Enredo: “BERENGUENDÉNS & BALANGANDÃS”

marica2026

Estamos na velha Bahia, a Roma Negra como tão bem definiu a ialorixá Eugenia Anna dos Santos ao tentar dar conta da centralidade da cultura negra para a formação da identidade daquele território. Voltando no tempo e olhando para o passado, estamos na beira do cais de uma antiga Salvador e, de lá até a mais alta ladeira que nos leva às portas dos sobrados da cidade alta, o que se vê é o Brasil colonial e o vai e vem de corpos retintos apregoando aves, bolos, mingaus e peixes frescos.

Em meio à cena, o que chama a atenção é a quantidade de mulheres pretas empunhando tabuleiros que exibem bolos e frutas tropicais. Quitutes de toda sorte, ofertados a granel, que perfumam o ambiente. Perfume ora doce, ora salgado. Para comer com a boca e com os olhos.

Nesse recorte público, quem olhar com mais atenção o sobe e desce das ladeiras, enxergará o luzir de joias feitas em ouro e prata enfeitando os corpos que desfilam. Símbolo de poder e status, os artigos são brincos para as sinhás e anéis para os dedos dos senhores. Um camafeu ao gosto português no colo de uma senhora de pele alva. Uma cruz bordada com incrustações de rubis no peito do Bispo e, também (e por que não?) uma penca sonora junto ao ventre de uma preta que equilibra seu tabuleiro em meio ao som continuado que empresta uma sonora trilha para a sua caminhada: Barangandãns…Belenguendén…Berenguendén… Balangandãs…

Ornando seu corpo retinto em meio aos martírios da escravidão, o brilho das joias trazia a lembrança de um território livre, aonde reis e rainhas eram cobertos por luxo e riqueza. De deuses engalanados e mulheres livres numa África – de ouro e de prata – que nem de longe podia ser imaginada no degredo da imposição do trabalho forçado nos trópicos.

À luz do sol que ilumina uma Bahia escravocrata, a presença de metais preciosos reluzindo como ornato para um corpo negro de mulher evocava, em quem os ostentava, a memória dos metais que deram fortuna à soberana haussá Amina de Zaria. Uma joia, em uma mulher preta da Bahia de tempos idos, trazia a presença de Nzinga, a Rainha de Matamba e as histórias de que, após ser vitoriosa em uma guerra, teria sido vista coberta por fios de latão, ligas maciças e fartura de colares dourados.

Ali, balançando feito chocalho junto ao corpo, estava também saberes africanos sobre a fundição dos metais. Na peça, que funcionava como adorno, está o trabalho das mãos de um negro malê que deu a um cilindro os desenhos feitos no cinzel e o espaço oco em que as pretas guardavam seus pós de mandingas ou, quem sabe, fragmentos do alcorão tidos como relicário.

Eternamente gravadas nas peças ornamentais que embelezavam o baixo-ventre de mulheres negras, estão as digitais dos negros da Guiné, vindos do Império Axânti, seus saberes sobre a extração dos metais, sobre a faiscação do ouro, as filigranas desenhadas em fios tão preciosos quanto precisos e o culto a Ogum.

Sobre isso, é curioso pensar que, no som do balanço das teteias pendentes que deram nome à peça ornamental produzida em território brasileiro, também está o toque ritmado do adarrum que saúda Ogum, divindade trazida pelos cativos vindos para cá na travessia das calungas. No ouro ou na prata dos balangandãs está a memória ancestral da forja do senhor do ferro e a emulação fragmentada de seu assentamento de fetiches pendentes. Ele – o balangandã – é parte da armadura da divindade que guarda com as suas armas o corpo alheio. Sua espada, sua lança e a sua faca transmutada em joalheria.

Um chocalho de badulaques. Berloques encantados para as pretas que os ostentavam no balanço das caminhadas. Balançando pra lá e pra cá, via-se requebrando junto aos quadris que se mexiam, uma chave propiciatória na intenção de abrir caminhos. A evocação para a incorporação da força de um gato-maracajá em um dente felino encastoado de prata. Um adorno barroco e tropical onde o pouso de dois papagaios está eternamente aprisionado em uma amálgama metálica rígida presa à cintura por uma corrente de argolas.

Amuleto para pender uma figa de jacarandá, azeviche ou coral. Evocação de ancestralidade com sabor de fruta fresca. O culto aos orixás transmutado nas curvas de cajus com castanhas de ouro oco (Kaô Kabecilê, valei-me meu pai Xangô!); em gordas romãs bordadas em prata (Epahey, senhora das nuvens de chumbo!); ou em belos abacaxis enfeitados com espinhentas coroas metálicas (Atotô Bábá, a sua benção Omulu!)

Era visto rebolando nas cinturas das pretas engalanadas nas festas da Conceição da Praia. Presente na memória dos encontros na Igreja da Barroquinha. Chocalhando na Baixa do Sapateiro junto aos festejos de Santa Barbara ou em meio à brancura das rendas e dos camisus das pretas que se apressavam rumo à colina do Bonfim. Artigo misturado junto aos brincos de pitanga e aos colares agigantados, brilhando em penca, na beca e nos panos-da-costa das mais antigas irmãs da Irmandade da Boa Morte.

Joias fartas luzindo diante dos olhos de uma sociedade racista. Artigo subversivo que documenta o êxito de mulheres rebeldes que se deixaram chamar de “sinhás pretas” tamanha a riqueza acumulada. Matronas ancestrais que se tornaram símbolos de ascensão social e liberdade. Donas de seus caminhos quando os caminhos ostentavam portas fechadas. Mulheres que fizeram de suas joias um cofre que se carregava junto do corpo. Poupança e pecúlio para planos maiores e operações financeiras que lhes garantiram o maior dos investimentos: a compra da própria liberdade.

Nesse artigo de rara beleza, exemplar de uma joalheria retinta, está a história de mulheres que deixaram como herança para seus descendentes a experiência de terem sido alforriadas por assinaturas advindas de mãos negras. Um baú de ouro traduzido em joias inventariadas que nos lembram uma luta vertida em enfeites que embelezam. Um legado ancestral que revela a identidade e as ânsias de mulheres pretas que, apesar da crueldade imposta pelo sistema vigente, encontraram brechas e conquistas que resultaram em bens, luxo e poder.

Seus nomes, vamos descobrindo por terem sido gravados por elas em ouro e prata. Nas pratas que fundem as grossas alianças que se entrelaçam para formarem os colares deixados em testamento por Marcelina da Silva – uma negra natural da Costa da África – para sua filha, de nome Magdalena. Nas memórias imaginadas de um Recôncavo romântico onde viveu “Mariquinha dente de Ouro” – aquela que se cobria “com roupas de linho bordadas de barafunda” ou na farta penca de berloques presentes no balangandã de Florinda Anna do Nascimento, a rainha de Ébano brejeiramente chamada Fulô, que sorri coberta de joias em registro fotográfico que funciona não apenas como prova material de suas conquistas individuais – e das investidas de inúmeras pretas detentoras de posses no luxuoso mundo das joias – mas, também, da história que agora proponho contar como enredo.

Enredo, pesquisa, desenvolvimento e texto: Leandro Vieira.