uma longa sequência de bons resultados, para esse ano, a azul e branca de Madureira quer voltar a estar entre as seis melhores escolas colocadas. No meio da turbulência que é o último mês de preparação antes do desfile, Márcia recebeu a reportagem do CARNAVALESCO no barracão para questionamentos e falou sobre como o enredo surgiu.
“O enredo surgiu por parte da escola, o Fábio Pavão (vice-presidente), que é o historiador, junto com a comissão de carnaval, desenvolveram essa pesquisa e nos ofertaram essa possibilidade de falar do Baobá, até porque na época do surgimento desse enredo houve todo um movimento de enredos afros, acho que muito motivado pelo caso do americano George Floyd. Surgiu assim uma vontade de fazer um movimento em prol da causa, a partir daí nós pegamos toda essa parte histórica e compilamos para que isso coubesse em cinco setores”, conta Márcia.
Após 50 anos, o portelense poderá cantar na avenida um enredo de temática africana e a escolha pelo Baobá não poderia se mostrar mais acertada, a árvore possui múltiplos significados, está ligada à ancestralidade, tem ligação com a religiosidade, é chamada de árvore sagrada , fornece alimento para a fauna e populações que vivem ao seu redor, além da resistência, já que os escravos trouxeram suas sementes para o Brasil como forma de ligação com sua terra natal. Assim como o Baobá, a Portela é uma escola com raízes profundas.
“Durante a pesquisa o mais interessante foi ver que apesar de toda mazela, de toda dificuldade, a essência, a realeza que está na alma deles, a cultura e o que viveram lá, não naufragou, nem com o tempo, nem com a dureza com que eles atravessaram. Eles eram povos que tinham príncipes, uma sociedade desenvolvida, e foram realmente dizimados, arrancados daquele pertencimento para virem aqui serem tratados como animais, mas lá na alma, no fundo, o orgulho ficou, eles não sucumbiram, e isso é o melhor que a gente encontra, não é pra justificar, nem pra suavizar, mas eles são incríveis, na dança, na música, na religiosidade, na culinária, é muito rico, é muita informação importante que nos foi deixado”, destaca a carnavalesca.
Nos últimos carnavais o quesito comissão de frente tem sido o calcanhar de aquiles da Portela, nem mesmo quando foi campeã, em 2017, a azul e branca gabaritou o quesito, feito esse que não ocorre há mais de 20 anos. Para o próximo ano, a carnavalesca Márcia Lage conta que todos os esforços estão sendo feitos para que a comissão se destaque e seja o grande trunfo da escola.
“Espero que esse ano seja o ano da comissão, a gente aguarda ansioso para tirar esse estigma de uma comissão que não pontua, sinceramente estou esperando que esse ano venha, inclusive, eu estou cuidando pessoalmente para que dê tudo certo, os figurinos estão sendo feitos aqui no barracão, então a gente tá sempre dando uma supervisão, to metendo a mão na cola, enfim, todo esforço necessário para que a gente consiga pontuar”, conta Márcia.
Adiamento dos desfiles
A pandemia de covid-19 pegou todos de surpresa no ano de 2020 e com isso impossibilitou a realização dos desfiles no ano seguinte, o pré carnaval deste ano foi marcado pela incerteza. Para a reportagem do site CARNAVALESCO, Márcia comenta como foi para ela esse adiamento e como afetou a preparação da Portela para o desfile.
“Estávamos com o sangue fervendo para apresentar em fevereiro, mas aí surgiu o adiamento, o tempo é o tempo, para carnaval o tempo nunca é muito, sempre é pouco, teve o adiamento, entramos naquele momento de relaxamento, se disser que facilitou é uma verdade, mas às vezes aquela cochilada depois do almoço faz com que você perca o pique, nós demos uma cochilada natural, houve um delay, mas o tempo corre, falta um mês só, quando ver já está o desfile batendo na porta. Foi bom? Sim, mas nós estávamos preparados para terminar o carnaval em fevereiro, mas aí veio a bomba do adiamento”, conta a carnavalesca.
O trabalho na Portela seguiu dentro do planejado mesmo após o adiamento, porém, como dito por Márcia, o relaxamento foi natural, houve também a questão financeira, problema que a maioria das escolas enfrentam nos últimos anos.
“Tudo foi postergado, a entrada da grana que entraria em fevereiro agora vai ser só em abril, sinceramente acho que como mês não combina, perdemos o calor do verão, perde-se público, muitos se programam para tirar férias em fevereiro, o emprego não vai te dar férias novamente para você vir para a folia, quem gosta mesmo do carnaval perdeu um pouco, foi confuso, em fevereiro, nos dias do carnaval, tivemos um evento enorme na Cidade do Samba, então é um negócio meio cabuloso, adiou mas teve e muita gente foi, pra mim ficou meio estranho e ao mesmo tempo eu não acho que facilitou a preparação, eram todos ensaiando, até que veio o balde de água fria. O desejo de ficar naquela última semana limpando carro ou vendo só ajustes finais deixou de acontecer há muito tempo, estamos sempre correndo contra o tempo, isso não é culpa da Portela, o carnaval tomou um tamanho muito grande”, pontua Márcia.
Proposta visual do desfile
A plástica da Portela promete ser extremamente elegante, mesmo com um enredo africano, em que os tons mais escuros costumam ganhar destaque, Márcia garante que os tons da escola estarão presentes em todos os setores, a escola perpassa pelo azul branco e ouro, as cores quentes farão parte do desfile, porém, não é nada que choque, já que a ideia do desfile é mostrar a força de um povo e não suas mazelas.
“Como o portelense adora azul e branco, eu acho que eles vão se identificar com o abre-alas e com o último carro, que são os que mais tem as cores da Portela. Vamos esquentar a escola com tons terrosos, até porque remete a essa questão da árvore, da raiz, mas podem esperar uma escola bastante elegante, até como fantasia em tudo, não pegamos o lado mais doloroso, o objetivo principal é mostrar a força desse povo que veio pra como escravo, mas veio em pé, a força, o conhecimento e a realiza não se destruiu, podem ter tentado, mas está dentro ainda, isso ninguém tira.
Motivo de orgulho para todo portelense, a águia da escola promete ser tradicional, como de habitual, ela vem na abertura da escola e a carnavalesca afirma que ela terá detalhes africanos. Mesmo notabilizados por desfiles contemporâneos e de visual high-tech, Renato e Márcia fizeram carnavais primorosos usando a temática africana, público e crítica sempre aplaudiram seus trabalhos, principalmente no Salgueiro com os enredos Candaces, de 2007, e o Tambor, campeão em 2009.
“Eu acho que mais uma vez nós vamos conquistar o público e crítica, sem falsa modéstia, ao meu ver o trabalho está muito bom e vai surpreender, tem diferença fazer um afro numa escola de cor quente, tudo corrobora, a paleta é quente, tudo remete a calor, a coisa solar, outra coisa é fazer afro numa escola de tons frios, é uma coisa que devemos esquentar, mas sem perder a mão, sem virar Salgueiro, não pode Salgueirar aqui dentro, mas fica elegante, pelo o que vejo dos portelenses, eles estão felizes com que estão vendo”, conta a carnavalesca.
Entenda o desfile
A Portela será a segunda escola a entrar na avenida no dia 23 de abril, sábado, pelo Grupo Especial. A azul e branca buscará o seu 23º campeonato, e para isso contará com 28 alas e 5 carros alegóricos em seu desfile.
Setor 1: “A gente abre falando da sacralidade, que é a importância do ritual, da conexão da árvore, do aspecto simbólico da árvore, dessa conexão que ela faz entre o céu e a terra, com os orixás, toda essa parte envolvida nessa conexão espiritual. é um setor que a gente vem branco, ouro e azul”.
Setor 2: “O segundo setor entra na árvore como um elemento vital, que não só alimenta a vida dos humanos ali, mas ainda prossegue neste ritual de alimentar o espírito, da sabedoria, porque ela dá fruto, ela é reservatório de água, então ali você tem a árvore nesse simbólico do alimento e da vida material”.
Setor 3: “No terceiro setor a gente entra com a savana, que é uma vida importante dentro desse universo africano, até porque muitos dos símbolos desses animais, os dentes por exemplo, estão intrínsecos na cultura deles e nos rituais também”.
Setor 4: “Nesse setor a gente segue para a parte mais densa do enredo, é o navio negreiro, que é árvore tombada lá, que vem como um navio trazendo os escravos, mas atravessa, porém fecunda, as sementes vem pra cá e fecundam em forma de samba, de manifestação artística e cultural”.
Setor 5:”O último setor é uma ode ao samba, ao maracatu, todas essas expressões musicais de danças oriundas de influência afro”.