Enredo: Carolina Maria de Jesus

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Foto: Divulgação/Tijuca

CAPÍTULO I

O primeiro capítulo da vida de nossa homenageada nos leva ao encontro de Bitita — que significa “de cor preta” na língua changana do Moçambique —, nome que carrega a lembrança de sua infância nos confins do cerrado mineiro, nas entranhas de um Brasil do início do século passado. Um cenário no qual o tempo persiste, colorido por marafantonas e congados, desenhado pelo ar incandescente que entalha o barro e doura o capim, iluminado pela fé e o fulgor dos candeeiros.

Nos braços de seu avô, Benedito — o ancestral daquelas cercanias — , aprendeu os segredos que só o tempo revela no encanto do falar e do ouvir; e nas barras das saias de sua mãe, tias e madrinhas, se entrelaçou ao poder das coisas ditas, ao espírito desconhecido das letras e palavras, aquelas as quais ela desejava conhecer. Era esse o seu universo de menina, ainda um ramo doce de uma raiz fincada na sabedoria dos mais velhos, transmitida do ontem para o hoje nos dizeres daqueles que lhe ensinavam o espírito das coisas ditas, de tudo o que ela desejava conhecer. Bitita deu lugar à Carolina quando aprendeu que para existir aos olhos do mundo era preciso ter um nome: a sua assinatura.

CAPÍTULO II

Feito rosa em coração de broto, Carolina desabrochou e compreendeu, lendo os nomes de outras flores e os silêncios nas entrelinhas, que herdara na pele e no sangue a personagem antagonista dos romances perfeitos, representante legítima de um Brasil cuja abolição fora mais literária do que real.

Na roça do ouro negro, onde foi servir ainda moça, encantou-se pela lira da desobediência, levada pelos versos proibidos saídos das liras dos folhetins, que se misturavam aos passos fortes das catiras, acendendo o orgulho de sua carapinha.

Do tal áureo decreto, tão falado, conheceu apenas as sementes e espinhos, os artigos que rangeram em seus ossos quando presa, açoitada e humilhada por portar um dicionário: livro julgado pela capa preta; preta como ela! No auto improvisado de sua inquisição, foi chamada de feiticeira e acusada de vingança contra gente branca. Marcada profundamente pelo episódio, nunca mais veria aquelas terras como seu lar, escolhendo ir ao encontro de outros lares na esperança de talvez vislumbrar um novo caminho.

Lavando incertezas, lustrando os passos e desempoeirando sentimentos, foi ser mais uma Maria — sobrenome comum ao afazer doméstico, substantivo próprio da Casa de Família. Mas, sendo verbo em carne viva, sempre atormentada pelos versos crônicos e entregue à demasiada imaginação, deixava os afazeres por qualquer pedaço modesto onde pudesse derramar sua vocação. Seu “eu”, raro e lírico, não se encaixava como sujeito naquelas frases definitivas, nas rotinas intransitivas entre as “grades de prender gente” feito bicho.

Descontente e tomada pelo sonho, escreveu para si outro destino: a poesia — bálsamo de sua alma, remédio de suas inquietações. E por isso decidiu partir, dessa vez atraída pelas notícias fantasiosas de uma tal terra prometida, o eldorado dos retirantes.

CAPÍTULO III

Carolina Maria seguiu rumo ao seu desejo, rumo a São Paulo, a metrópole em primavera, canteiro das oportunidades, onde amanheceria sob o peso das verdades concretas, cercada pelo ranger cinzento dos edifícios estáticos, verdadeiros girassóis de cimento, imóveis à luz de suas esperanças. Ali nasceria De Jesus — peregrina de palavras, batendo de porta em porta com seus escritos em mãos à espera de uma chance, de ser vista. Invisível aos olhos editoriais por sua natureza desenquadrada dos padrões, era tratada como desvairada, ainda que único desatino fosse a tontura da privação, a vertigem dos Pedaços da Fome, que a assombravam como consequência da falta de emprego; fome que tinha cor, fome amarela, sem brilho.

O lugar que havia sido reservado a ela era a margem: a favela, jardim de destroços, onde seus únicos alentos, como os de tantos outros, eram amores de uma noite, sambas de raras madrugadas e a companhia — nem sempre solidaria — daqueles que também tiveram o seu mesmo infortúnio. Era mais uma cujo couro tinha o tom certo para saciar a sede de violência das sentinelas e patrulhas que varriam as vielas paulistanas em nome da lei e da ordem, açoitando toda a sorte de gente, trabalhadores ou vadios, em nome de uma justiça que só tinha olhos para predar os menos favorecidos.

Para tirar o sustento do corpo e da alma, catava papéis e histórias, tanto para ter o que comer quanto para ter o que oferecer aos filhos, que agora também a acompanhavam, fazendo-a provedora daquilo que mal tinha para si. Criativa, transformava o que não tinha valor para os outros no seu tesouro de virtudes: cacarecos de esperança, banquetes de uma colherada e remendos de expectativa.

Sentindo-se abandonada pela cidade-luxo, narrava, nas sobras de suas catações, tudo o que via e sentia ao seu redor, e foi assim que o mundo a conheceu: refugiada na miséria do Canindé, erguendo dos escombros a sua moradia, fazendo do Quarto de Despejo a fortaleza de suas produções. Descobertos num episódio cênico e reunidos em uma única obra que, publicada, inaugurou um parágrafo distinto em sua trajetória: era agora “a favelada que escrevia”, a expiação das mazelas sociais para uma elite torpe e uma classe média deslumbrada com o exorcismo de suas próprias culpas.

CAPÍTULO IV

A realidade escandalosa e profunda de seus dizeres, fizeram-na a própria voz dos marginalizados. A classe política, escancarada como objeto direto da degradação pública, era figura recorrente de seus discursos, refletida no oportunismo de seus representantes, que só tinham olhos para a miséria em tempos eleitorais. Questionadora, interrogava as radiolas e seus cantores emplumados, cujo silêncio sobre as sarjetas não entrava em sintonia com os compassos e a métrica da realidade.

Em dramática retórica, reivindicava também o seu espaço no circo social, denunciando o palco que foi negado para as tantas peças que escreveu e ofertou para companhias itinerantes sem sucesso. Para ela, eles viam em sua raça e nas suas saias as verdadeiras lonas rasgadas, um desagrado ao respeitável público.

Na construção de cada fala, desconstruiu a romântica favela dos sambas de época, e publicou, trecho por trecho, o desejo maior dos desabrigados moradores dos restos: a Casa de Alvenaria, símbolo do pertencimento à cidade. Da “marginal escritora” fez-se um arquétipo e a obrigação de “vestir-se para consumo”. Limitada sob o lenço e presa na moldura da favela, foi resumida ao Diário — verdadeiro artigo de luxo dos intelectuais —, um lugar que não lhe cabia, onde ela nunca aceitou estar.

E sua recusa em ser um fantoche nas mãos da imprensa e das grandes editoras teve consequências: a ousadia de contrapor a estrutura, de transpor as barreiras tão estabelecidas, a colocaram da porta pra fora dos saraus de velhas normas. Nessa posição, viu suas obras serem mutiladas e suas visões – agora sob novo teto – serem lançadas ao breu do esquecimento. A escritora preta sem a calamidade não interessava ao espetáculo escolhido para entreter o Brasil.

CAPÍTULO V

A força de sua imagem retinta e altiva apontou para outros horizontes dentro e fora de seu tempo, no rasgamento de um contrato social estabelecido de geração em geração. O apagamento de seu nome e a dispersão de seus escritos por entre as seções e prateleiras da literatura brasileira não foi mero acaso, e sim obra do descaso proposital, da tentativa de calar. Contudo, a força de seus versos resistiu, mesmo ante o esquecimento, irrompendo nas memórias perdidas feito um luzeiro, abrindo caminho para que outros pudessem fazer daquelas escrevivências uma fonte de inspiração.

Para aqueles que viveram na pele os mesmos cenários, que nasceram também fadados aos futuros menos promissores, sua figura reluziu como um lembrete sobre outras perspectivas; outros desfechos. As falas livres, seus mais educados gritos de resistência, recortaram entre as aspas o país quanto ao gênero, na doçura e nas dores do “ser mulher”, no questionamento da diferença, um espelho de suas metamorfoses e indignações – as mesmas de tantas ainda hoje.

Sua gramática das ruas, mistura refinada do pretuguês com as catedráticas orações e rimas, deu forma e entendimento à gigantesca babel de cultura que somos, desafiando o preconceito da língua, da classe e da cor, abrindo parênteses entre os parágrafos, quebrando as vidraças das capas duras e das citações permanentes. Testemunha vivente de um Brasil a parte, bradou na escrita a luta dos negros heróis da história e também do cotidiano, dos não representados e nunca exaltados, dos expatriados na geografia do capital, vitimados pelo racismo que segrega, fere e mata.

Ela permaneceu. Presente. Em movimento. Este enredo – que nada mais é senão o livro de sua vida costurado pelos retalhos de suas contações -, se encerra aqui para voltar ao começo, colocando a assinatura, sem a dúvida da ordem, no devido lugar e importância, e celebra, como ela celebraria, as muitas Carolinas que continuam a fazer história através das letras que um dia foram dela.

Carolina Maria de Jesus, sem menos, porque este é o seu nome.

CARNAVALESCO: Edson Pereira
ENREDISTA: Gabriel Melo
CONSULTORIA: Fernanda Felisberto