Conta a história que existia um rei com voz de trovão. Um gigante, imponente. Reuniu em torno de si todo um panteão de outras divindades e com elas criou num novo mundo. Um mundo vermelho e branco que valorizava heróis esquecidos. O Orum desses deuses era por ali na Cinelândia, entre o Teatro Municipal e a Escola de Belas Artes. Já o Ayê ficava na Tijuca, no Morro do Salgueiro. O deus da voz de trovão uniu esse dois mundos numa passarela e assim refundou um novo paraíso surgido da união céu e terra. A história ficou eternizada na memória de muita gente, virou cânone.

Desse panteão de outros deuses que o da voz trovão reuniu em entorno de si, uma delas se tornou sua favorita. Uma espécie de Athenas, dotada de grande inteligência e bom-humor, usava sempre uma mecha rosa. Apadrinhada pelo mestre, seguiu seu trilho no novo mundo fundada por ele, seguiu os ventos da revolução em vermelho e branco. Passeou por reinos como Madureira, Estácio, Vila Isabel, mas foi em Ramos que fez seu templo particular dotado de louros. Já pequena, a deusa recebeu de herança as histórias e livros de seus pais. Se emprenhou do pó de ouro barroco e costumava flanar acompanhada de belos anjinhos que faziam sua corte. Era a deusa das boas histórias, adorava contar um causo. Vivia devorando livros atrás de boas histórias para recontá-las ao seu modo.

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Certo dia, depois de muito tempo, o Deus do Trovão já havia partido. E a Deusa Rosa chegava com uma mudança para as bandas de Botafogo. Mexendo no seu baú de histórias, a deusa achou uma autobiografia do seu mestre e resolveu que era a hora de contar a história dele na Avenida que eles tanta amavam. Foi aí que ela descobriu que o Deus do Trovão não era tão destemido quanto parecia e assim. Fazendo surgir “A incrível história do homem que só tinha medo da Matinta Pereira, da Tocandira e da Onça Pé de Boi”.

Foi numa espécie de céu, ou de Orum, ou de Olimpo, que Rosa também imaginou Pamplona, o verdadeiro nome dessa espécie de Deus, na última alegoria do desfile da São Clemente, em 2015. Uma enorme escultura flutuava em meio a negros anjinhos musicistas. Era uma festa! No texto da sinopse, a professora explicou: “Um dia, cansado da vida, foi embora, acho que um pouco contrariado, pois viver foi sempre uma aventura que encarou sem medo. Deve ter sido recebido por uma extensa corte – Nzambi, Aleijadinho, Xica da Silva e outros tantos negros e mulatos que fazem parte da cultura deste país mulato. Agitando bandeirinhas, eles gritaram em coro: “Pamplona, Pamplona, Pamplona….”.

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A corte de heróis esquecidos relembrados pelo Salgueiro nos carnavais comandados por Fernando Pamplona foi ponto alto da narrativa, que apesar de não deixar de louvar as glórias e coragens do homenageado, partiu curiosamente de seus medos primordiais. As figuras lendárias, que assustaram o cenógrafo na infância, surgiram imponentes já no abre-alas. Um enorme bruxa no abre-alas surgiu numa mata preta, amarela e laranja, com composições que se integravam a estética proposta. Uma pena que um pequeno detalhe da escultura se destacou, mas não tirou o brilho da alegoria. A aula da professora estava só começando.

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A apresentação marcou a reinvenção visual de Rosa, que apostou numa simplicidade aliada a seu bom gosto e requinte característicos. O ótimo conjunto de alegorias passeou entre o bom humor típico da carnavalesca, como na alegoria que lembrava as batucadas de Pamplona em um cemitério em meio a caveiras bem-humoradas. Outras marcas dela, o levantamento histórico e de pesquisa entrou em cena no carro sobre o Theatro Municipal, muito bem concebido cenograficamente, que lembrou a decoração Africana usada pelo cenógrafo no Teatro Municipal em 1958. Foi nele, que a artista desfilou discretamente, junto de sua amiga Zeni Pamplona, viúva do homenageado. Uma outra ótima alegoria trouxe um Palácio Africano, lembrando as histórias de um rei negro, e da marcante estética geométrica africana que foi fundamental na revolução carnavalesca.

Ao abordar a lendária chegada de Pamplona ao Ayê salgueirense, Rosa cometeu alguns deslizes históricos em prol da narrativa. A apresentação da alvirrubra sobre Xica da Silva, de 1963, foi lembrada como um marco absoluto, mas ela teve pouco da contribuição de Pamplona. Fato é que Arlindo Rodrigues tocou a batuta criativa sozinho e que o mestre não gostou do tema a princípio, como o próprio conta em sua autobiografia que foi base para a narrativa do enredo. A escolha, entretanto, afirma a importância de Xica como ponto de virada dita Revolução Salgueirense. Isabel Valença, que foi alçada ao posto de celebridade da época e uma das protagonistas da apresentação incorporando a personagem título, ganhou uma proporção aumentada na alegoria. Marcando outra boa solução visual. A igreja da Candelária, sempre representada como pano de fundo das fotos da época, foi também representada de costas, marcando outra escolha inteligente do conjunto criativo. Vale destacar a excelente equipe que sempre acompanha Rosa em suas criações, no caso das alegorias, se destacam o talento de Penha Lima, projetista que cuidou do projeto daquele ano.

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Se as alegorias são dignas de elogios rasgados, o conjunto de fantasia gerou debates no pré-carnaval para ser simplório demais. O falatório das comuns análises de redes sociais não poupou críticas ao protótipos antes da apresentação. Mas contrariando os analistas de platão, Rosa mostrou porque é das grandes figurinistas da festa, contando sempre com o auxílio fundamental de seu assistente Mauro Leite. As fantasias apesar de simples renderam muito bem no conjunto, se destacando em várias momentos sobretudo pelo ótimo trabalho de cor, que valorizou o preto e amarelo clementiano.

Além do espetáculo visual e narrativo, a São Clemente também estava bem servida musicalmente. Numa concorrida escolha de samba, venceu a parceria de Leozinho
Nunes, que depois seria lançado como intérprete pela escola. A obra alegre e irreverente serviu bem ao cortejo, muito bem conduzido por Igor Sorriso e acompanhado pela Fiel Bateria. As bossas na passagem “É o mestre… todos querem aplaudir”, contagiaram a escola e o público, arrancando boas palmas. Outro destaque foi a ótima atuação do casal de mestre-sala e porta-bandeira Denadir e Fabrício, que brilharam à frente da bateria e não início da escola, como é mais comum atualmente.

Apesar de tantos bons quesitos, a São Clemente acabou mal julgada pelo júri oficial. Mesmo com uma das melhores e mais marcantes apresentações do ano, acabou apenas num injusto oitavo lugar, quando merecia com folga um retorno nas Campeãs. Vícios de um júri acostumado a peso de bandeira, mas que não tiram o brilho e fantasia desse espetáculo, que muitos sambistas guardam com afeto na
memória.

Injustiças a parte, a bela homenagem da Deusa ao seu mestre com carinho, um Deus de trovão é das páginas mais bonitas da história recente da folia brasileiro. Aliando uma estética bem construída e deslumbrante, mesmo com simplicidade, Rosa mostrou seu tom característico ao dar um toque de fábula a biografia desse nome fundamental da História da Arte brasileira do século passado. Mesmo com ressalvas históricas, a narrativa foi bem desenhada em si e ganhou ainda mais destaque com o ótima samba que embalou a apresentação clementiana. Como a forma de arte que é, os desfiles das escolas de samba ganham muito quando relembram sua própria história e valorizam seus grandes nomes. Afinal, a herança de tantos deuses desfilam por ali ano a ano. Obrigado, Rosa! Axé, Pamplona! Evoé, São Clemente!

Autor: Leonardo Antan, Mestre em Artes – Pesquisador/orientador do
OBCAR/UFRJ
Instagram: @obcar_ufrj

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