Mangueira Campeas2019 118

Gostaria de iniciar esse texto com um questionamento emprestado do filósofo e crítico Walter Benjamin: “Não existem, nas vozes a que agora damos ouvidos, ecos de vozes que emudeceram?”. É possível que uma pergunta muito similar tenha passado pelos pensamentos de Leandro Vieira, enredista e carnavalesco do GRES Estação Primeira de Mangueira, quando as primeiras ideias surgiram para o carnaval de 2019. Afinal, no seu papel de contador de histórias – na função de desenvolver uma narrativa que seria defendida, cantada e propagada por uma comunidade inteira – optou por contar justamente a história das vozes que foram emudecidas. Toda escolha tem uma consequência, e a de Leandro Vieira, sem dúvida, foi “histórica”.

Benjamin nos diz que “a experiência que se transmite oralmente é a fonte da qual beberam todos os contadores de histórias”. E Leandro bebe diretamente nessa fonte quando busca ouvir os ecos que não foram transcritos nos livros oficiais. Afinal, grande parte das histórias que o carnavalesco levou para a avenida só chegou ao nosso conhecimento graças à transmissão oral, pela tradição dos nossos antepassados de narrarem seus feitos de geração para geração. O ato de contar histórias é a garantia da manutenção dessas experiências.

Contudo, o que Leandro Vieira e a Estação Primeira fizeram não foi simplesmente narrar o passado. Não houve apenas a rememoração deste como se fosse um tempo estático, como se o desfile somente propusesse uma reescritura do passado, substituindo uma versão por outra. O carnaval da Mangueira propunha, além de uma necessária amplificação dos ecos que foram silenciados, uma retomada dessas vozes.

E esse movimento acontece quando todo sambista canta o samba de enredo, não só no sambódromo, mas fora dele: em casa, no trabalho, na rua, na sala de aula. A transmissão oral dessas histórias por meio do samba possibilita que no presente e no futuro novos contadores possam reconhecer a luta dos povos que foram marginalizados pelos veículos oficiais e, mais do que reconhecer, possam dar continuidade às lutas que foram interrompidas pelos “vencedores”.

Os que foram “derrotados” em batalhas ou “mortos” pela seleção histórica são lembrados e possuem suas vozes ouvidas. Como o próprio samba de enredo diz, “Brasil, chegou a vez de ouvir as Marias, Mahins, Marielles, Malês”. E complemento: não só de ouvir, mas chegou a vez de também dar continuidade a essas vozes. Esse recado foi muito bem dado na comissão de frente da escola, que finalizou sua apresentação com a abertura de um livro escrito “PRESENTE”, uma evidente referência à Marielle Franco – vereadora carioca assassinada em 2018 -, mas também uma potente mensagem de que a história do nosso povo está presente e que os silenciamentos e as invisibilizações que ocorreram no passado não serão mais aceitas. Os “derrotados” não irão mais se contentar em servir de solo para o cortejo dos “vencedores”.

Esses conceitos foram traduzidos visualmente, principalmente, na segunda, na terceira e na quinta alegoria. O segundo carro alegórico da escola, “O sangue retinto por trás do herói emoldurado”, apresentava o Monumento às Bandeiras, localizado em São Paulo, e tornava presente a história ausente por meio de pixações em vermelho de palavras como “ladrões” e “assassinos”; e embaixo do monumento encontravam-se esqueletos que representavam, por exemplo, tamoios, tupinambás e mulheres. Benjamin diz em suas teses sobre o conceito de história que “nunca houve um documento da cultura que não fosse simultaneamente um documento da barbárie”, e é justamente isso que Leandro Vieira mostra nessa alegoria.

No último carro alegórico, “A história que a história não conta”, vemos essa mesma máxima, com os “heróis” emoldurados pela história pisando sobre os corpos assassinados. Leandro Vieira faz questão de colocar na avenida uma imagem oposta à que foi construída em nossa formação escolar. Ao invés de estarem em suas posições de glórias, são mostrados como assassinos – como destruidores das histórias e das culturas outras. E ainda hoje essas histórias ocultas subsistem às margens da oficialidade. Inúmeras histórias de índios, negros, mulheres, LGBTs e pobres ficam de fora das grandes mídias para dar lugar a nomes de personalidades que simbolizam a manutenção do poder de uma elite racista, machista, xenofóbica e eurocêntrica. Na contramão da exposição da barbárie, encontra-se a terceira alegoria, “O trono palmarino”, onde Aqualtune, Zumbi e Dandara são vividos por Tia Suluca, Nelson Sargento e Alcione, respectivamente.

Nesse que é um momentos mais significativos do desfile, vemos grandes nomes da contemporaneidade representando grandes líderes do passado, em uma dupla coroação (do passado e do presente) de personagens importantes da história brasileira que não recebem o devido prestígio.

A última ala da escola encerra de maneira memorável o desfile com uma bandeira do Brasil ressiginificada. Nela, além da mudança cromática para o tradicional verde e rosa de Mangueira, há a substituição da frase “ordem e progresso” por “índios, negros e pobres”. Leandro Vieira sugere que não há como aceitar uma ideia de progresso a partir de uma história única. É preciso estilhaçar essa cronologia, essa ordem, para que o futuro seja uma continuação das lutas do passado e do presente desses grupos que foram interrompidos por um poder que aniquila a diversidade, o outro, o diferente. Vivemos novamente em uma época onde os governantes tentam apagar as memórias do nosso povo, tentam dizimar o pensamento crítico e a consciência da nossa própria história. Só que agora ouvimos a voz do samba. Agora que damos ouvidos às vozes que outrora emudeceram, não iremos admitir que nos silenciem. O samba de enredo da Estação Primeira de Mangueira é um grito de guerra nessa luta diária em se fazer ouvido.

Cleiton Almeida
Coordenador geral Observatório de Carnaval/UFRJ
Graduando em Artes Visuais – Escultura/EBA/UFRJ

Referências bibliográficas:
BENJAMIN, Walter. O contador de histórias. Em: LAVELLE, Patrícia. (Org.). A arte de contar histórias. São Paulo: Hedra, 2018.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2012.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre Walter
Benjamin. São Paulo: Editora 34, 2014.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo:
Perspectiva, 2013.
LIESA, Abre alas: Segunda. Rio de Janeiro: LIESA, 2019.
SARLO, Beatriz. Sete ensaios sobre Walter Benjamin e um lampejo. Tradução de Joana Angélica d’Avila Melo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2015.

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