Em 1904, em uma nota de rodapé, o historiador Diogo de Vasconcelos, sem querer, incluiu uma lendária figura no imaginário cultural brasileiro: ele foi o primeiro a citar a história de Francisco Rei, citado no livro “História Antiga de Minas” pela forma que o imortalizaria: Chico Rei. A informação incluída na publicação dava conta que o afrodescendente era rei em uma tribo na atual região do Congo, foi escravizado, veio para o Brasil e conseguiu comprar a alforria própria e de outros companheiros, tornando-se uma figura digna de admiração no interior das Alterosas. Toda a história será revisitada no enredo “Meu Black é de Rei, Minha Coroa é de Chico. Chico Rei Entre Nós”, elaborado pelo carnavalesco Gleuson Pinheiro para a Camisa 12. Atualmente no Grupo de Acesso II, a agremiação será a sétima escola a desfilar no sábado, 03 de fevereiro.
Em entrevista exclusiva ao CARNAVALESCO, Gleuson detalhou o enredo e contou quais foram as inspirações para a criação de todo o conceito, além de trazer detalhes da escola para o carnaval 2024.
Referências e facilidades
Como já citado, a lenda em torno do personagem surgiu há pouco menos de cento e vinte anos – e, desde então, é muito citado na cultura brasileira. O carnavalesco contou que a ideia de um enredo sobre a lenda veio da própria escola, mas foi recheada com diversas referências – incluindo um dos desfiles de carnaval mais famosos de todos os tempos. Por fim, ele explica qual a grande mensagem que o desfile quer passar. “Quando surgiu a ideia de falarmos do Chico Rei, que veio da diretoria, pensei, logo de cara, que era uma história bastante conhecida. Por outro lado, como enredo, ele passou, como enredo, apenas uma vez em São Paulo. Todos se lembram do desfile histórico do Salgueiro [“Chico Rei”, 1964, vice-campeão], mas é apenas um desfile isolado. É um tema que está na cabeça de todo mundo, mas não tão explorado no carnaval quando comparado com outras temáticas. É uma história que todo mundo conhece um pouco, mas eu prefiro chamar de mito, não de história. A proposta da escola é, desde o início, contar o mito e fazer uma atualização, a escola pensava que tínhamos que falar de uma maneira diferente. Começamos com a história do Chico Rei propriamente dita e conhecida – ao menos a versão mais famosa, já que são algumas versões que existem. Depois disso, temos um conjunto de citações a episódios que poderiam ser interpretados como influenciados pelo Chico Rei, dentro da nossa proposta de enredo. Aí chegamos no encerramento, que tem muita inspiração no documentário ‘Chico Rei Entre Nós’, da Joyce Prado, e da música de mesmo nome, do Emicida. Esse é o mote do enredo: identificar a permanência ou o renascimento a todo tempo, em diversos momentos da história, da população negra e do ativismo negro, como ativismo político e intelectual. Acho que o grande ensinamento e mensagem desse mito é mostrar o poder do que é muitas vezes negado: a competência do negro para traçar estratégias e planos, fazer articulações”, explicou.
Pesquisa gabaritada
Doutorando pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP) e pesquisador acadêmico, Gleuson comentou que, apesar de ser uma história contada com frequência na cultura popular, há detalhes que o surpreenderam enquanto buscava história e informações do universo do personagem. “A gente tinha essa questão de achar que já conhecíamos a história, como o ponto alto – esconder o ouro no cabelo. Eu não sabia, por exemplo, que uma das versões contadas sobre o Chico Rei diz que tanto a esposa quanto a filha do Galanga (antigo nome dele, antes dele ser batizado) foram assassinadas e jogadas ao mar. Além de transportar o ouro em pó ou em partículas pequenas no cabelo, a organização da irmandade de Nossa Senhora do Rosário, que conseguiram comprar a alforria e construir uma igreja para a santa. É algo muito significativo no cenário de contar a história do negro como uma história limitada ao sofrimento da escravidão. Claro que temos que contar isso, não podemos esquecer. Falo como um homem negro: nossa história não se resume a isso. Queremos, também, passar para os nossos descendentes o orgulho dos nossos heróis, nossa capacidade de planejamento e etc”, pontuou.
Escola unida
Na visão de Gleuson, a comunidade da escola está satisfeita com tudo que foi apresentado – e ele, por sinal, comemora uma característica da agremiação. “A minha impressão é que a comunidade está gostando do enredo, sim. Estou de volta, me sinto muito bem em trabalhar aqui, e a Camisa 12 é uma escola que toca em temas com bastante relevância política – como as homenagens ao professor Milton Santos, a Adoniram Barbosa e aos professores. As atividades, questões sociais e redes sociais mostram que a comunidade está associando e discutindo esse tema, o que é muito positivo”, destacou.
Ele, por sinal, se considera como parte integrante de quem faz a mágica acontecer – não apenas no contato com a comunidade; mas, também, no barracão. “Cada carnavalesco tem o seu jeito de trabalhar, e eu gosto muito de realizar as coisas – e acho que isso todos têm em comum. Mas gosto de colocar a mão na massa, colar coisas, por exemplo. Meu cotidiano é ser mais um funcionário do barracão e fazer o serviço que tem que ser feito, sempre conversando”, afirmou.
Desfile já organizado
Pouco depois de, superficialmente, comentar como estaria setorizado o desfile, Gleuson aproveitou para trazer mais detalhes sobre cada um deles. “Temos uma divisão que é quase que dividida entre a história propriamente dita do Chico Rei, no primeiro setor, e a atualização desse mito, no segundo e no terceiro. Tem dias que eu, inclusive, acho que temos dois setores, em outros não. Iniciamos com o ambiente em que Galanga foi sequestrado, no reino do Congo. Depois, já tratamos de Galanga batizado como Francisco, em Vila Rica. A história já é conhecida, o ouro no cabelo e a conquista da alforria. Esse setor acaba na construção da igreja de Santa Ifigêna – e aí se encerra Chico Rei coroado. Aí, passamos pela história dele renascendo em momentos da história do Brasil, como eventos histórias depois do século XVIII. Temos o quilombo do Quariterê, comandado por Tereza de Benguela, e outras passagens da história até o século XX, que são lutas pela abolição e até mesmo pós-abolição, pensando na conquista de direitos da população negra. O último setor, o do encerramento, fala da atualidade. Temos a homenagem a personalidades e ativistas negros – como o MNU (Movimento Negro Unificado) e outras entidades”, pontou.
Após a explicação, Gleuson foi indagado pela reportagem sobre qual seria, para ele, o momento-chave da passagem da Camisa 12 pelo Anhembi em 2024. Ele não se furtou a responder. “Acho que é um enredo muito forte e que tem o trunfo de todo mundo saber um pouco do que se trata. Imagino que haverá uma comunicação muito fácil do público que estiver presente com o que apresentaremos. Aposto muito no encerramento, tanto por conta de questões estéticas, já que queremos trazer um visual um pouco diferente, quanto pelas homenagens que faremos, algo que vai mexer com a emoção de muitos”, vaticinou.
Por fim, o carnavalesco aproveitou para trazer números sobre a escola. “Teremos dois carros alegóricos e um quadripé, que é o que permite o regulamento. A Camisa 12 tem saído com um contingente entre oitocentas e mil pessoas”, pontuou.
Recados
Falando sobre o quanto o local para produção dos carros alegóricos é importante para a agremiação e para a escola como um todo, Gleuson aproveita para falar que, em relação à comunidade, nem tudo são flores. “Eu me divido um pouco ao pensar na importância da Fábrica do Samba II. Sou a pessoa que vive o dilema dos barracões, da qualidade de espaço e etc, mas também sou pesquisador – de escolas de samba e do carnaval. O pesquisador acha que tem alguns problemas, como o barracão distante da quadra. Na minha outra passagem na Camisa 12, fazíamos as alegorias na quadra. Construir a parte visual junto da comunidade tem uma importância. Nos ensaios, a comunidade vê o carnaval sendo produzido e, quando vamos para um local como esse, as pessoas sentem-se distantes. As pessoas não sentem que estão participando. Por mais que você não esteja trabalhando, participar também é conhecer, elogiar ou até mesmo criticar. Isso eu acho legal. Agora, o profissional, realmente acha que precisamos de um espaço com qualidade de trabalho. Desde as questões de segurança, temos uma situação melhor para movimentar peças e utilizar equipamentos mais adequados. Para quem trabalha, é bem melhor. Ainda acho que está longe do ideal, mas é um espaço que caminha para ser especializado”, pontuou.
Por fim, instigado a deixar um recado para todos os leitores do CARNAVALESCO, em especial aqueles que pretendem assistir aos desfiles do Grupo de Acesso II, Gleuson valorizou o fato da apresentação acontecer uma semana antes do carnaval e a festa paulistana em si. “Todo mundo da bolha do carnaval de São Paulo não aguenta mais ouvir aquela conversa de que o carnaval da cidade está crescendo. Ele sempre foi grande, é muito antigo e tem a sua história pouco contada. Temos escolas incríveis em todos os grupos, do Especial até a UESP. E, agora, temos os desfiles do Acesso II um fim de semana antes do carnaval, deixando de ‘concorrer’ com os do Rio de Janeiro, que todo mundo gosta de ver… temos um privilégio. Fica o convite para conhecer, é um carnaval grandioso que está na Fábrica do Samba II, e todas as escolas estão trabalhando muito seriamente para apresentar um espetáculo como o dos últimos anos. Vale muito a pena ver”, finalizou.