Dos sambas-enredo mais elogiados por público e crítica no carnaval de São Paulo em 2023, os tambores da Império de Casa Verde ecoaram alto no Anhembi na segunda noite de desfiles no Sambódromo da cidade. Cantando o enredo “Império dos Tambores – Um Brasil Afromusical”, a agremiação mudou a identidade que trouxe nos ensaios técnicos de maneira acentuada: se, nos “treinos”, teve alguns momentos apoteóticos e outros de observação, a agremiação buscou a segurança e a linearidade nos 62 minutos de desfile (por três dentro do limite regulamentar). * VEJA AQUI FOTOS DO DESFILE
Enredo
A musicalidade da África que chegou ao Brasil em diversos momentos da história do planeta foi cantada no enredo “Império dos Tambores – Um Brasil Afromusical”. Mais que melodias e letras, as canções também são uma marca de vida e de resistência. Vale pontuar que o enredo teve um norte bastante definido, com storytelling que precisa ser explicado. Quem conduziu todo o desfile foi Bah, uma baiana da escola que passa a ter contato com todos os ritmos advindos da África até desembarcar no próprio bairro da Casa Verde, sede da escola.
Na avenida, a condução do desfile por Bah foi parcialmente compatível com o proposto. A maioria das fantasias tinham fácil assimilação, com os carros pormenorizando cada setor. A exceção foram as primeiras alas, com figurinos que não tinham identificação tão simples. Após a segunda alegoria, entretanto, com o desfile já no Brasil, todos conseguiram acompanhar o desenvolvimento do desfile.
Samba-Enredo
Das mais elogiadas canções do carnaval paulistano em uma safra de ótima qualidade, o samba-enredo traz toda a viagem citada pelo enredo. Mais do que isso, a composição é quase que inteiramente marcada por bossas da Barcelona do Samba, capitaneada por Mestre Zoinho. Se, nos ensaios técnicos, a bateria executada um sem fim de bossas, os ritmistas foram mais comedidos no desfile oficial. Ainda sim, não faltaram execuções para diferenciar as passagens do samba – como destaque para o instantâneo clássico apagão quando o verso “Acompanha um novo ser” é executado.
Por fim, o carro de som, com a estreia do experientíssimo intérprete Tinga, impôs extrema qualidade à canção, combinando perfeitamente com a melodia e com o espírito imperiano. O momento em que o carro de som deixava apenas as vozes femininas enquanto a bateria faz uma imensa convenção, entretanto, não foi executado.
Harmonia
Nos ensaios técnicos observados pelo CARNAVALESCO, o Império de Casa Verde teve atuação irregular em determinados quesitos técnicos. No desfile oficial, entretanto, o Tigre Guerreiro teve canto bastante forte dos componentes – que, é bem verdade, não desfilavam com um tema afro há exatos vinte anos. Ao longo de toda a exibição, o canto foi constante e tinha volume considerável para a arquibancada, trazendo boa impressão.
Nos dois primeiros setores da escola, é bem verdade, os staff mostravam preocupação com o alinhamento de determinadas alas, sempre apontando para os componentes do segmento e cobrando atenção. Com tal ajuda, os apontamentos feitos pelos harmonia eram resolvidos em segundos. Já nos setores finais, nem mesmo tal desafio era encontrado, com a escola executando a contento tudo que precisava.
Evolução
O quesito talvez tenha sido o mais destoante em um desfile sem grandes sobressaltos do Tigre – e por motivos pouco comuns. Antes, é importante destacar a ligação da Evolução com as fantasias: em 2023, a escola da Zona Norte optou por vir com figurinos bastante leves e simples. O resultado veio na movimentação do componente, que veio curtindo a bela canção escolhida pela escola e interagindo com o público, bastante sorridente e feliz.
Não faltaram, entretanto, pelo menos dois rápidos momentos de hesitação imperiana na avenida no quesito – ambos vencidos com celeridade, por sinal. O primeiro deles veio quando o gigantesco abre-alas da escola adentrava o setor C da avenida. O andamento dos componentes pareceu mais moroso, e notou-se certa aflição dos responsáveis naquele momento no entorno do carro alegórico. O carro ficou parado por alguns instantes e, logo depois, harmonias pediram para que ele voltasse a andar. O motivo foi, justamente, o segundo instante com um pouco mais de dramaticidade em uma exibição bastante correta e segura: o recuo da bateria.
A Barcelona do Samba entrou no espaço com uma fresta bastante exígua, com parte do abre-alas ainda sem entrar no Setor C e com mais uma ala ainda à frente. Enquanto alguns staff, na parte de trás do carro, pediam para que a escola parasse, ela evoluiu por mais alguns metros. Os ritmistas, em um movimento bastante destacado, optaram por uma entrada em dois tempos no espaço, deixando alguns componentes para fora do espaço para depois adentrar o recinto por completo. A ala seguinte não demorou muito tempo para ocupar o espaço deixado pelos ritmistas, com todo o movimento durando cerca de 95 segundos – marca bastante interessante.
Fantasias
Ao contrário de alguns outros anos e do que sempre acontece com os carros alegóricos da azul-e-branco da Zona Norte, a instituição optou pela simplicidade em detrimento do luxo. Não haviam problemas de acabamento, é bem verdade, mas os materiais utilizados eram mais simples e leves, e até mesmo os adornos de cada componente não eram muito luxuosos. Um dos efeitos positivos de tais escolhas veio no quesito Evolução, com muito movimento e dinamismo.
O outro efeito positivo foi a excelente sacada do carnavalesco Leandro Barboza quanto ao imediatismo para a identificação das fantasias por todos. Quando um componente e um espectador sabem o que está sendo tratado, a motivação fica maior – e a energia era perceptível na exibição.
Alegorias
O carro abre-alas, com três chassis acoplados chamado de “Afrorealeza: Tempo dos Rituais”, relembrou o fato de que boa parte dos afrodescendentes chegados ao Brasil eram importantes pessoas em reinos africanos – que apresenta, é claro, o nacionalmente conhecido tigre, mascote da escola. O segundo carro alegórico já mostrava o início da viagem nos navios negreiros, com o nome “Navio Nos Ritmos da África”, claramente estilizado no formato de uma embarcação marítima, com todos os afrodescendentes fazendo música para buscar uma vida melhor e tentar afastar os males.
Já em solo brasileiro e trazendo uma contextualização com os tempos atuais, a terceira alegoria tem nome autoexplicativo: “Sons da Periferia”. Do break ao funk, passando por diversos outros gêneros que têm matriz africana, todos eles são representados com riqueza de detalhes – com destaque para a escultura de uma mulher afrodescendente com um rádio, ouvindo as canções que ela tanto gosta. O destaque principal da alegoria também deixa clara uma imagem bastante comum em músicas de comunidades: ele representada o DJ do baile. Por fim, na última alegoria. E, se estamos no Brasil, nada mais justo que o último carro alegórico ter como palco a Casa Verde, bairro da Zona Norte de São Paulo onde está sediada a escola. Com o nome “Quilombo Casa Verde: Império dos Tambores”, com direito a coroação de rainhas do carnaval paulistano – como Bah, a baiana que conduziu todo o desfile e outras baluartes do carnaval paulistano, tratadas como griôs: Eliana de Lima, Leci Brandão e Bernardete.
Na avenida, um detalhe que não costuma ser muito observado também ficou perceptível: alguns pontos de cada um dos quatro carros pareciam estar com pouca iluminação – o que nem de longe quer dizer que eles estavam apagados, muito pelo contrário. No abre-alas, por exemplo, a parte traseira e, ao menos, o lado direito tinham bem menos iluminação que a parte de cima, por exemplo. No terceiro carro alegórico, enquanto painéis de LED eram destaques, o local onde ele estava instalado remetia a uma balada – este, de maneira intencional.
Mestre-Sala e Porta-Bandeira
Com a fantasia intitulada “Divindades da Savana”, a fantasia de Rodrigo Antonio e Jessica Gioz, que veio logo no começo do desfile, ambos trouxeram a temática africana mais pura, ainda sem pisar no solo brasileiro.
Se, nos ensaios técnicos, era possível identificar alguns descompassos na dupla, Rodrigo e Jessica trataram de fazer uma exibição correta, sem grandes ousadias. E, mais do que isso: reconhecendo o que cada um deles e o conjunto formado por eles têm de melhor. A porta-bandeira é extremamente sorridente e fez questão de torná-lo ainda mais visível; o mestre-sala é bastante expressivo e deixa claro qual sentimento está a cada instante – e, durante toda a exibição da Império, ele pareceu satisfeito e tranquilo. Juntos, eles têm em comum o bailado, sendo capazes de marcar com extrema elegância determinadas partes do samba-enredo – o que foi feito com primor. Por conta da garoa que caiu em determinados momentos do desfile, das famigeradas rajadas de vento no Anhembi e pela pista molhada, ambos buscaram a segurança, sem grandes ousadias – e com pelo menos uma bela atuação, na terceira cabine de jurados.
Comissão de Frente
Foram, ao todo, quatro fantasias diferentes dos bailarinos. Homens de barro, pássaros e mulheres da tribo tem participação importante na coreografia e andamento do segmento, mas o grande destaque é a mãe africana, que representa não apenas o ventre que concebe uma criança, mas, também, a matriz de diversos gêneros musicais. Também vale destacar o imenso baobá utilizado como elemento cenográfico.
Na passarela, chamou atenção a sincronia entre os componentes, com movimentos bastante ágeis e temporizados. Se a coreografia não era das mais longas, o tripé chamou atenção e causou excelente primeira impressão ante o que viria pela frente.
Outros destaques
Chamou atenção a grande quantidade de alas e componentes que passaram entre os segundo e terceiro carros da Império de Casa Verde. Ao todo, oito das vinte alas da escola estavam no espaço, que ainda tinha o terceiro casal de mestre-sala e porta-bandeira e um quadripé instalado em uma das alas.