SINOPSE DO ENREDO “CAMALEÔNICO”
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Junto ao punhado de paetês e confetes que manuseio para soprar no carnaval que virá, enxergo aquilo que pode ser visto primeiro: algo que é homem e bicho. Um híbrido no limiar entre a fera selvagem e a face humana. Bicho-homem. Espécie de homem-pássaro que roubou um par de asas para seu voo sonoro. Criatura que, no pouso terreno, mascarou-se junto ao verde da mata e ao colorido dos hibiscos deixando-se fotografar entre penas e pedras, lantejoulas e plumas, troncos e raízes. Um animal em estado de transformação que te convida ao êxtase feroz. Algo que se revela nu. Vestido apenas com a sua pele. Mil peles. Pele de camaleão. Camaleônico.
Em cena, ele requebra diante dos caretas e quem o vê não sabe se é homem ou mulher. Colo coberto de pelo e boca tingida de carmim. Ventre masculino e olhos contornados com lápis negro. Timbre feminino que nasce na boca masculina. O cantar da vedete visto em um corpo másculo. Escondido por detrás da máscara de tinta, ele é o instinto febril que não se pode dominar. Registro rebelde e surreal. O corpo que requebra em zigue zague. O sumo perfumado de uma América Sul-Americana pendendo em colares. Um xamã tupiniquim ornado de miçangas, penas de papagaio e delírios quiméricos.
Ele é o que guarda na voz. O grito que silencia quem impõe o silêncio. Aquilo que ainda pode ser ouvido quando as bocas estão amordaçadas. O vinil em giro na radiola. O doce e o amargo que se encontra no SECOS E MOLHADOS. A voz e a cabeça oferecida de bandeja como alimento poderoso junto ao que se come com a boca, os olhos e os ouvidos.
Inclassificável, ele é aquilo que se rasga para ser outro. O homem primitivo que desce à terra na gota d’água que transborda de um CÉU-PÁSSARO. O homem de Neanderthal coberto de crina e chifre que dá vez a um BANDIDO enfeitado com brinco de argola. O salteador de corações em desvario, gatuno das paixões e dos romances aventureiros. O bandido que é sucedido pelos que cobiçam a boneca, mordem a maçã, provam do veneno e flertam com o PECADO. Este último, por sua vez, derrama-se no FEITIÇO. O feitiço de um corpo nu, bandoleiro e cigano, que é visto em cavalgada em um cavalo alado. A voz dos que não tem voz. Corporificação de sujeitos não apreciados. Divindade que incorporou a subversão. O grito dos loucos. A porção mulher dos malandros. O anjo safado. A iconografia dos marginais. A performance máscula dos afeminados. O canto dos desgarrados e sem paradeiro. A chave dos trancados nas gaiolas.
A voz que sarra a canção. O clamor das mulheres de Atenas. Aquilo que embala a balada que os loucos dançam e a jura de preferir não ser normal. Canção que é ferida aberta. Eco de uma bomba sem cor e sem perfume. O sangue que pinta com tinta escarlate o gemido de culturas latinas dizimadas. O chamado misterioso de um pavão que exibe a cauda aberta em leque. Voz lunar que desvenda a face oculta de um lobisomem que é visto entre fadas, corujas e pirilampos.
Ao virar sua face para a festa, ele nos banha com canções solares. Aquelas, de amores ensolarados que cantam para que o dia possa nascer feliz. As que animam os que andam nu. Convite para uma farra do lado de baixo da linha do Equador. Uma folia no matagal. Sem juízo e pecado. Farta e suada. Lambuzada. Com a tristeza pra lá e a todo vapor. Deleite para os vira-latas de raça. Pra quem quer botar o bloco na rua. De uma gente que não corre quando o bicho pega e, quando fica, sabe que o bicho come. Prazer e delírio em um jardim de delícias terrenas. Jardim tropical de acrobacias amorosas e travessuras desenfreadas. Retrato 3×4 do prazer erguido em purpurina. O doce da maçã e o veneno da serpente. O riso de quem não se faz de santo. Destino para aqueles que querem brincar, gingar e botar pra ferver (gemer).
Pesquisa, desenvolvimento e texto: Leandro Vieira
1. O texto introduz a corporificação de ideais de liberdade a partir da perspectiva hibrida adotada pelo homenageado na construção de seu personagem público. O parágrafo flerta com declarações do artista que, incontáveis vezes, assumiu não querer ser limitado por definições. Sua intenção particular inaugural era ser visto como um bicho localizado no limiar entre o estado animal fantástico e a porção humana de forma ambígua e ambivalente.
2. O recorte textual remete ao surgimento da figura de Ney Matogrosso no imaginário brasileiro tendo sua independência comportamental como mote para a apresentação de uma persona performática que incorporou a androginia e a estética sul-americana com toques surreais como material criativo. Há ainda a menção à sua estreia como vocalista do Secos & Molhados, tendo como foco o icônico LP (e a histórica capa) lançado em 1973. Em linhas gerais, um marco de suas performances históricas e vitrine para a sua consagração como um dos maiores artistas brasileiros.
3. Historicamente, as figurações incorporadas pelo artista em seus quatro primeiros discos e shows (pós SECOS & MOLHADOS) são a base que edificam a imagem de Ney Matogrosso como um artista transgressor e libertário de forma definitiva. No texto, em sequência, são mencionados os LPs ÁGUA DO CÉU-PÁSSARO (1975); BANDIDO (1976); PECADO (1977) e FEITIÇO (1978). Como dito, trabalhos de carreira que apontam escolhas estéticas e musicais que flertam com a provocação moral e a teatralização da libido sexual aproximando a figura pública de Ney à personificação de sujeitos não apreciados, localizados à margem dos padrões sociais vigentes em meio a um ambiente de forte repressão.
4. O parágrafo lança luz em sucessos musicais de uma das mais importantes personalidades da MPB. Dono de uma obra tão sofisticada quanto seleta, Ney é considerado um pescador de pérolas quando o assunto é seu repertório particular. Sem preocupação cronológica, a menção a clássicos do artista é realizada como uma espécie de pot-pourri sonoro e visual onde suas canções guiam a produção das imagens sugeridas pelo texto. Em sequência, sucessos inquestionáveis como MULHERES DE ATENAS (Chico Buarque e Augusto Boal); BALADA DO LOUCO (Arnaldo Baptista e Rita Lee); ROSA DE HIROSHIMA (Poema de Vinícius de Moraes musicado por Gerson Conrad); SANGUE LATINO (João Ricardo e Paulinho Mendonça); PAVÃO MYSTERIOZO (Ednardo) e O VIRA (João Ricardo e Luli).
5. Por fim, é sugerida uma festa imagética permissiva e ensolarada que faz do espírito transgressor e livre do artista homenageado o mote para o desfecho narrativo. Trata-se de um convite ao desfrute das delícias e dos prazeres capitaneados pelo discurso estético e performático de Ney Matogrosso ao longo de toda a sua carreira em ambiente carnavalesco, afirmativo, libertário e provocador. No trecho, como ilustração alegórica, o texto cita livremente canções afinadas com o perfil descrito anteriormente. São elas: PRO DIA NASCER FELIZ (Frejat e Cazuza); NÃO EXISTE PECADO AO SUL DO EQUADOR (Chico Buarque e Ruy Guerra); FOLIA NO MATAGAL (Eduardo Dussek e Luiz Carlos Góes); VIRA LATA DE RAÇA (Rita Lee e Beto Lee); HOMEM COM H (Antônio Barros e Cecéu) e EU QUERO É BOTAR MEU BLOCO NA RUA (Sergio Sampaio).
BIBLIOGRAFIA
“Vira-Lata de raça” – Ney Matogrosso e Ramon Nunes Mello – Tordesilhas. Ano 2018 / “Ney Matogrosso: Abiografia” – Julio Maria – Companhia das Letras. Ano 2021 / “Da resistência à repressão. Anos 70/80” – Zuenir Ventura – Aeroplano. Ano 2000 / “Mal necessário – a androgenia animal de Ney Matogrosso” – Pamêla Keiti Baena – Revista brasileira de estudo homocultura. Ano 2023 / “Ney Matogrosso… Para além do bustiê: Performances da contraviolência na obra BANDIDO (1976/1977)” – Robson Pereira da Silva – A PPRIS. Ano 2000 / “O personagem marginal em Ney Matogrosso… Para além do bustiê” – Jessica Ferreira Alves – UFMS. Ano 2022 / “Sangue latino no palco: Nuances de decolonialidade na arte de Ney Matogrosso” – Roberto Remígeo Florêncio e Pedro Rodolpho Jungers Abib – Portal de periódicos de UEMS. Ano 2019
CONSULTA MUSICAL
LP “Secos & Molhados” – 1973 – Gravadora Continental/ LP “Secos & Molhados ll” – 1974 – Gravadora Continental / LP “Água do céu-pássaro” – 1975 -Gravadora Continental / LP “Bandido” – 1976 – Gravadora Continental / LP “Pecado” – 1977 – Gravadora Continental / LP “Feitiço” – 1978 – Gravadora WEA / LP “Sujeito estranho” 1980 – Gravadora WEA / LP “Ney Matogrosso” – 1981 – Gravadora Ariola / LP “Pois é” – 1983 – Gravadora Ariola / LP “Pescador de pérola” – 1987 – Gravadora: CBS / CD “Estava escrito” – 1994 – Gravadora Polygram / CD “Olhos de farol” – 1999 – Gravadora Polygram / CD “Inclassificáveis” – 2008 – Gravadora EMI / CD “Bloco na rua” – 2019 – Gravadora Som Livre