Na semana passada, começamos nosso passeio com um pouco dos enredos que as agremiações do grupo especial carioca vão levar para a Avenida em 2023. Nele, apontei um “inconsciente coletivo” — como diria Maria Augusta — envolto dos céus e paraísos que apareceram na criação de alguns artistas. Porém, este não foi o único assunto que se mostrou reincidente na safra de enredos.
Outras quatro narrativas se mostram alinhadas, em algum sentido, ao se aprofundar no regionalismo brasileiro, explorando os aspectos culturais do norte e nordeste. A Bahia, sobretudo, é um lugar que veremos na Sapucaí de diferentes formas em 2023. Mesmo sendo uma região já foi muitas vezes homenageada, ainda é possível ver novos contornos nos temas desse carnaval que irão versar sobre a terra do axé. São três enredos diretamente ligados ao universo festivo e histórico da região, mais uma que sobe um pouco ao norte e chega ao Pará.
Fazendo a primeira parada na Estação Primeira, a Mangueira foi uma das que mais cedo anunciou seu enredo. A dupla Annik Salmon e Guilherme Estevão terá a difícil missão de substituir Leandro Vieira, após se destacarem na Série Ouro. Acostumada a exaltar a Bahia e o nordeste, a verde-e-rosa vai mergulhar nos cortejos e manifestações afro-brasileiras que acontecem na capital soteropolitana numa proposta autoral dessa dupla, formada para assinar este desfile.
Se a história do carnaval baiano foi poucas vezes cantada na Avenida, o tema ganha ainda mais relevância pelo recorte racial e de gênero que propõe. É assim que a condução de “As Áfricas que a Bahia canta” se dá pelo protagonismo feminino que acontece nessas folias. Apesar da boa premissa, resta saber se essa condução e atuação feminina estará de fato presente e destacada nos setores que irão passear pelos afoxés, cucumbis e blocos. Ainda assim, é um tema muito rico culturalmente e com muitas visualidades a serem exploradas.
Um dos melhores enredistas do carnaval nos últimos anos, Jack Vasconcelos se volta à cultura baiana, um assunto até então inédito na sua trajetória. O enredo da Unidos da Tijuca será “É Onda Que Vai… É Onda Que Vem… Serei a Baía de Todos Os Santos a Se Mirar No Samba da Minha Terra”, que vai “mergulhar” na riqueza cultural da bacia hidrográfica que dá nome ao estado nordestino.
A proposta parece ter um “quê” de enredo cep, pois os setores se desenvolvem pela história e cultura das cidades em torno da baía. Porém, mesmo parecendo despretensiosa, a narrativa mostra bem a assinatura de Jack e sua inteligência de arrematar seus trabalhos. A baía não se torna apenas cenário, mas é ela mesma a amarração e condutora da premissa, trazendo a noção aquática e marítima, que poderá ser vista em todos os setores do cortejo. Uma ótima saída para fugir do óbvio.
Diferente dos passeios culturais que prometem Mangueira e a Unidos da Tijuca, a Beija-Flor se volta para a história de luta do estado baiano. Aproveitando ainda o mote do bicentenário da independência brasileira, a narrativa de André Rodrigues e Alexandre Louzada, com pesquisa de Mauro Cordeiro, vai questionar essa celebração patriótica e se voltar para a guerra da independência, acontecida na Bahia entre 1922 até o fatídico 2 de julho de 1923.
O primeiro feito dessa escolha narrativa é revelar um episódio pouco conhecido do grande público, principalmente os sudestinos e de outras regiões, que não conhecem tão bem a luta de nomes como Joana Angélica e Maria Quitéria. Outro valor de como está sendo conduzido o tema é a forma contestadora e contundente que a proposta se coloca, dando um tom de reivindicação e manifesto. É uma característica que se soma ao estilo imponente da própria Beija-Flor e dá um toque bastante único ao enredo, fazendo-o se destacar como um dos poucos temas que têm vertente mais crítica e política dessa safra.
Saindo da Bahia e viajando até o Pará chegamos no enredo que o Paraíso da Tuiuti vai contar, sob a batuta criativa de Rosa Magalhães e João Vitor Araújo. A inusitada dupla vai explorar a cultura marajoara em “Mogangueiro da Cara-Preta”. A concepção tem um quê de fábula, típico da professora, e revela uma história bastante curiosa: o naufrágio de um barco que levava especiarias e foi responsável por povoar a Ilha de Marajó com búfalos. Além da sua relevância histórica, a narrativa ainda acerta ao exaltar a cultura popular e revelar nomes como Mestre Mestre Damasceno, responsável pelo inusitado “búfalo-bumbá”, garantindo mais um passeio cultural e bastante rico na folia que se aproxima.
Passeando pelo regionalismo presente nas narrativas de Mangueira, Tijuca, Tuiuti e Beija-Flor, temos um recorte bastante interessante sobre a safra de 2023. São propostas que, apesar de terem nuances parecidas, exploram diferentes vertentes e com os mais diferentes fio-condutores. Vamos descobrir em breve como elas serão abordadas na Avenida! Em breve, voltaremos por aqui para nossa terceira e última análise dos enredos de 2023. Até!