“Eu era feliz vestindo os couros de cabra que outrora usava. Mais do que o sou agoraem suntuosas roupas. Se eu pudesse viveria, não neste alcáçar, mas na tenda do deserto onde muge o vento. O camelo impetuoso de passo agitado eu amo mais que a mula de pacífico passo” (Califa Moawi)
“A Música árabe veio roçar com sua asa de fogo os cantares do nosso Romanceiro, assim como os toques das nossas violas e rabecas, (…) trazendo nas cordas de seus instrumentos e nas de suas gargantas as coplas, xácaras e romances cantados em ladino.” (Ariano Suassuna)
Tudo é sertão para quem é do Nordeste. Tudo é terra para quem não a tem. Forasteiros pisaram na terra nordestina. Ao cantarem, suas músicas tinham como plateia os ouvidos mais absolutos: os meninos descalços que corriam pela terra dura da lida. Reza a lenda sertaneja que “Criança, diante de sua sabedoria, faz bem três coisas: Brincar, chorar e imitar”. De memória, o som da música dos turcos-que-nem-sempre-são-turcos passou a ser repetida. Na transversal do tempo, o vulto branco que a poeira ruiva envolvia transformou-se em palavra cantada. Virou história romanceada. Fez nascer o Rei do Baião. O Baião é árabe, talvez por conta de o acordeon de Lua e Januário terem a ver com o Maltuf de outrora. De “repente”, tudo vem do passado.
A influência árabe no Nordeste está presente em muita coisa: no chapéu do cangaceiro, nos leques e guarda-sóis, na maquiagem das sobrancelhas e olhos, no ato de recitar a tabuada, na mantilha das mulheres, no uso de tapetes, nas janelas quadriculadas e nos azulejos… do comérciodo mascate ao turbante branco muruçumim, inclusive no gibão que cobre um cabra…
Diante dos conflitos mouriscos na Península Ibérica, a expressão cultural de Portugal e Espanha fundiram-se em poemas e romances de cavalaria, que encontrariam uma nova morada em terras nordestinas, de “pedras” e “reinos” e castelos armoriais. Palavras cantadas por homensque, de lá e de cá, conhecem o Sol e o deserto, as vértebras do camelo, as dunas que fazem as vezes de florestas, as vitórias na guerra cavalhada onde uma cabeça de boi se finge de máscara…Os “beduínos do Nordeste” são nômades que seguem firmes na luta. O verbo é a arma que eles usam na disputa dos repentes.
Das feiras de Ocaz, cidade vizinha de Meca, ao canto do Guerreiro Menino de Orós. Anualmente, milhões de islâmicos do mundo inteiro refazem os passos do profeta Maomé em sua “romaria”. Todo muçulmano deve ir uma vez à meca da mesma forma como todo sertanejo deve visitar ao menos uma vez na vida o santuário de Padre Cícero, a quarta figura da Santíssima Trindade.
Nesse contexto encantado, o tempo explica esta vitalidade garrida de um povo, que, de tão único, parece lendário, armorial. Aqui, os muezins das mesquitas passaram a ter o som do aboiodos vaqueiros. Os raqs viraram pandeiros, os tabals, zabumbas, e há quem diga que o atabaque também tem sangue mourisco. Assim como a trilogia sertaneja – pífano, rabeca e viola – ainda ressoa em solo nordestino a sua música num passado andaluz. Terra onde as morenas também nascem esculpidas pelo vento. A brisa mourisca ainda respira nos pulmões o lingui-lingui – ou a lenga-lenga – na gíria dos cantadores: De Taboca à Rancharia, de Salgueiro a Bodocó, graças a Deus! (Ou seria Alhamdulillah? Arre!)
A barra do dia veio avermelhando o céu. A lâmpada maravilhosa, “Lampião” que alumia a estrada revela que tudo é migração. Tudo é êxodo. Tudo é guardado na potência da memória e na força da cultura. O barro seco do caminho que levou o árabe ao Nordeste parece ser o mesmoque leva o nordestino ao Sul. E todos têm a cor da poeira vermelha que a Unidos de Padre Miguellevanta ao desfilar. Nas terras ruivas da Rua Mesquita, tudo é Sertão, o boi é mouro e a vitória vem de Alá!
UNIDOS DE PADRE MIGUEL, 2023
Carnavalescos: Edson Pereira e Wagner Gonçalves
Texto: Vítor Antunes
Vocabulário:
“A vitória vem de Alá!”: Trecho de um amuleto malê confiscado durante a Revolta dos
Malês.
Alcácer/Alcáçar: Castelo ou fortaleza que, criado pelos mouros, era usado para hospedar reisou governantes Alhamdulillah: Graças a Deus, em árabe
Arre!: Interjeição de espanto que, supostamente, tem origem árabe
Beduínos: Nômades do norte da África
Califa: sucessor do profeta Maomé. Guia ou líder temporal e espiritual da comunidade islâmica.
Mouro/Mourisco/Mouresco/Moura: Nome pelo qual os descendentes do norte da África costumavam ser chamados na península ibérica
Muezins: Aquele que anuncia em voz alta, ao cantar, do alto dos minaretes das mesquitas, o momento das cinco preces diárias.
Muruçumim: Atribuição que os negros muçulmanos davam a si próprios. Os outros os chamavam malês. Os turbantes brancos usados nas religiões afro-brasileiras teriam origem nos filás malê/muruçumim.
Referências:
ASMAR, João. Os árabes no sertão. 1.ed. 2010. São Paulo: Kelps, 2010.
CÂMARA CASCUDO, L. da. Mouros, franceses e judeus: três presenças no Brasil. 3. ed. São Paulo: Global,2001.
DEL CAMPO, Luis Soler. Origens Árabes no Folclore Brasileiro ed.
GAIÃO, Pedro. História Islâmica, 21 de Maio de 2021.
MUSSA, Alberto. Os Poemas Suspensos. 1.ed. Rio de Janeiro. Record. 2006
RAMOS, Alex. PEREIRA, Estevão. DIAS, Rômulo. EL DROUBI, Assaf. Dos Mouros ao Baião: a influência árabe na música do nordeste brasileiro.