A tradicional ala do Maculelê veio na cabeça da escola, afirmando as manifestações populares de cunho religioso afro brasileiro. Representando o Caxambu, também conhecido como Jongo, a ala performática relembra uma dança da comunidade negra que surgiu durante o período colonial, especialmente entre os escravizados nas lavouras de café. O Caxambu reflete a resistência e a preservação das tradições africanas no solo brasileiro.
Os caxambuzeiros antigos seguiam rituais que começavam com a oferenda dos tambores às almas ancestrais. Logo atrás da ala, veio o tripé “Vem No Tambor da Academia” que, além de relembrar o último enredo campeão do Salgueiro, tinha a professora e ilustre salgueirense Helena Theodoro, representando o “Matriarcado Salgueirense”.
Em entrevista ao CARNAVALESCO a professora Helena contou suas percepções sobre o que uma escola de samba representa para a história de um povo, a importância de se falar de ancestralidade na avenida e o impacto das escolas de samba fora do Brasil.
“Para mim, escola de samba é o maior tesouro que a comunidade negra criou para poder contar nossa história, falar da nossa cultura, falar das nossas origens, coisa que a gente não aprende na escola normal. Agora que a gente está lutando, eu na universidade, trabalhando com filosofias africanas, e eu fui a primeira filósofa negra a falar disso. O carnaval é você transformar tudo o que o seu povo está falando, de sua ancestralidade, de suas tradições, de sua cultura e agregando as pessoas daquela comunidade. Isso tudo você tem na escola de samba. Hoje é a culminância de um ano inteiro de integração e de colaboração de pessoas em diferentes áreas. É na pintura, é na concepção do enredo, é costurando, bordando, dançando, cantando, compondo. Isso dá um sentido de alegria à vida, mostrando que o centro da cidade é lá no subúrbio, a Zona Sul, que é a periferia, porque somos nós que criamos cultura e a escola de samba é um dos maiores fenômenos do mundo. Todas as pessoas querem copiar o que acontece com a escola de samba. Eu estive na Inglaterra e eu vi em Notting Hill a escola de samba que foi criada pela Estácio de Sá. Essas escolas de samba internacionais são todas de imigrantes, pessoas sozinhas e que durante um ano inteiro se aglutinam com a escola de samba, formam uma família extensiva e foi isso que a comunidade negra inventou no Brasil, retomar as suas origens, as suas tradições e usar sua memória ancestral que sempre foi negada pela Europa, que via a gente como um balde vazio, mas a gente não é, cada criança que nasce traz as suas memórias ancestrais. É um ancestral que volta. Então, a ancestralidade é muito importante.
Os componentes da ala do Maculelê, liderados pelo Carlinhos do Salgueiro, explicaram como a dança do Caxambu está refletida na performance deles na avenida.
“O Caxambu tem muita expressão, muita força. Conta, retrata uma história e conta justamente a história que o Salgueiro vem representando. Temos muitos movimentos grandes e fortes. A nossa força está toda demonstrada e o maculelê sempre foi uma ala coreografada que expressa isso, integridade, paixão pela dança, primeiramente”, disse a artista Eduarda Eloise, de 25 anos, que desfila há 8 na ala.
“A gente vem falando de uma manifestação cultural, que é o Caxambu do Salgueiro, e automaticamente isso traz muito para a questão do nosso enredo. Que está falando de ancestralidade, de fechamento de corpo, tudo isso que vem representado na nossa ala. A gente vem puxando a escola com toda a ancestralidade, então a memória de baianas, nossos avós, então quando a gente fala de ancestralidade, já puxa muito a nossa emoção, família. E nada mais justo do que esses tripés de Xangô na nossa frente, protegendo a escola e segurando a nossa força”, contou Márcio Daniel, vendedor de 27 anos, que desfila na ala do maculelê há 4.
“Este ano a gente resgata a nossa ancestralidade na época do Brasil colônia, até do próprio Morro do Salgueiro, que teve uma relação muito grande com o Caxambu, com a história negra, até mesmo com a religiosidade no Rio de Janeiro. Viemos de vermelho também, que é a cor de Xangô, o nosso padroeiro. Xangô é o nosso rei maior e é a ele que a gente deve todo nosso carinho, nosso respeito e a nossa proteção, é ele que nos protege e também fecha o nosso corpo. E vamos ter muito Caxambu na nossa dança, temos movimentos joelho com joelho, casais e tudo mais. As saias também são muito características, vai ser bem visível. Não foi fácil aprender, foram 8 meses de ensaio, mas valeu a pena”, contou Yuri Vieira, de 22 anos, que trabalha com marketing digital e desfila há 6 anos pelo Torrão.
Sobre a sua presença no tripé, Helena Theodoro contou como recebeu o convite para vir no meio da ala do maculelê, a sua relação ancestral com o Salgueiro e como a escola lhe concedeu mais senso de identidade.
“E representar matriarcas, as mais velhas e a ancestralidade africana, para mim, é algo muito gratificante. Nos meus 81 anos, eu me sinto muito feliz com isso. O Salgueiro me procurou perguntando se eu aceitava. Eu digo, “é lógico que sim!”. A minha família era toda salgueirense, as minhas lembranças de infância são todas com o meu primo Daron do Salgueiro, com o Dondon que jogava no Andaraí, com toda uma família sempre ligada ao samba, eram negros urbanos e que tinham muito orgulho da sua história, e que gostavam de fazer festa, como dizia o Beto Sem Braço. A melhor coisa, quando a gente não tem dinheiro, é fazer festa. E a escola de samba é a festa de gente que não tem dinheiro, mas tem muita alegria, tem muita criatividade e, principalmente, tem muita alegria de estar junto com outra pessoa e aprender com aquele que é diferente. Seja ele mais velho, seja ele branco, amarelo ou azul. A gente gosta de coletivo, de aglutinar. São as diferentes alas que compõem uma comunidade. E preserva o território. Cada Escola de Samba representa um lugar. E como se vive nesse lugar? Quais as cores desse lugar? E como se canta nesse lugar? Cada samba enredo fala de um lugar. Eu, quando fui à África pela primeira vez, eles perguntaram qual era a minha tribo. Aí eu disse que não tinha tribo no Brasil. Eles falaram que todo mundo tem tribo. A tribo é o lugar onde você mora. Que caracteriza a sua vida e as coisas que você diz que te representam. Aí eu parei para pensar e eu digo, não, eu tenho tribo, sim. Eu sou da tribo carioca, tijucana, salgueirense. E foi um dos dias mais felizes da minha vida. E eu nunca mais deixei de me situar como carioca, tijucana, salgueirense”.
A ancestralidade, representada nos ritmos, cores e danças, reafirmou a força da comunidade negra e sua história. No compasso do Caxambu e sob a proteção de Xangô, a escola mostrou que tradição e inovação caminham juntas. Foi um tributo à memória, à fé e ao poder do povo salgueirense.