Enredo: “O ar que se respira agora inspira novos tempos”

Como homenagear um dos maiores versadores do samba? Antes que me puxem a orelha, ou digam que estou puxando sardinha para um dos meus filhos pródigos, todos sabem que nosso Xande é um dos grandes improvisadores da nossa cultura. Então, se me permitem arriscar um verso, podemos dar início aos trabalhos.
“Falo de um cria do Turano
Que também morou no Andaraí
Até parece Andarilho
Gosta de andar por aí
Não posso esquecer de Trindade
E falo dele com carinho
Leva o nome de Pilares
Mas estourou no Jacarezinho”
Este verso não é uma mera coincidência, afinal, toda essa história se inicia no Morro do Turano. Não apenas uma história de vida, mas também os caminhos que guiaram sua trajetória. Caminhos que foram preenchidos por percalços, mas que não o impediram de sonhar. Fosse ao longo do tempo como entregador, auxiliar de serviços gerais, durante os momentos que escrevia seus nomes pelas paredes e jardins, dando vazão à veia artística através de marcas que foram constantemente apagadas pelos patrões. Ainda assim, não importa quantas vezes tentaram apagar seu nome, ele continuou sendo escrito e reescrito, perseverando em sua força de vontade, que o fez chegar onde está. Está, pois para Xande, o sonhador precisa continuar a sonhar, então não existem linhas de chegada: sempre há chão para trilhar.
Foi no Turano que conheceu e se encantou pelos versos falados da Folia de Reis, referência que mais tarde se juntou ao repente de Jackson do Pandeiro e Caju & Castanha, além do verso cantado do Cacique de Ramos, de tantas visitas com o primo Guará, gerando seu estilo único, afiado e marcante. De lá, encontrou rumo do Morro do Andaraí, onde viu as primeiras referências. Seja a aproximação com o universo das escolas de samba por intermédio da Alegria da Passarela, ou pelo contato com ídolos geracionais como, Geraldo Babão, Gaspar, Nonô, Adalto Magalha e Almir Guineto.
O fascínio pelo samba continuou a aflorar quando novos ventos sopraram rumo à Trindade, em São Gonçalo. Lá, teve contato com a rivalidade entre Boêmios da Trindade e o Juazeiro do Caçador, abrilhantando seu encanto com os blocos de carnaval, agregando à sua paixão pela festa. O samba, então, deixou de ser apenas a menina de seus olhos, tornando-se também ganha pão. Ao chegar na comunidade do Águia de Ouro, o Viaduto de Pilares se transformou símbolo da vida pendular, o atravessar de caminhos para conquistar o que era seu. Se, para um lado do viaduto estava a busca pelo pão, do outro lado, ficavam pelo trajeto do Viaduto as lágrimas que não tinham lugar dentro de casa. Pilares de tantos desabafos, onde Guará o nomeou Alexandre de Pilares, que depois virou apenas Xande, até que, com o espelho de Carlinhos, finalmente se tornou Xande de Pilares.
A vida ganha novos destinos e novas possibilidades frente à chegada ao Morro do Jacarezinho. O encontro com Barbeirinho, Zé Dedão e outros lhe rendeu inspiração, ainda mais obstinado a vencer. Aqui, mais do que irmanados, nos tornamos cúmplices. Cumplicidade na sobrevivência e cumplicidade num sonho, que se revelava cada vez mais. Não foi nessas ruas que ouviu pela primeira vez “Compasso do Amor” tocar nas rádios? Não foi descendo as ruas e vielas deste morro para tocar com o Revelação que as coisas começaram a virar? Então a celebração será em nosso chão.
“Nos mistérios do Senhor da Luz
Bolou um papo na escala de Fá
Desvendando um Eldorado submerso
E lá no Bixiga fez Sankofa
Com os sabores do fundo do quintal
Em Gaia fez um alerta ao mundo inteiro
Versou as senhoras do ventre ancestral
De corpo fechado só entende quem é Salgueiro”
Se a trilha da caminhada artística de Xande floresceu no Jacarezinho, foi também aqui que os passos começaram a ser trilhados para o samba-enredo. Foi frente aos mistérios do Senhor da Luz que pela primeira vez seus versos ecoaram na sagrada avenida. Num delírio Tupi-Parintintim, a caneta inspirada musicou a jornada da Unidos de Padre Miguel para descortinar os mistérios de um Eldorado submerso, e trespassando barreiras geográficas, pôs tinta no papel para exaltar Sankofa, ecoando no Anhembi a preta batucada do Vai-Vai. Teve também o privilégio de musicar a maior homenagem que um sambista pode receber, e rolou aquele papo que cabe na escala de fá, perfeito para o partideiro versar, para que o Império Serrano pudesse homenagear Beto Sem Braço.
Mas passear pelas obras e influência de Xande no carnaval brasileiro, é inevitavelmente traçar a rota para o Morro do Salgueiro. Não só como fonte de inspiração, mas a verdadeira jóia no coração desse salgueirense da cabeça aos pés. O início de uma jornada traçada pela exaltação à criação do mundo por intermédio de Olorum, trazendo um alerta ao mundo inteiro sobre a necessidade de prezar pela vida em nossas mãos, que atravessou os profundos saberes e sabores do fundo de quintal, e nos brindou com a exaltação da mulher negra em toda a sociedade, ventre ancestral que gerou a vida que se espraiou na Terra.
E nos parece somente justo que, a trajetória daquele que emprestou não somente caneta mas como também voz, tenha tido como capítulo mais recente a exaltação à proteção espiritual. Com Oxóssi, Oxaguian e Oxum a cuidar-lhe a cabeça, Ogum a proteger e o povo cigano a guiar-lhe os caminhos, Xande pôde mais uma vez apresentar à Academia do Samba o que tem de melhor, ecoando uma vez mais na Sapucaí a potência dos versos malandriados na escola de coração.
“O ar que se respira agora inspira novos tempos
Parcerias que deixam radiante o meu coração
Alegrias, tristezas, amores e decepções
Emoções que eu senti com o grupo Revelação
Nosso filho pródigo Xande de Pilares
Com muito orgulho eu vou te falar
Você é nosso enredo tá escrito
É Deus quem aponta a estrela que tem que brilhar”
Mas na nossa realidade, trajetórias não se constroem de maneira isolada. No mundo do samba, principalmente, as parcerias se tornam pontos centrais das nossas estradas, e acabam se misturando e se tornando parte de nossa própria identidade. A exaltação à Xande, passa também, por exaltar as grandes parcerias desenvolvidas ao longo dos anos, aqueles com quem nosso poeta desenvolveu tantas e tantas letras, e construindo um legado que desfilou pelo Pagode da Tia Gessy, Vem que Tem, Pagode dos Magnatas, Olimpo, Cacique de Ramos e tantos outros palcos que edificaram o samba na cultura popular.
Se pensarmos nas parcerias, não seria surpresa que o Revelação merecesse um capítulo por si só. Aqui, não se trata somente da junção de pessoas para construir uma canção, mas da conexão de ideias que revolucionaram a história do samba. Seja por intermédio das canções de própria autoria, ou dando voz e vazão à construção poética de tantos outros compositores, o grupo tem protagonismo claro e evidente em meio às parcerias que perpassam a vida de Xande. Entretanto, neste capítulo, é impossível não traçar um anexo para Mauro Júnior, o colaborador mais prolífico da sua carreira enquanto compositor, exemplificando um entrosamento que superou os limites dos palcos e das rodas de samba, e foi de encontro aos telefonemas, vinhos e churrascos para ajustar versos e melodias.
Conexões que não se encerram apenas nos entornos do grupo, mas que agregam e trazem para perto de si outros irmãos de caminhada, de composição, de vida. Tratar da figura de Xande de Pilares sem tratar da figura de Gilson Bernini seria como separar o arroz do feijão, analogia que se faz não só pela combinação perfeita, mas pelo que a dupla nutriu o meio do samba ao longo de tantos anos de irmandade. Elo que também se mostra resistente e frutífero com Helinho do Salgueiro, autor de tantas composições que afloram o sentimento e falam ao coração, e grande responsável não só pela união do Revelação, mas também por convencer Xande a ser o cantor do grupo. Que se mantém forte na parceria com um ídolo de tantos como Arlindo Cruz, e também mora na continuidade do legado imortal do Fundo de Quintal nas colaborações com André Renato, cedendo também, junto de Moisés Santiago, caneta para que o maior grupo de samba do Brasil possa cantar.
Ao final do dia, as letras de Xande nos afetam de forma diferente. Poesia que nos acompanha nos momentos de felicidade, de tristeza, de amor, de coração partido, de retribuição e de agradecimento. Talvez, more naqueles que são seus versos mais famosos, a inspiração que todo sambista já precisou ouvir uma vez na vida, o combustível para seguir em frente. A certeza de que, mesmo que demore um pouco, a felicidade há de chegar, e é justamente por isso que não devemos parar de sonhar. Se até aqui fizemos verso e prosa aos poetas que irão musicar esta merecida homenagem, agora a comunidade do Jacarezinho fala para você.
Quando Tia Dozinha lhe disse para engolir o choro frente à baixa do Quartel, é porque ela sabia que o “sim” de Exu é um presente, e o “não” são dois. Se é Deus que aponta a estrela que tem que brilhar, Xande, então não temos dúvidas que tua trajetória iluminada tá escrita, através da própria tinta de Deus, posta a próprio punho no papel para refletir tamanha jornada. E, tu que tanto cantou, se permita deixar com a gente esse capítulo da sua jornada: Vem ser cantado pela tua gente! Hoje, o Jacarezinho canta Xande de Pilares, que também é Xande do Jacarezinho, inspirando novos tempos para uma comunidade que transformou prata em ouro com fé de que sua hora ia chegar.
E chegou.
Carnavalesco: Bruno Oliveira
Enredista: João Luiz Silveira