Artista sete vezes campeã do carnaval carioca, a carnavalesca Rosa Magalhães é a estrela do documentário “Rosa – A narradora de outros Brasis”, de Valmir Moratelli, em parceria com Libário Nogueira. A obra narra as dificuldades de uma mulher à frente de seu último desfile, no Paraíso do Tuiuti, em 2023. Temas como machismo e preconceito com a cultura popular permeiam o filme, que teve cenas rodadas na Sapucaí.

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Diretores do filme com Rosa Magalhães na gravação do documentário

O documentário foi selecionado para a mostra competitiva do Festival de Cinema de Vassouras. Haverá exibição de gala na noite de 23 de junho, com homenagem à carnavalesca e cenógrafa. A previsão é que chegue no streaming até o final do ano. Confira abaixo o bate-papo com o diretor Valmir Moratelli sobre seu quarto longa.

Como surgiu a ideia de um filme sobre Rosa Magalhães em seu último ano de atuação na Sapucaí?

“Há algum tempo assisti ao documentário sobre Joãosinho Trinta, feito pelo Paulo Machlini há uns 15 anos, e fiquei matutando quem hoje mereceria algo nesse nível. A meu ver, somente Rosa. Propus ao Libário (Nogueira) para dividirmos a direção, como fizemos com “Prateados” e deu certo. A possibilidade da carnavalesca não atuar em 2024 foi uma coincidência”.

O que mais te chamou atenção nas pesquisas sobre a Rosa?

“Ela é uma grande professora, literalmente. Várias pessoas em depoimento ao filme, inclusive, preferem chamá-la de professora. É uma reverência a quem atuou tanto nas salas de aula quanto nos barracões. Como professora, ela ensina o tempo todo. Isso chama a atenção: há muito ensinamento em suas palavras”.

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Cartaz do documentário sobre Rosa Magalhães

Foi preciso selecionar alguns desfiles ou um recorte da vida de Rosa?

“Esse foi outro desafio – o primeiro foi convencê-la do filme (risos). Rosa tem carnavais memoráveis, cada um com bastidor que já garantiria uma epopeia cinematográfica. Falamos da relação familiar, dos ensinamentos como discípula de Fernando Pamplona e Arlindo Rodrigues, até chegar na fase professora da Escola de Belas Artes da UFRJ. Rosa comenta seus desfiles, não só os que deram certo, além da carreira no teatro e TV”.

Ela tem fama de ser tímida em entrevistas. Como você quebrou essa barreira?

“Já a entrevistei outras vezes, sabia dessa fama. Mas um repórter quanto quer uma entrevista é como um diretor quando pensa no filme, não há quem o mova do foco. No set, sou a junção dos dois (risos)! Levei a equipe completa e já começamos a filmar no primeiro encontro”.

O título sugere que Rosa narre “outros Brasis”. Que Brasis o filme revela?

“Se eu fosse professor de História, passaria na sala de aula o desfile “Catarina de Médicis na Corte dos Tupinambos e Tabajeres” (1994); o da Chiquinha Gonzaga (1997); o “Brasil mostra a sua cara em Theatrum Rerum Naturalium Brasilie” (1999)… Há visões inovadoras de se discutir o Brasil nestes e em outros desfiles de Rosa que não constam em livros oficiais. O filme destaca essas interpretações, que nem sempre nos damos conta ao tentarmos definir nossa identidade a cada fevereiro”.

Rosa está fora do carnaval de 2024. O filme discute os motivos que levaram a isso?

“As cenas finais falam muito sobre essa sua possível aposentadoria que se avizinha da Sapucaí. É uma sequência forte, que dialoga com uma frase da própria Rosa que abre o filme, quando ela explica que o carnaval é “efêmero”. Tudo é feito para durar um momento. Quando acaba, já é hora de pensar no próximo. Como artista, ela vai sempre pensar no próximo desafio. Mas também sabe quando colocar ponto final. A previsão é que o filme estreie no streaming no começo do ano que vem, após um circuito de festivais. Então, de algum modo, teremos Rosa em fevereiro sim”.

Qual é a grande mensagem de “Rosa – A narradora de outros Brasis”?

“É um filme com várias camadas de reflexão. Mas é inegável que se trata de um filme sobre uma profissional mulher num meio como do carnaval, que é sim muito machista. A presença de Rosa num barracão é tão forte, que empodera mulheres em diferentes setores de um desfile. Isso fica claro na fala das entrevistadas. Talvez, nem ela tenha essa noção”.

Este é o seu quarto filme, o segundo sobre carnaval (o primeiro foi “30 dias – Um carnaval entre a alegria e a desilusão”, de 2019). Podemos esperar uma trilogia da Sapucaí?

“Infelizmente o carnaval, como cultura popular, é tido como algo menor pelas elites intelectuais que regem as artes chamadas nobres. Quando terminei “30 dias”, disse que não mais faria outro sobre carnaval – pela dificuldade que traz, além das já habituais para quem lida com cinema. Quatro anos depois, aqui estou eu falhando a promessa com “Rosa”! Então não sei o que virá. O que me move é contar boas histórias. “Rosa” foi uma dessas necessidades. E é incrível como este filme dialoga com outros trabalhos meus”.

Como é feito esse diálogo?

“Só tive essa noção no final da edição de “Rosa”. Meus dois últimos filmes após o “30 dias” foram sobre velhice (“Prateados”) e pessoas gordas (“Corpo São”, ainda inédito), codirigido com o Libário. “Rosa” faz ponte com essas produções ao discutir o lugar do corpo feminino. Mas também o da mulher idosa que, apesar de sua vitalidade, bate no contrafluxo etarista da sociedade. Ter pesquisado e defendido uma tese sobre envelhecimento na PUC-Rio (“Dois Antônios, várias velhices”) me ajudou nestes questionamentos”.

O carnaval é etarista?

“O carnaval, como produto cultural, é reflexo do seu meio. A sociedade é etarista, prioriza jovens em detrimento dos mais velhos. O carnaval reflete isso. Lugar de idoso é em cima da última alegoria para não atrapalhar evolução. Nem baiana idosa se vê mais com facilidade. Difícil ver idoso na gerência das escolas, pelo mesmo motivo que não se vê em vários setores da sociedade. Os carnavalescos mais antigos estão sendo substituídos sob discurso de que é preciso “inovar”. Acho ótimo inovar, mas sem desmerecer a capacidade de ninguém”.

Para terminar: na sua opinião, qual é o grande desfile de Rosa?

“Vários dos anos 1990, o auge do embate entre Imperatriz e Mocidade, como “Mais vale um jegue que me carregue que um camelo que me derrube lá no Ceará” (bicampeonato de 1995). No filme, ela explica como teve a ideia desse enredo. E adoro a sensação provocada por “A Vila canta o Brasil, celeiro do mundo”, de 2013. Há uma nostalgia contemporânea nesse desfile, um Brasil que contraria o falso progresso que nos vendem diariamente. É mais um aulão da professora Rosa”.