O carnaval de 1997 marcou a história dos desfiles pelo big bang provocado pela arrebatadora vitória de Joãozinho Trinta, embalada pela paradinha funk do saudoso Mestre Jorjão. A comunidade do Barreto, enfim, pôde gritar “somos campeões!” pela primeira vez na elite das escolas cariocas, feito que só se repetiria este ano, 2020.

Contudo, o sonho do primeiro campeonato já era parte constituinte da Acadêmicos do Grande Rio, que, embalada nele, contou com o inexorável Alexandre Louzada para narrar o enredo “Madeira-Mamoré, a volta dos que não foram lá no Guaporé”. É importante ressaltar a importância da narrativa carnavalesca delineada por Mestre Louzada na parte da perspectiva dos silenciados, daqueles que em nenhum momento tiveram voz para contar a sua versão da construção da estrada de ferro Madeira-Mamoré, inaugurada em 1912, ligando Porto Velho a Guajará-Mirim no estado de Rondônia, marco da história brasileira no tempo presente e justificada pela necessidade do escoamento de borracha e outras riquezas da região. Ademais, o enredo liga a estrada de ferro a Rondônia, destacando uma conexão entre o tema proposto diretamente pela narrativa do enredo e o estado no qual a estrada se encontra, intercambiando-se as duas perspectivas.

A empreitada, impossível para muitos, foi marcada pela investida contra floresta na tentativa de vencer inúmeros obstáculos que se colocavam no caminho desta grande construção. Obviamente, os trabalhadores que sofreram e testemunharam uma realidade obscura e triste ainda pousam por lá, muitos nunca tendo conseguido voltar para suas terras de origem. A ferrovia, na ocasião, representava a modernidade e inseria a região em uma aura de civilização moderna, como pode ser vista na obra do cordelista Doca Brandão:

E com a ferrovia inaugurada (1912),
A alegria era sem fim,
Pois levava gente e produtos
De Santo Antônio á Guajará-Mirim…[sic]
366 quilômetros
De selva amazônica vencida,
A região se desenvolve,
Tudo é impulso de vida…
Porto Velho vira Município (1914),
Guapindaia é seu Superintendente,
Vão surgindo novos bairros,
E o município atrai mais gente…
Porto Velho torna-se Cidade (1919), Cidade muito faceira,
É a mais desenvolvida
Das margens do Rio Madeira…, (…) (BRANDÃO, sem data, pp. 23-25)

Sinônimo de progresso, a estrada de ferro esconde segredos que a escola de Caxias se propôs a desvendar. Como dito anteriormente, aqueles que não viveram para contar sua história voltam e, em uma viagem delirante, os perigos e as dificuldades vividas pelos trabalhadores que sucumbiram ganham voz para contar o enredo da Grande Rio, proposta que também diz respeito ao resgate da memória do povo brasileiro. Uma perigosa viagem embebida de magia começou em Duque de Caxias.

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A “Ferrovia do Diabo” materializa-se já na fantasia da comissão de frente, toda em prata, futurística e com detalhes vermelhos. No abre-alas, a locomotiva surge construída para impactar com uma iluminação frenética de neon remetendo à velocidade do progresso avassalador, o que resulta em uma espécie de suspensão e fuga do real que fora prometida pela escola proposta baseada no delírio recortado pelo enredo.

Como não poderia ser diferente, variados povos indígenas ganham espaço logo após a primeira alegoria, evidenciando que os reais donos da terra foram dizimados para
que os dormentes fossem instalados e abrissem caminho para o progresso.

A proposta de uma viagem onírica se traça em paralelo a fantasias mais clássicas, distanciando a agremiação de sua proposta inicial delirante. Fato este que pode ser percebido nas fantasias e alegoria que remetem ao Tratado de Petrópolis, mencionado no samba. E por falar em samba, o hino de 1997 era uma das grandes apostas da agremiação para emplacar seu primeiro campeonato. Embora elogiado pela crítica, o mesmo “não aconteceu” durante o desfile, de acordo com aa vozes que o narraram e os olhos que o viram, mas figura entre os grandes sambas que já passaram pela Marquês de Sapucaí de acordo com Hiram Araújo , em seu livro “Carnaval, Seis Milênios de História”. Todavia as notas atribuídas ao samba-enredo não fizeram jus a sua afamada pretensão, rendendo-lhe um 9.5 e um 9.0.

O enredo em si pode ser caracterizado como uma bela aula de História como só os mestres como Louzada sambem ministrar. Os mistérios e fantasias delirantes personificaram-se em aranhas, cobras gigantes, mosquitos e outros seres “venenosos”, cenário traçado pelo carnavalesco para destacar os encontros dos desbravadores da ferrovia com a Amazônia.

Destaco aqui a fantasia dos “jacarés”, da bateria da escola, que estava exuberante com plumas verdes que serviam de metáfora para a corda das águas amazônicas na cadência do samba. Paralelamente, a ala que retrata a “vitória-régia” nos presenteou com um belo visual e evolução, fazendo jus a um belo conjunto, definido com o talento já clássico de Louzada. Porém, infelizmente, o quesito “Fantasias” alcançou uma única nota máxima diante dos quatro julgadores.

O bailar das vitórias-régias introduziam a quarta alegoria da escola, chamada de “Trilhos até de baixo d’água” e um espaço significativo entre os dois elementos evidenciou uma falha recorrente de evolução no desfile daquele ano, que não conseguiu cravar nenhuma nota dez naquele ano, amargando notas 8 e 8.5 como parte do score caxiense.

Paralelamente, com exceção da primeira alegoria, contudo, não se pôde observar o delírio prometido devido, talvez, à visão mais “clássica” da floresta apresentada, fugindo-se, aparentemente, da proposta inicial. Embora não tenhamos tido acesso ao Caderno Abre-Alas de 1997, nem às justificativas dos jurados não disponibilizadas no site da LIESA, o classicismo destoante da proposta de “delírio” deve ter sido percebido pelos julgadores, que garantiram à escola somente duas notas máximas no quesito Alegorias e Adereços. No carnaval 97, a Grande Rio ficou na 10ª colocação e continuou sonhando com seu primeiro campeonato. Como o próprio samba diz: “Sonha, a Grande Rio é um sonho…”, sonho este que faz todos nós, sambistas, embarcarmos em suas narrativas delirantes e admirá-la a cada novo carnaval.

Que sonhemos sempre com a escola de Caxias!

Autor: Victor Marques (@euvictormarques) – (Antropólogo, mestre em Antropologia
Social (UFMT) e professor. Membro do Grupo de Pesquisas sobre Cultura popular –
Caleidoscópio/UFMT e pesquisador e orientador do Observatório do Carnaval/UFRJ)
Instagram: @OBCAR_UFRJ

 

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