Marcus Paulo, carnavalesco da Estácio de Sá, recebeu o site CARNAVALESCO no barracão da agremiação, no bairro do Estácio para entrevista especial. Durante o bate-papo, o artista revelou o que o primeiro casal virá representando, contou a cronologia da escola, a origem do enredo e os problemas sofridos com o barracão de uma escola de samba que está na Série Ouro. O enredo da Estácio de Sá “Chão de Devoção: Orgulho Ancestral”, tem a ideia de trazer para a Sapucaí o povo preto que disseminou sua cultura e transformou a diáspora africana em solo brasileiro. Marcus Paulo comenta que não foi ele que propôs o enredo. Foi uma ideia da própria direção, principalmente, do presidente Marinho. E que a história tem relação com a herança e costumes da agremiação.

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Fotos: Giovanna Garcia/CARNAVALESCO

“A Estácio é muito devota de pretos velhos desde a fundação dela. A Estácio de Sá, quando foi fundada, tinha uma preta velha chamada Cambinda, que instruiu a eles de como fundar essa escola, benzendo e rezando. Nos dias atuais, eles cultuam essas entidades no fundo da quadra da Estácio, onde tem um terreiro, que essas duas pretas velhas, Vovó Cambinda e a Maria Conga, dão consulta pros Estacianos. Eu tinha outros enredos, e aí me propuseram esse enredo. No incio, eu fui um pouco reticente, porque eu tava com outras coisas na cabeça. Mas quando eu fui sentindo essa devoção da escola, por essa ancestralidade, por essa religiosidade. Eu entendi que para a Estácio de Sá – que inventou o samba de sambar, que criou a escola de samba – samba e macumba são a mesma coisa. Foi aí que eu tomei como ponto de partida buscar quem eram essas duas mulheres, de onde elas vieram, como elas chegaram aqui no país e o que levou elas a se tornarem entidades. Eu busquei a região, a mancha geográfica de onde vieram as duas, que é de uma região que era única, o Congo Angola. Era um reino só do Congo e as duas foram escravizadas ainda meninas, é uma história muito parecida. Uma tinha por volta de 7 anos e a outra, por volta de 9 anos, e mesmo assim, tão meninas, ainda chegaram aqui com o povo da diáspora africana e criaram essa consciência de lutar pelo seu povo e pela sua cultura. Cresceram com isso. O foco do enredo é isso, eu busquei elas ainda em vida, para mostrar essa cultura delas, esse colorido, o gingado, a dança, a culinária. Tudo ainda em África, para depois passar para essa parte que nós temos conhecimento aqui no Brasil. A gente conhece a partir dos tumbeiros, a partir do navio negreiro, o antes a gente não tem conhecimento, até porque é muito raro ter essas histórias do povo preto. Eu descobri também que a mancha geográfica desse local, o solo é muIto vermelho, é aquela argila bem vermelhona, por isso que eles têm muito artesanato. O que combina muito com a Estácio de Sá, sem contar o leão, que é um dos símbolos africanos e que é o símbolo da escola. Aí eu falei, realmente é um grande enredo e é esse enredo que eu vou desenvolver”.

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Diante de um enredo e uma história tão forte e tão relacionada a Estácio de Sá, a primeira escola de samba, Marcus confessa que algumas questões o deixaram mais envolto na história.

“Descobrir efetivamente essa ligação da escola com essa ancestralidade foi um ponto. O meu título era outro que não tinha nada haver. E quando eu fui lendo, pesquisando, escrevendo o meu enredo, eu vi que a Estácio cultua a ancestralidade ali no seu chão, desde o início. Então, por isso que o título é “Chão de Devoção e Orgulho Ancestral”, que ela além de cultuar, ela tem muito orgulho dessa religião africana, ela tem muito orgulho de tudo que vem do preto. E também a Estácio fez pouquíssimos enredos africanos, apesar dela ter esse orgulho. Então, a parte que eu mais gosto do enredo é essa ligação, esse fio de ligação com essas entidades, desde a fundação até os dias atuais. Isso é o que me encanta no enredo”.

Para além do profissional, ele vê que o mais interessante não é enredo, não é a história em si, mas as descobertas que pode fazer durante a pesquisa. O ponto que pegou no coração do carnavalesco foi personificar essas mulheres para além do nome do rebatismo de quando chegavam ao Brasil. Afinal, naquela época o nome era imposto pela região que havia vindo da África.

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“Foi quando eu descobri esses possíveis nomes dessas mulheres que a gente não conhece, só conhece o rebatismo. Cambinda e Maria Conga que chegam ao Brasil como mercadoria. Vem do Congo, então vai ser Maria Conga. Então a gente não sabe quem são essas pessoas, a gente não imagina como elas viviam. E descobrir ali esses possíveis nomes dentro da cultura delas. Descobrir que uma, na região da Cambinda, eles tinham os rituais que batizavam seus filhos com o nome de seres poderosos, para eles terem sorte. Descobrir que na região da Maria Conga eles batizavam seus filhos apresentando para a Lua, a luz da Lua, e a Lua soprava o nome no ouvido de seu pai, e se não soprasse ele tinha que voltar outra vez, e outra vez até soprar esse nome. Eu não sei o nome que soprou, mas por isso a gente deu o nome dessa menina de Mwana Ya Sanza, que é filha da lua, filha da luz da lua. Então, descobrir esses nomes, materializar essas meninas antes do navio negreiro, assim é o que me encanta”, confessa o artista.

A abordagem no enredo não é o que costuma aparecer na Avenida. Marcus quer dar novos olhares para África, aos negros e aos africanos. O foco do enredo é trazer a arte, a cultura e o colorido especial.

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“A escola é apaixonada e eu estou contando essa história, eu estou pontuando muito que a Estácio. Nesse ano, eu como artista negro, a gente não vai se recolocar naquele lugar de chicoteado, de escravizado, de maltratado, de assassinado. A Estácio não trará os universais escravocratas. O que são esses universais? Correntes, grilhões, mordaças, chicoteamentos, que eu acho que eu particularmente já cansei desse lugar, de ver essa imagem, de recarregar essa imagem colonialista, do negro sofrido. Eu acho que já deu e dizem que é para que não aconteça de novo. Tá, mas eu acho que já deu. Vamos lançar um novo olhar. O foco da Estácio é nas estratégias que essas meninas e o seu povo tiveram para disseminar a cultura e não apresentando esses universais escravocratas que não são obras de artes. Não são peças para estar expostas, são vestígios de crime, é para ser investigado e não apresentado. Então, esse é o foco, o colorido, a cultura e as estratégias. O sofrimento não vai passar na avenida”, diz o carnavalesco.

O berço do samba, logo na cabeça do desfile, vai mostrar seu impacto. As cores da escola vão se diferenciar do que costumam representar como África.

“O vermelho, porque aqui é o solo do Congo Angola dessa região, que é um vermelho muito forte e a cor da nossa bandeira. Vai ser um choque muito grande esse cruzamento da cor da região africana com a bandeira da escola. Trazer essas cores, porque eu mesmo em outros enredos afro, na Unidos da Tijuca, na Acadêmicos da Rocinha, tinha esse vício que o carnaval tem de fazer a África em tons terrosos, dos marrons, que é o tom da terra, o tom da pele do negro, que vem sem nada. Ele vem só com pano amarrado na cintura, nem roupa ele vem. É a cor do tumbeiro, que é aquele tom da madeira, então a gente sempre coloca a África nesses tons. E ela é tão colorida. Tão magnífica, então isso me encantou, trazer essa cor para um enredo matiz da escola vai ser muito bonito”.

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No entanto, transformar o desfile, as fantasias e alegorias em um espetáculo magnífico não é facil diante de tantas dificuldades na Série Ouro. A Estácio de Sá, que caiu do Grupo Especial em 2020, enfrenta os desafios de estar no Grupo de Acesso, sobretudo, com a ausência de uma Cidade do Samba e infraestruturas dignas.

“A precarização do barracão é muito caro para a gente, faz com que a gente atrase muito o trabalho. Por exemplo, agora a gente conseguiu uma lona na frente, porque a gente tem os avances das alegorias que não dão aqui embaixo do teto. Foi a semana inteira de chuva e não conseguimos mexer em nada lá na frente, nem pintar, nem decorar. Esse barracão, a Estácio conseguiu tem dois anos, só esse ano a gente conseguiu fazer uma cobertura, que nem coberto era. Conseguimos fazer um banheiro, porque o pessoal usava o banheiro do posto de gasolina da frente. As escolas que não estão no grupo especial, não que lá não mereça, tem que ser assim mesmo, eu acho. O espetáculo é tão grande que eu acho que a estrutura que está na Cidade do Samba ainda é pouca, tem que ser melhor. Mas tem que se olhar melhor para as outras escolas. Porque a gente é obrigado pela competitividade a fazer um carnaval equiparado com o do Grupo Especial, com uma verba que não se equipara e com os barracões que não tem nada a ver com o do Grupo Especial. Prejudica muito o trabalho. Se chover forte, já era, a gente tenta colocar a lona, mas o vento é tão forte que arrebenta as lonas, derruba as lonas”.

E as perdas são muitas, a partir delas são criados “truques” para sobreviver e se reinventar: “A decoração a gente teve que refazer. Tem que refazer lá na frente os avançes, a gente está refazendo porque a chuva não parou. Esses dias parou e a gente conseguiu montar uma lona. Agora, a gente vai ter que refazer a pintura e a decoração. Por exemplo, tem dois tripés que a gente já preparou e já não está mais aqui pela falta de cobertura, mas que vão voltar porque ainda faltam alguns detalhes. O tripé está no barracão da AESM Rio, que é o barracão das escolas Mirins e é um pouco mais coberto. A gente conseguiu uma parceria que eles deixaram a gente guardar lá enquanto estava temporal na cidade, e agora a gente vai pegar de volta. Lona o tempo inteiro, porque as laterais são abertas. A chuva de vento vai tudo em cima da alegoria, mas é muito precário mesmo. Todas as escolas de Samba merecem um local digno, seja no Especial, no Acesso, ou nas outras séries”.

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Mesmo diante de tudo, o amor e o prazer de fazer carnaval não se modificam. Eles se transformam, se unem para alcançar o melhor resultado e fazer um desfile lindo. Afinal, se trata de resistência.

“É prazeroso, mas é doloroso pra caramba também. Ainda mais que eu venho de seis carnavais na Unidos da Tijuca, na Comissão de Carnaval, como carnavalesco. A gente tinha lá uma Cidade do Samba. Que tem toda a estrutura, as equipes vão à sua procura, são as melhores. Melhores equipes, você consegue oferecer condições melhores de trabalho para as equipes que vão trabalhar com você. O Grupo de Acesso não são tão boas. De ambiente de trabalho e de qualidade, você tem que estar do lado das pessoas o tempo todo mostrando, ‘Olha, a gente está na dificuldade, mas eu estou aqui junto com você, eu também estou passando por isso’, para que o descaso seja um pouquinho menor. Para a gente sentir o que o outro está sentindo também, para que o outro sinta que eu também estou sentindo que ele está na dificuldade, que ele não está sozinho. Mas é bem, é prazeroso sim, depois que a gente vê o trabalho terminado, que é com um sacrifício terrível, e depende da nossa mão mesmo. Aqui o carnavalesco tem que botar a mão efetivamente, ele tem que ser peça da treinagem para funcionar. Dá um prazer no final. Tem dia que bate aquele desespero, bate aquela tristeza e desespero mas esse amor pelo carnaval faz a gente retornar e pensar que no final vai ficar bonito e sentir prazer”.

Além do barracão que trabalha com uma média de 32 pessoas, o ateliê produz as fantasias, localizado na rua de trás da quadra, que funciona com 42 pessoas.

“O ateliê está a todo vapor, estão bem adiantados e vem funcionando há bastante tempo. A escola investiu bem a verba que tinha em fantasia e está bem antecipada. A estrutura é bem melhor. É um espaço alugado e são dois andares e é bem grande, o ateliê é bem confortável, oferece mais conforto para as pessoas que trabalham”.

Marcus Paulo se emocionou ao ver a roupa do primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira, o casal Feliciano Junior e Thais Romi, que brilhou no ensaio técnico na Sapucaí. Ele diz que é um dos destaques do seu desfile.

“Eu fui pra prova de roupa do meu primeiro casal, que já tá pronto. Chorei, a lágrima caiu, porque eu achei magnífico. O ateliê aquarela carioca, o Léozinho e o Pedrão arrasaram na roupa, fizeram com muito carinho. Eles são tão encantadores. Eles representam os rituais em liberdade, o som que embala a dança. O africano é muito musical, ele tem a ginga no corpo. Ele traz isso consigo, ele tem o ritmo. Apesar de eu ter o pezinho lá, eu sou horrível de ritmo, nós trazemos essa ginga na alma. Eles representam isso e a indumentária ficou magnífica e a dança deles, me encantaram, me fizeram chorar mesmo. Eu vi alí o locus, o que eles representam no enredo, o que eu escrevi e eu vi se materializando. Fiquei muito feliz”.

Além disso, ele diz que tem outro trunfo no desfile de 2024, que costuma sempre trazer como diferente nas escolas que passa.

“Eu sempre tenho um carro, seja na Unidos da Tijuca, seja na Rocinha, que eu faço com material completamente alternativo, que não tem a ver com carnaval. Esse ano é o meu tumbeiro, o navio. É um trançado que dá aquela sensação de cláusula, de prisão, mas é um transado com um material que não se usa no carnaval. Não é usual e eu acho que esse é o meu trunfo, que vai chamar atenção. É o meu queridinho do barracão”.

Na Estácio de Sá não falta comunidade, irá desfilar com 2200 componentes, um elemento cenográfico na comissão de frente, três alegorias e dois tripés.

“A escola virá bem grande, ela é, de fato, uma escola grande. A comunidade desce mesmo, né? Até porque todo mundo costuma dizer que a Estácio está jogando em casa. Eles têm uma descida do Morro do São Carlos que é dentro da Sapucaí. De componente ela não tem problema. A escola é bem grande”.

Marcus Paulo fala também um pouco sobre como a agremiação irá desfilar tão esperado. Em 2024, o Berço do Samba será a quinta escola a se apresentar na sexta-feira de carnaval.

Conheça como será o desfile

Setor 1: “Então, a abertura do enredo é ainda em África. Apresentando essas duas meninas, os rituais e as culturas e como elas viviam ainda numa África livre. Livre, totalmente livre, ainda sem esse horror da escravização”.

Setor 2: “O segundo setor é a parte da escravatura, quando o povo da diáspora é agredido. Tem essa agressão terrível da escravização e a chegada aqui no Brasil. Tratamos em que condições chegaram, de que forma chegaram e quais as estratégias que eles usaram para suportar tanto sofrimento até chegar aqui. Eu toco muito que essas estratégias são a força religiosa, a espiritualidade. E até no batismo de uma das meninas, que era um ser que protegia, uma Kianda. Na cultura deles é um ser também místico do mar, porque é em região costeira, então, eles têm muita crença no mar, a riqueza vinha do mar”.

Setor 3: “Quais as estratégias foram criadas para essa cultura ser espalhada aqui no nosso país. Mesmo proibidos, ameaçados de ser assassinados e castigados, não podendo fazer, praticar a cultura e a religiosidade, eles arrumavam jeitos às madrugadas, nas senzalas, no chão da senzala, que criavam rodas, de dança, de batuque”.

Setor 4: “O quarto setor é efetivamente a Estácio de sol olhando para o mar. Ela para essa crença e ancestralidade dela, que é o chão de devoção. Na verdade, mostra essas meninas já adultas e a passagem delas para o plano espiritual, quando elas se tornam espírito de luz e são batizadas por Oxalá e Zambi. Se tornam pretas velhas para continuar cuidando do seu povo e da gente até hoje. E aí essa parte, mostra que elas são as mães de todo Estanciano. Desde o início elas tiveram junto com a escola, estão até hoje protegendo e continuam protegendo no desfile. Então, esse último setor fala realmente dessa devoção da Estácio de Sá pela ancestralidade”.