Enredo: Vozes ancestrais para um novo amanhã
No princípio, era o sonho…
A vida tocava o meu rosto com seu vento;
banhava meu corpo com as águas límpidas dos rios que cortam a floresta.
O solo germinava a beleza e fornecia o sabor da eternidade.
O céu cristalino emoldurava a despretensiosa dança das plumagens.
Assim vivíamos no tempo do sonho.
Foi o que ouvi dos espíritos xapiri, quando imergi no transe de yakoana.
Um caminho de luz resplandeceu por entre as matas
e eles vieram até mim dançando com todo seu brilho e esplendor.
Em transcendência, ouço seu canto e suas histórias.
Eles me contaram que quem criou a floresta e os rios foi Omama;
quem formou as árvores e as plantas, as flores e as sementes;
quem concedeu todo esse paraíso fazendo de nós seus descendentes.
No seio da floresta construímos nossas malocas,
cantamos e dançamos com nossos filhos e mulheres nas festas da aldeia.
A terra, o céu, os rios, os animais, tudo em equilíbrio, tudo em seu lugar.
Trama perfeita de Omama que chamamos de lar.
Mas um dia no horizonte surgiu xawara.
Era o final do tempo do sonho e o começo do tempo da estrada.
Sobe a fumaça do metal, escorre a lama da ganância.
O ouro canibal devora o sonho e patrocina a matança.
A cruz que esteia o “progresso” desencarde a invasão.
Em nome de um vulgo senhor, rouba minha terra e profana meu chão.
E foi assim que a gente de Yoasi foi esvaziando a floresta de seus habitantes.
Desfilando suas máquinas à diesel sobre o nosso sangue.
O orvalho sumiu do véu das cachoeiras,
tantas histórias diluídas em meio às labaredas.
Sou Caeté, Cariri, Canindé, Tapajó, Guarani, Potiguar…
Meu corpo pereceu, mas minha memória ainda habita o maracá.
Eu sou a voz que ecoa da floresta,
sou a resistência dos povos originários.
Sou a luz da esperança que ainda nos resta,
sou o brado em defesa do nosso santuário.
Eu sou o retumbar do canto dos meus ancestrais,
sou a confluência de 305 povos que ainda hoje clamam por respeito.
Sou o vestígio de centenas de nações que foram extintas
e o vislumbre de um futuro que será refeito.
Eu transformo filosofia em lenda para que você entenda a minha história.
Nossos mitos são sagrados porque a tradição é a nossa escola.
Em cada conto, a nossa luta ganha imagem e poesia.
Ressoamos nossa voz através da nossa mitologia.
Se a Terra aquece feito brasa,
Aru balança o remo e traz brisa.
Quando das águas fiz brotar Tapiraiauara,
denunciei o descaso que a natureza vinga.
O brilho mortal da cobiça
reluz nos olhos da fera que emerge da terra.
Boiúna de fogo encandeia a noite
para os filhos de Anhangá vencerem a guerra.
No transe de rapé, a magia do pajé paira na aldeia.
Sua reza é forte e afugenta a morte cessando nossa dor.
Mil cobras aladas no clarão da lua cheia
devoram Xawara, o monstro devorador.
E assim, com mitos e lendas, vamos tecendo o nosso ideário.
A nossa visão de mundo é real porque é mítica,
mas nossa luta é tão poética quanto política.
Ainda sonhamos com um Brasil originário!
Respeite as vozes ancestrais que repercutem no Planalto
reivindicando a maternidade da Pátria-Mãe hostil.
Se há um marco temporal, este é 1500;
quando Pindorama não era Brasil.
Que as palavras de Sônia, Joênia, Célia e Juruna
demarquem seu pensamento devastado.
E a luta de Tuíre Kayapó, Raoni, Ailton Krenak, Davi Kopenawa e tantos mais
reflorestem seu coração colonizado.
Ouça a sabedoria que emana das matas,
o canto dos beiradões e o som das cascatas.
Reconhece tua cara, Brasil, e não se deixe mascarar
Teu sangue é caboclo e tua vocação é ser Guajupiá!
Ouça a minha voz no canto dos Gaviões!
Ela é flecha que atravessa o tempo, luz que ilumina gerações.
Se a floresta é a vida, a minha voz é guardiã.
Enquanto existir o povo indígena, ainda existirá o amanhã.