Manhã de carnaval. O dia nasce e paira no ar qualquer coisa de beleza, de encanto e poesia, uma magia que não há nos outros tantos dias. O tempo, sem pressa, corre em outra cadência, sincopado e dolente na doce ilusão dos dias de folia. A cidade, ou melhor, a nossa cidade, é o espaço ideal para esta “ofegante epidemia” que conferiu a sua própria identidade. A cidade, afinal, só é nossa pois foi conquistada nas frestas da festa. O que seria do Rio sem o carnaval? Toda profusão de cores que brilham nas ruas, tomadas de muitos e muitos corpos – de todos os tipos – que dançam, pulam e vibram ao som de vários ritmos, dos múltiplos batuques, toques, cantos e louvores que ecoam feito um grito afirmativo: nós somos carnaval!
O Rio é cidade-folia pois assim foi forjada: sua história pode ser contada, de forma fidedigna, através dos carnavais. O cortejo de Momo foi um espaço privilegiado das lutas pela cidade, dos distintos projetos políticos que encontraram na festa o local adequado de se expressarem e nela disputaram. E nesta batalha política, onde as elites queriam domesticar as formas brincantes, o povo venceu! Foram as formas populares de expressão carnavalesca que sobreviveram, cresceram, se consolidaram e ajudaram a construir a cultura carioca. O carnaval, nestas terras, sempre foi político, sempre foi política. Seguirá sendo.
Este ano que mal se iniciou, 2021, ficará marcado na história já que a pandemia impedirá os cortejos. Se o ano só começa depois do carnaval o que será de 2021? Não viveremos o encantamento coletivo que toma a cidade e transforma tudo que existe, fazendo com que, durante o reinado de Momo, tudo por aqui se carnavalize. Neste ano não. Por justificáveis, compreensíveis e incontornáveis razões os blocos não estarão nas ruas, os festejos dos cordões não serão realizados e as escolas de samba não produziram seu ritual festivo-competitivo que, desde 1932, mobiliza um crescente e apaixonado número de fiéis, admiradores e curiosos.
O meu carnaval é o das escolas de samba. Respeito, admiro e gosto de blocos e cordões, onde brinquei e me diverti em muitas ocasiões, mas o meu carnaval é mais de avenida e, nos últimos anos, de forma quase exclusiva. O ritual carnavalesco de um amante das escolas de samba é particular. Em uma manhã de carnaval uma atividade comum é descer, ao centro da Cidade, para contemplar as alegorias das agremiações já postas, sendo finalizadas na Avenida Presidente Vargas e já entrar naquele clima inexplicável da Praça Onze, onde o terreiro Marquês de Sapucaí está localizado.
Vou dividir a minha rotina: durante todo dia, a trilha sonora é composta por uma mistura equilibrada de sambas enredos clássicos e os do ano. Cuidados de última hora com a fantasia também são frequentemente necessários, geralmente com costureiras do bairro contribuindo para que a vestimenta, que vale ouro, esteja nos conformes. O deslocamento para o Sambódromo é algo a parte: o metrô festivo, lotado de sambistas com suas fantasias em sacos, suas bebidas em bolsas e a imensa alegria em cada rosto. Basta um primeiro desinibido puxar um samba, geralmente eu, e o vagão responde em coro. Ao chegar nos arredores do grande palco, a emoção transborda. As luzes, ainda sendo testadas, atestam que o dia, de fato, chegou. E lá vai aquela legião de apaixonados, ocupar os lugares das arquibancadas para vibrar e aplaudir as concorrentes, e brilhar na pista não apenas representando, mas tendo a oportunidade de ser na avenida a sua escola, as nossas escolas.
Hoje acordei angustiado. Afinal, é manhã de carnaval e a tal magia que espalha beleza, encanto e poesia está no ar. Os nossos corpos sentem que é tempo de folia, sabem. Mas não será, não poderá ser. Para que possamos seguir fazendo festa e sendo carnaval, as fantasias precisarão permanecer nos barracões, os batuques longe das ruas e os coletivos que ajudaram a inventar a nossa cidade não irão sair.
A saudade aperta, dói, mas existem soluções, sempre existem formas de amenizar a dor. Podemos matar a saudade assistindo e prestigiando as dezenas de iniciativas de sites, canais e blogs que vão, desde a reexibição e análise de desfiles, até programas de entrevistas, debates e cursos. É necessário reconhecer, parabenizar, louvar e, principalmente, apoiar estas tantas ações. Se não vai haver carnaval como momento anual de ocupar as ruas e expressar as culturas que, através das frestas, produziram a cidade, são muitas as iniciativas de valorização, preservação e difusão da cultura do samba. O bom folião há de prestigiar e novamente se emocionar com carnavais passados que seguem pulsando em nossos corações na espera de novos arrebatamentos nos carnavais vindouros.
Que venha a vacina para que a rua volte a ser nossa e façamos da vida um eterno carnaval.
Mauro Cordeiro – Doutorando em Antropologia (UFRJ), Mestre em Ciências Sociais (PUC-Rio) e Licenciado em Ciências Sociais (UFRRJ).
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